quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

CIDADE DAS ORQUÍDEAS

Certo dia, dentro de um orquidário, na cidade de Marechal Floriano (ES), ouvi uma criança, de cerca de dez anos, perguntar à mãe por que nomes de flores são usados para mulheres e não para homens.

Eu nunca havia atinado para isso. Comecei então a puxar da memória nomes de ex-colegas, amigas e parentes: Margarida, Rosa, Verônica, Perpétua, Angélica, Gláucia, Hortênsia, Celestina, Dayana...  Todos os que estavam por perto, funcionários e clientes, entraram na brincadeira. Cada um ia citando o que lhe vinha à cabeça. Em cidade pequena, o contato humano é muito mais rápido e direto. Em pouco tempo, parecia uma roda de amigos. Outros nomes menos comuns vieram à baila: Camélia, Dália, Íris, Lília (ou Lílian), Magnólia, Yasmin(e), Lélia (ou Laelia... Aos poucos emergiram do fundo da memória outros ainda mais raros como Lis, Amarilis... Lembrei-me de Açucena, nome afetivo da personagem Doralda, do conto Dão-la-la-lão, de Guimarães Rosa. Alguém disse que Daisy, nome bastante comum no Brasil, significa margarida, em inglês.

AMARÍLIS
Após ter citado todos os nomes que me vinham à memória, pedi que tentassem se lembrar de conhecidos do sexo masculino com nomes de flores. Ninguém conseguia se lembrar. Realmente, não se vê nenhum homem chamado Antúrio, Cravo, Crisântemo, Girassol, Lírio, Amaranto, Hibisco, Junquilho... Lembrei-me do poeta simbolista capixaba Narciso Araújo. Expliquei ao menino, e, por conseguinte, aos presentes, que a palavra “narcisismo”, desconhecida dele, mas conhecida dos adultos, está relacionada a essa flor, que floresce à beira da água e se inclina para baixo, como se quisesse ver a própria imagem para apreciar-lhe a beleza. Os “narcisos”, de carne e osso, se apaixonam pela própria imagem. Por isso se comprazem diante de um espelho.

ANGÉLICA
 Lembrei-me também de um tio meu chamado Jacinto, que é nome de uma flor um tanto masculina, de formato meio fálico. Meu curtíssimo repertório já tinha se esgotado. A mãe do menino disse então que conhecia um vizinho chamado Alisson, cuja família lhe dissera que esse nome pode ser usado indistintamente para ambos os sexos, e que pode ter diversas grafias (Allison, Alisson, Alyson, Allisson, Allyson, Alysson e Allysson).  Disse também que é um nome bastante comum em países de língua inglesa, para nomear pessoas do sexo feminino.

GLÁUCIA
Veio-me à cabeça, naquele momento, o nome da cidade onde estávamos: Marechal Floriano. Perguntei quem era o tal Marechal. Ninguém do grupo sabia nada a respeito dele. Minha eterna mania de professora obrigou-me a lhes dizer que Marechal Floriano Peixoto havia sido nosso primeiro Vice-Presidente da República, no governo Deodoro da Fonseca. Com a renúncia deste, Floriano assumiu o cargo de Presidente do Brasil. Sua esposa Josina (minha xará), de cujo nome nunca me esquecerei, assumiu o posto de primeira dama do País, no início do século passado.

ÍRIS
 Um rapazinho me interrompeu para retrucar:

 - Péra aí! Floriano não é nome de flor!

 - Realmente não é, mas significa aquilo que floresce, que prospera -  E continuei, em tom professoral: Nosso Marechal floresceu tanto que o nome da cidade de Desterro, em Santa Catarina, foi mudado, malgrado seus habitantes, para Florianópolis. E não parou por aí. Em 1900, durante uma rápida visita a esta cidade, onde estamos, chamada antigamente Braço do Sul (referência ao afluente do rio Jucu, que corta a cidade), ela teve o nome
JACINTO
trocado, em sua homenagem. A meu ver, o nome mais apropriado para esta cidade seria Orquidópolis. Olhem em todas as direções! Vejam que maravilha! Orquídeas, orquídeas e mais orquídeas. Essas lindas flores encontram aqui, na Mata Atlântica, altitude e clima propícios. Por isso existem em grande quantidade e variedade. Despedi-me e saí, carregando nos braços diversas mudas de orquídeas.

Justamente devido ao clima ameno e à topografia da região, escolhi um pedacinho desse paraíso, com o intuito de curtir a aposentadoria. É num recanto dessa mata que tenho passado meus melhores momentos. Cuido do orquidário, do jardim, leio, pesquiso e escrevo meus livros, longe da azáfama da metrópole. No “meu recanto” troco o alarido da cidade pelo silêncio; a poluição pelo ar puro; a água tratada por nascentes; a frieza do asfalto pela
NARCISO
exuberância da mata; a iluminação noturna pelas estrelas; o relógio digital pelo biológico; a correria pelo sossego; a multidão pela solidão benfazeja.

O silêncio reinante, às vezes, é quebrado apenas pelas vozes da mata: cicios dos insetos, gorjeios dos pássaros, o assovio do vento e o rangido do bambuzal, que se verga em deferência à sua passagem.

