Um táxi nos deixou diante de uma grande construção, com amplos jardins, em cuja placa se lia “Résidence Crampel”. O termo “asilo”, com carga semântica um tanto negativa, foi trocado por outro bem mais leve e adequado: “Residência”. Gostei do eufemismo. Poderia ser “Residência de idosos”, mas preferiram algo mais neutro, o sobrenome Crampel. As acomodações eram confortáveis, com climatização, e ambiente acolhedor.
No primeiro dia, fomos convidados por Lucette, nossa anfitriã nonagenária, para um almoço em petit comité em uma saleta aconchegante, onde havia apenas uma mesa redonda, muito bem decorada, contígua ao restaurante. Para ter acesso a esse local, tivemos que atravessar o restaurante. Foi uma cena deveras impactante para mim. O recinto estava repleto de comensais em cadeira de rodas, andadores e muletas. Os idosos também pareciam surpresos com a presença de estranhos ao ninho. Lucette nos apresentou seus companheiros cotidianos de refeição e, logo após, nos conduziu à mesa preparada especialmente par nós.
Nossa anfitriã mostrou-se muito simpática e sorridente. Apesar da idade, andava ereta, amparada
discretamente por uma bengala. Era lúcida e interagia normalmente, sem problemas auditivos, visuais e sem sombras de caduquice. No entanto, minha maior expectativa foi frustrante. Eu esperava uma ótima interlocução com Lucette, mas apesar de alegre e solícita, era pouco falante. Sobretudo, nunca falava de si. Respondia às perguntas gentilmente, por monossílabos, com nítida parcimônia lexical. Soube que ela havia sido atriz de cinema e de teatro, na juventude. Isso aguçou minha curiosidade. Lamentavelmente, o que consegui saber de sua pregressa vida de artista foi por meio da internet, onde há poucas informações a seu respeito.
Certa noite fomos convidados por seu filho, que é padre, para um jantar em restaurante gastronômico. Ao tomarmos assento, ele perguntou à mãe, que tipo de suco ela tomaria, ao que ela respondeu:
tomar suco? Quero um bom vinho.
Eu já havia reparado, em nossas andanças, que ela sempre pedia vinho ou cerveja. Nossa intenção era dar-lhe férias do cativeiro. Digo cativeiro porque, apesar da aparência de hotel 4 estrelas, todas as portas de saída permaneciam trancadas noite e dia, para que não escapasse nenhum idoso atacado pelo mal de Alzheimer. Programamos diversos passeios na tentativa de tornar sua vida menos anódina. Durante cinco dias, flanamos pelas ruas da cidade e visitamos os principais monumentos: Igrejas lindíssimas, como a de Taur, a de São Sérnin e a dos Jacobinos. Visitamos o Claustro dos Agostinianos, tomamos cerveja na belíssima Praça do Capitólio, passeamos de barco no Canal do Midi, enfim, proporcionamos bons momentos à nossa nova amiga. Ela se mostrava sempre bem-disposta e bem-humorada.
Enganamo-nos ao pensar que a vida no asilo Crampel é monótona e sem atrativos. Há intensa programação cultural: palestras, shows, peças de teatro, conferências, festas temáticas, danças e outros entretenimentos. Há também salas aparelhadas para diversos tipos de atividades físicas. Uma infinidade de possibilidades de passatempo é oferecida, com acompanhamento personalizado. As atividades são adaptadas às condições físicas e mentais de cada “residente”. Há, por exemplo, arte terapia, musicoterapia, kinesioterapia, jardinagem, atividades manuais, jogos de sociedade, oficinas de culinária, de expressão escrita, de cinema, de quizz... Soube que a Résidence conta com uma equipe pluridisciplinar, composta de médicos, paramédicos, enfermeiros, psicólogos e auxiliares especializados. Apesar da intensa programação social à disposição de todos, a privacidade de cada um é preservada.
Quando lá estávamos, fiz questão de assistir à uma apresentação de músicas latinas por uma banda francesa, dentro do salão nobre. Uma senhora, ao meu lado, diferentemente da maioria, mostrava-se muito alegre e animada. Seus olhinhos brilhavam de entusiasmo. Dançava, o tempo todo, movimentando o tronco, com os braços e a cabeça. As pernas haviam perdido sua função, havia bastante tempo. Ela me disse, com ares melancólicos, que fora dançarina, na juventude.
Enquanto os componentes da banda tocavam, cantavam e dançavam, via-se na plateia um clima de apatia quase total. Alguns dormitavam, de boca aberta, outros olhavam para o vazio. A maioria parecia entediar-se, apesar dos esforços do animador. Poucos interagiam.
Tal cena me fez refletir sobre as limitações físicas e as agruras impostas pela ditadura da velhice. Os idosos dispõem apenas de duas opções, nenhuma delas promissora: passar por todas as etapas da decrepitude ou partir para o além, antes disso. Nenhuma das duas possibilidades é bem-vinda. Ninguém quer sofrer, nem partir para a grande incógnita. A grande maioria prefere tolerar as dores, os achaques da idade e postergar a indesejável visita da dama da foice. Ninguém, com raras exceções, gostaria de acompanhá-la por caminhos ignotos. O desconhecido muitas vezes causa temor. Não se sabe o que há do outro lado, ou melhor, se há algo do outro lado.
Na Résidence Crampel, há internos que acrescentam boa dose de depressão ao peso da idade. Alguns preferem não sair de seus apartamentos para refeições, nem para atividades culturais. Tampouco têm vontade de fazer novas amizades. Dependendo do grau de decrepitude, eles têm motivos suficientes para isso. Fisicamente, sentem-se cada vez piores sem perspectiva de futuro, nem de efetivas melhoras, com dores generalizadas, dificuldade de locomoção, dependência de outrem para as necessidades básicas, e uma série de agruras próprias da idade. A saúde degringola-se a passos largos.
A meu ver, o que mais agrava a situação é a falta de objetivos em curto, médio e longo prazos. No dia a dia, os objetivos do autoenclausurados são prosaicos: aguardar os melhores momentos (os das refeições); ler um bom livro, para aqueles que ainda dispõem de visão; ouvir música, caso a audição ainda vigore ou ver televisão, caso disponham de ambos os sentidos em boas condições. Para alguns, existe a expectativa da visita de parentes, mas estes, envolvidos na lufa-lufa da era digital raramente se lembram de visitá-los. Quando se dignam fazer uma visitinha, que seja rápida, sem tempo para a devida atenção, nem para um dedo de prosa. Os carinhos, cada vez mais raros, tornam-se inexpressivos; não apenas carinhos físicos. Os idosos gostam de se sentir amados, e, de alguma forma, úteis. Sem objetivos, nem perspectivas, o que lhes resta?