(Crônica publicada em 2010, no livro Tearte, com o título “O sertão é aqui e agora”)
*Jô Drumond
|
Congestionamento no trânsito |
Três dias atrás, domingo, 14 de maio de 2006, estava eu em Vitória, fazendo as malas, para participar, em São Paulo, do Seminário Internacional João Guimarães Rosa, em comemoração do cinquentenário das obras Grande sertão:veredas e Corpo de baile, organizado pela USP. Pelo jornal televisivo, tomei ciência dos tumultos na capital paulista, gerados pelo corte de mordomias de certos prisioneiros, que, segundo a mídia, comandavam o crime organizado de dentro dos presídios, por meio de telefones celulares. Embarcar ou não; eis a questão! Pelo sim, pelo não, escolhi o sim, na esperança de que se tratasse apenas de casos isolados.
Na expectativa de me encontrar com os maiores especialistas da obra roseana, tomei o avião às seis horas da manhã, com tempo de sobra para dar entrada no hotel e chegar à USP antes das dez, horário da abertura do Seminário. Ao chegar ao aeroporto de Congonhas, soube da lentidão do tráfego. Seria mais prudente ir diretamente para a Universidade e dar entrada no hotel no final da tarde, já que a reserva durava até às dezoito horas. Foi o que fiz. Cheguei ao auditório onde seria a abertura do Seminário, com 45 minutos de antecedência e não havia mais assentos disponíveis, nem mesmo no chão. Dei a volta por traz e consegui bem no fundo, no canto esquerdo do auditório, um exíguo espaço para ficar de pé. A concorrida abertura contou com a presença dos “Miguilins”, grupo de jovens de Cordisburgo (MG), terra de Guimarães Rosa, que são treinados desde tenra idade para serem contadores de histórias, repetindo nos palcos, os causos escritos por GR. Após as apresentações dos jovens, ouvimos os depoimentos de José de Mindlin e de Antônio Cândido, grandes nomes da intelectualidade brasileira, contemporâneos do autor, e que tiveram com ele laços de amizade e de camaradagem intelectual.
Na parte da tarde, havia menos participantes e, por conseguinte, assento para todos. Cerca de 17:00 horas, justamente no momento em que um pesquisador apresentava suas reflexões sobre o estado de violência descrito na obra literária, alguém entrou na sala, subiu ao estrado, e cochichou algo ao dirigente dos trabalhos. Este tomou a palavra e disse: – Senhores e senhoras, o sertão é aqui e agora! Acabo de ser informado que, devido ao caos reinante nas ruas da capital, o Reitor deu “toque de recolher” para toda a Universidade.
Congresso interrompido. Lembrei-me da bagagem que me aguardava na sala ao lado. Não havia táxis nem ônibus em circulação. Desolada e isolada, no Campus Universitário, longe de tudo, sem conhecer ninguém, fiquei desnorteada. As notícias, entre os congressistas, eram desencontradas. Segundo boatos, que se espalhavam rapidamente, bombas haviam sido jogadas contra outras universidades. A Usp estava na mira dos agitadores. Escolas, comércio, bancos, tudo havia sido fechado, naquela tarde, por causa das arruaças. Trabalhadores e estudantes ficaram nas ruas, à procura de condução para voltar para casa.
“Viver é muito perigoso” é um mote repetido diversas vezes ao longo da narrativa de Grande sertão:veredas, uma das mais importantes obras literárias do século XX. Na jagunçagem do sertão brasileiro, retratada pelo escritor Guimarães Rosa, viver era realmente muito perigoso. Se saltarmos de um século para outro, e do sertão para a cidade de São Paulo, uma das maiores megalópoles do mundo, podemos repetir, no início do terceiro milênio, o mesmo mote de Riobaldo, personagem e narrador da obra: “viver é muito perigoso”. O motivo continua o mesmo: a violência, o banditismo e a subversão à ordem estabelecida.