Troquei de bom grado as caminhadas matutinas da Praia de Camburi, ao som de buzinas, com trânsito pesado e ar poluído, por monóxido de carbono, por caminhadas ecológicas, bem mais aprazíveis. Em todos os percursos, sentem-se
VERÔNICA
fragrâncias de flores silvestres e o cheiro de mato verde. Entre folhagens e ramagens, farfalhejos provocados pela fuga de micos, preás, pacas, tatus e veados-mateiros, assustados com a presença humana.

Esse foi o estilo de vida de minha infância, na fazenda de meus pais, no sertão de Minas Gerais, e hoje é o estilo de vida escolhido por mim, para a maturidade, na Mata Atlântica do Espírito Santo.

Devido à brincadeira onomástica, no orquidário, incitada pela criança, acabei descobrindo, mais tarde, acepções florais ignoradas por mim, em alguns nomes muito usuais, como: Lúcia (ou Luíza), Cássia, Dalva e Emília.

Cada flor tem simbologias diversas, que variam no espaço e no tempo, assim como de cultura para cultura. No entanto, sabe-se que, grosso modo, a flor é, sobretudo, um símbolo antigo e universal do princípio passivo (feminino), do nascimento e do ciclo vital. Está ligada à beleza, à juventude, à paz, à primavera, à pureza... Tanto é que se usa o verbo “deflorar” (perder a flor) para indicar a perda da pureza vir(a)ginal.

ORQUÍDIA


segunda-feira, 27 de novembro de 2017

TRABALHO À DISTÂNCIA

Há cerca de uma década, tive acesso ao resultado de uma enquete feita na cidade de São
Jô Drumond
Paulo, cujo objetivo era detectar os maiores sonhos de consumo dos habitantes daquela megalópole. Por incrível que pareça, os maiores desejos dos paulistanos correspondiam ao que se tem e ao que se vive em pequenas cidades: morar numa casa com jardim e quintal, almoçar juntamente com a família, morar perto do trabalho... Esse resultado deixa patente que o progresso pode representar um retrocesso na qualidade de vida dos cidadãos.

Sabe-se que os problemas enfrentados com resignação (ou não) pela maioria dos habitantes das metrópoles são os mesmos: a correria do dia a dia, o ritmo frenético da cidade grande, o trânsito infernal, engarrafamentos, poluição, exiguidade dos apartamentos, espigões, falta de relacionamento amistoso com a vizinhança... Na rua, cada um representa apenas um dado estatístico. Um desconhecido entre desconhecidos, após oito horas diárias de trabalho, acrescidas de uma a quatro horas no trânsito, volta cansado e sem disposição para dar atenção à família. O salário, na maioria das vezes, não compensa o transtorno, nem o esforço.
Com o advento do emprego flexível, devem-se revisar as relações trabalhistas.  Abole-se a tradição de “bater ponto”. O trabalho pode ser feito na rua, numa praça, num parque, em casa, enfim, em qualquer lugar, desde que haja conexão. A cada dia, um maior número de profissionais adere ao trabalho remoto. Reuniões são feitas à distância, pelo Skype, contatos profissionais são feitos pelas redes sociais, sobretudo pelo WhatsAppPara quem quer abrir seu próprio negócio, há o home based, uma espécie de franquia que permite gerenciar tudo sem sair de casa. Os investimentos são mais baixos; evitam-se, por exemplo, a compra e a manutenção de um ponto comercial.


Nesse período de transição ainda há insegurança e dificuldade de adaptação, mas com o tempo tudo se ajeita. A comunicação via satélite é um caminho sem volta. No século XXI, os trabalhadores terão que se adaptar à Revolução Tecnológica, assim como os do século XVIII tiveram que se adaptar à Revolução Industrial. 

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

DUPLA PERTENÇA

Meu corpo e eu somos “um”. Formamos um todo mais ou menos ambíguo, interdependente. Posso acabar com ele, mas ele também pode acabar comigo. Isso nos faz cúmplices um do outro. Se uma enfermidade nele se instala, um terceiro (o médico) intervém entre o eu-sujeito, e o eu-corpo-objeto. Torno-me simples observadora de mim mesma. De legítima dona, passo a importuna testemunha, a acompanhar o desenrolar dos fatos.
Recentemente, ao dar entrada em um centro cirúrgico, como paciente, tive a sensação de perda de integridade. Temporariamente, meu eu-sujeito deixou de existir. Era um mero corpo desnudo, tocado por mãos desconhecidas, alvo de agulhas, barbitúricos, bisturis e do que mais se fizesse necessário.  Minha vida ficou (in)voluntariamente em mãos alheias.  Ao voltar a mim, tentei não atrapalhar aqueles que cuidavam da dor do meu “corpo-objeto”, da dor que também era minha.

Meu corpo e eu somos “um”. Através dele me relaciono com o mundo circundante. Estranha dobradiça de dupla pertença. O sensível e o inteligível, distintos e interdependentes, se mesclam: relação conjuntiva de elementos disjuntos, irremediavelmente presos um ao outro.

Meu corpo e eu somos “um”. Sem mim, nada é; sem ele, nada sou. Sinto, se sente; vivo se vive. Juntos, somos um ser pensante e passante.