quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

CORONEL CORIOLANDO

Por: Jô Drumond
No início do século XX, o coronel Coriolando, possuidor de grande latifúndio no interior de Minas, foi alertado, por meio de um bilhete anônimo, que deveria “dar mais fé” no dia a dia de sua mulher. Não entendeu o que o remetente quis dizer, mas, por via das dúvidas, “melhor seria prevenir que remediar”. Ofereceu boa quantia em dinheiro a um de seus colonos, para que não perdesse a patroa de vista e para que lhe relatasse, ao fim de cada dia, tudo que sucedesse em seus domínios.

A vida conjugal do coronel não era lá essas coisas. Não passava de casamento de fachada, coisa pra inglês ver, como se diz no interior. Abadiinha, sua esposa, se sentia não mais que uma peça de engrenagem, um objeto doméstico ou um joguete em mãos alheias. Não recebia atenção nem carinho por parte de ninguém. Aliás, tudo acontecia à sua revelia, como se ela não existisse. De vez em quando, pensava em fugir, em desaparecer, até mesmo em morrer. Sentia-se absolutamente sozinha. O diálogo entre ela e o marido era inexistente, havia tempos. Sua única escapadela da opressão cotidiana era a caminhada matinal. No contato direto com a natureza, sentia-se livre. Gostava de caminhar pelos pastos, de sentir cheiro de mato, de apreciar o cromatismo das gotículas de orvalho sob raios solares, de observar o deslocamento de pequenos animais silvestres em busca de alimento, de sentir o toque do sol na pele e o vento a desguedelhar seus cabelos.

Abadia fora enviada para um internato de freiras, ainda criança. De lá saíra para o desponsório. Tendo convivido apenas com freiras e com internas, nunca tivera contato com o sexo masculino até o dia das bodas, arranjadas pelos pais.  O noivo escolhido tinha mais do dobro de sua idade. Era circunspecto e um tanto rude.


Em uma de suas andanças solitárias, distraída a observar o voo de uma grande borboleta azul, assustou-se com o rosnado de um cachorro do mato, prestes a atacá-la. Por sorte, foi protegida por um cavaleiro andante que, surgido do nada, se apresentou como filho de Natanael, fazendeiro vizinho. Ela nunca o tinha visto. Tratava-se de um rapaz esguio, claro, de cabelos negros, de porte altivo, extremamente cortês. Pediu-lhe a permissão para acompanhá-la até as proximidades da sede da fazenda, com o intuito de protegê-la contra qualquer perigo.


Nas caminhadas matutinas, de vez em quando, cruzava com tal rapaz. Às vezes ele parava para uma breve prosa. Identificou-se como Manoel, futuro bacharel em Direito. Estudava na capital e estava de férias, na fazenda dos pais. Acrescentou que seu pai sempre havia sonhado em ter em casa um médico, um advogado e um padre. Arrematou, em tom jocoso, que o que seu pai realmente queria era um filho para cuidar de suas tretas jurídicas; outro para cuidar de suas perrenguices; e um terceiro para lhe assegurar um lugarzinho no céu.

O jovem era alegre, simpático e despretensioso. Com todo o respeito que lhe era peculiar passou a acompanhá-la eventualmente em parte das caminhadas. Naqueles rincões, ele se sentia tão solitário quanto ela. Não tinha com quem prosear. Seu pai andava sempre muito ocupado. Sua mãe, atarantada com as lidas domésticas. Os agregados (colonos, meeiros, vaqueiros, agricultores, peões) em geral não passavam de um bando de semianalfabetos desinformados, viventes de um universo completamente diverso do seu. Felizmente havia Abadia, que destoava do entorno: senhorinha fina, educada, leitora voraz, conhecedora dos clássicos da Literatura e da boa Música. A interlocução entre eles era salutar para ambas as partes. Um agradável bate-papo entre dois solitários, um compartilhamento de afinidades intelectuais e artísticas, em ambiente inóspito para esse tipo de prosa. Para a tristeza de ambos, em breve as férias chegariam ao fim. Ele voltaria a seus estudos e ela retomaria seu modorrento cotidiano.