Na capital paulista, nesses últimos três dias, houve, segundo o noticiário, 251 atentados, com cerca de 100 mortos, 51 feridos, 80 ônibus incendiados, bombas e rajadas de metralhadoras em agências bancárias, assim como em estabelecimentos comerciais e escolas. A ação, tanto por parte dos bandidos quando dos policiais, gera medo na população, que teme ambos os contendores. Tudo isso, somado aos engarrafamentos, tornou a vida paulistana caótica. A polícia, fortemente armada, e com medo dos inusitados atentados, atira em qualquer cidadão com atitude suspeita. Nesse clima de pânico, todos são suspeitos até que se prove o contrário.
Em decorrência de inúmeras “blitzes” policiais e da drástica redução da frota de coletivos, provocada por incêndios e depredações, o trânsito não flui. Os pontos de ônibus encontram-se superlotados. Os táxis desapareceram por encantamento. Raramente, quando surge um deles no tumultuado horizonte urbano, já está lotado.
A cidade de São Paulo, em tempos normal, já me mete medo. Nesse final de tarde, comecei a entrar em pânico após ficar plantada por mais de uma hora, com as malas na mão, tentando um táxi. O dia estava escurecendo. Uma livreira da Universidade, da qual eu havia comprado vários volumes, se apiedou de mim, e conseguiu-me uma carona. Entrei mais que depressa num carro onde havia duas congressistas. Gastamos mais de uma hora para sair do Campus, devido à lentidão do trânsito, praticamente parado. Demoramos algumas horas para rodar poucos quilômetros. Nesse pequeno percurso, presenciamos depredações, evacuação de ônibus, violência policial, correrias e tumultos. Uma das congressistas tentava me acalmar dizendo-me que assim que encontrássemos um ponto de táxi, nós duas seguiríamos juntas e que ela me deixaria na porta de meu hotel, próximo à avenida Paulista, pois esse seria também seu percurso. A que estava dirigindo, apavorada, queria voltar para casa o quanto antes. Ela deveria tomar a direção oposta à nossa. Pedimos que parasse, por algum tempo, num cruzamento, para tentarmos um táxi. Aguardamos cerca de meia hora. Não havia táxis.
|
Avenida Paulista |
Raramente aparecia algum, porém lotado. Nossa motorista ligou do celular, para seu marido, e lhe explicou a situação. Percebemos que ele lhe havia sugerido que se dirigisse imediatamente para casa. A congressista que havia prometido me acompanhar até o hotel, ao perceber a conversa dos dois ao telefone, apavorou-se e disse que acabaria de chegar a pé, mesmo que demorasse horas de caminhada, como era previsto. Foi o que fez. Deixou a pasta e os livros no assento traseiro do carro, passou a mão na bolsa, despediu-se rapidamente e foi engolida pela multidão. A outra decidiu tomar o rumo de casa e gentilmente convidou-me para dormir em sua casa, o que recusei. Lembrei-me que minha reserva expirava às dezoito horas e já eram quase dez horas da noite. Pedi-lhe que me deixasse à porta de qualquer hotel que estivesse em seu caminho. No primeiro, por azar ou sorte, havia apenas um quarto livre, de alto luxo e, evidentemente de alto preço. Não me senti no direito de lhe pedir para procurarmos um hotel mais modesto. Paguei uma fortuna, mas tive minha noite de rainha.
Agora são 10:00 horas da manhã. Estou num amplo e confortável quarto de hotel, armada de papel e caneta, registrando os fatos e aguardando notícias mais alentadoras. Todos os canais de televisão, desde ontem, só focalizam o caos paulistano. Por precaução, decidi não ir à Usp nessa manhã. Ao meio dia, no vencimento da diária, sairei de mala e cuia à procura de outro hotel à altura de meu bolso. Não sei como enfrentarei o caos paulistano nos próximos dias de congresso. Riobaldo tem
|
"O sertão está em toda parte" |
razão. Realmente, “viver é muito perigoso”. Nos labirínticos meandros da existência, um minotauro pode estar à nossa espreita. Em qualquer direção, a qualquer momento, ele poderá surgir em nosso caminho. O perigo de viver consiste no próprio fato de existir. Guimarães Rosa tinha razão ao afirmar que “o sertão está em toda parte”.
*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias.
de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)