Sem que nem por quê, Manoel desapareceu da paisagem campesina, sem se despedir de Abadia. Talvez ele tivesse adiantado o dia da partida, por algum motivo, sem tempo para um adeus. Só podia sem isso. Ela se apegou a essa possibilidade até o dia em que soube que a família do jovem estava desesperada, sem saber de seu paradeiro. Pelo que constava, antes de desaparecer, ele saíra para fazer o passeio matinal nas cercanias da fazenda.

Natanael, homem de muitas posses, contratou detetives para tentar desvendar o desaparecimento do filho. Soube dos encontros fortuitos dele com Abadia.  Soube do malfadado bilhete anônimo e soube também que, naquela época, dois homens desconhecidos haviam sido contratados para trabalhar na fazenda do coronel. Nada lhe tirava da cabeça que eles estariam envolvidos naquele mistério. No entanto, não havia prova alguma. Levantar falso testemunho ou caluniar o mandachuva ou algum de seus agregados, seria decretar sua própria sentença de morte. Fazer o quê? Coriolando era o “mandão”, uma espécie de senhor feudal anacrônico, contra quem nada se podia fazer.

Natanael não se deu por vencido. Certo dia, durante o velório de um antigo agregado do coronel, que já havia trabalhado em sua fazenda, ele se aproximou dos dois suspeitos, que picavam fumo para a preparação do pito de palha. Tocou no assunto do desaparecimento do filho, com um conhecido, em voz alta e bom tom, para que os dois ouvissem. Disse que os cabras que possivelmente haviam executado seu filho, a mando de alguém, deviam estar fumando fumo forte. Ao ouvir isso um dos dois levou um susto e deixou cair o tabaco. O outro também teve um sobressalto. O pai de Manoel percebeu a reação de ambos, mas mineiramente, fingiu indiferença. Proseou um pouco mais com os conhecidos, e saiu à francesa, sem ser notado por viva alma. Foi diretamente ao arraial mais próximo e voltou acompanhado de quatro policiais armados, portando dois pares de algemas.

Os suspeitos acabaram presos. Confessaram o crime, relataram detalhes da execução e mostraram onde haviam enterrado o corpo e as armas.

Segundo o relato dos executores, o estudante caíra em emboscada, em trilha estreita de uma capoeira, quando voltava de um desses passeios. Ambos descarregaram sobre ele todo seu estoque de sadismo, com requintes de judiação. Após muita crueldade, maldade, perversidade, desumanidade e mais meia dúzia de “...ades” do mesmo campo semântico, obrigaram-no a cavar a própria sepultura. Ainda insatisfeitos, furaram-lhe os olhos e sangraram-no como a um animal no matadouro. Apesar de terem confessado o crime, os criminosos se recusavam a dizer quem havia sido o mandante. Afirmavam e reafirmavam que não havia mandante algum. Antes que um deles resolvesse soltar a língua, ambos amanheceram misteriosamente mortos, na cela.

Na mente de Natanael, o quebra-cabeça se encaixava. Após ter sido informado dos eventuais encontros de Manoel com Abadia, o coronel poderia ter contratado os jagunços para dar cabo do invasor de seus domínios. Como pode um ser que se diz humano ser capaz de tamanha barbárie contra seu semelhante, perguntava-se sem cessar?

Passados o choque e o escândalo iniciais, a poeira foi baixando. A memória do povo fez questão de se apagar o quanto antes, devido ao temor reinante nas redondezas. Ninguém tocava no assunto. Por conta da ineficiência policial e do coronelismo dominante, tudo tendia a ficar como antes. Ninguém viu nada, ninguém ouviu nada, ninguém disse nada, como os três macaquinhos sábios. E tudo continuou na mesma, como se nada houvesse acontecido. Os dias amanheciam e anoiteciam, impreterivelmente, as quatro estações respeitavam sua vez, ciclicamente, e o mundo continuava a girar em torno de si e do Sol, indiferente a tudo que se passava em sua superfície, per omnia saecula saeculorum, Amen.