segunda-feira, 10 de março de 2014

MAROTAGEM

 * Jô Drumond
Os automobilistas devem redobrar a atenção ao trafegar pelo interior do Piauí. Vê-se uma grande quantidade de cabras, bodes e cabritinhos transitando ou descansando ao longo da estrada. Eles fazem parte daquela paisagem eventualmente castigada pelo sol. São tantos caprinos que o turista desavisado tem a impressão que se trata de um animal nativo daquela região.

Esse tipo de animal foi domesticado há sete mil anos a.C. Seu habitat pode ser muito variado. Come quase tudo que encontra pela frente e se adapta a ambientes inóspitos, como regiões pedregosas, áridas e montanhosas.

Dizem que no Piauí, há um restaurante de culinária regional, cujas especialidades são cabrito na brasa e buchada de bode. Com a crescente demanda, em pouco tempo, o proprietário não conseguia criar a quantidade suficiente de animais para o abate.

As más línguas dizem que, em dias e horários de pouco movimento na estrada, o chefe de cozinha sai com um ajudante, numa caminhonete, para escolher o butim da farta caçada. Enquanto um dirige lentamente, o outro vai alvejando os animais escolhidos. Logo depois, voltam rapidamente, recolhendo os abatidos, sem que ninguém os veja. A caminhonete sai vazia e volta cheia, sem nenhum ônus, em curto espaço de tempo.

Sabe-se que a caprino cultura foi introduzida no Brasil pelos portugueses. No Nordeste brasileiro, com o passar do tempo, houve uma mutação genética em sintonia com o eco-sistema, de modo que a raça Marota (porte pequeno, cabeça avantajada, chifres e membros fortes) se adapta perfeitamente às condições desfavoráveis do trópico semi-árido. Tem grande resistência física e sobrevive às agruras das secas comendo gravetos.

Marota é a raça humana. Mais marota ainda é a maquinação dos responsáveis pelo abate. Não se trata da acepção light de maroto como indivíduo esperto, ladino, travesso, mas da desprezível acepção de canalha, capaz de ações vis e condenáveis.
*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

CETICISMO RELIGIOSO

Meu pai, Francisco Nunes Valadão, era homem sério, circunspeto, e, ao mesmo tempo, irônico e brincalhão. Tinha agudez de pensamento e presença de espírito que surpreendiam a todos. Durante qualquer conversa, nada lhe passava despercebido. Suas ressalvas ou observações eram sempre pertinentes, feitas com perspicácia e ironia, às vezes em tons de galhofa. Convivia pacificamente com a beatice de minha mãe e com a religiosidade de toda a família, mas não praticava religião alguma. Durante toda a vida viu-se obrigado a ouvir a mesma ladainha por parte de mãe Tunica, sempre indignada pela ausência da prática religiosa:
─ Homem de Deus, você precisa frequentar a igreja! Você tem que rezar! Onde já se viu uma coisa dessas?
Ao que ele lhe respondia.
─ Deixe estar. Rezarei quando estiver velho.
Na velhice, abordado por ela com a lorota de sempre, ele lhe respondia:
─ Já rezei muito na juventude. Agora não careço mais disso.
Com quase um século nas costas, vergado com o peso da idade, frequentava diariamente um grupo de idosos que se reunia num quarteirão fechado, próximo à Praça Sete, no centro de Belo Horizonte, para prosear e jogar baralho. Numa de suas idas ou vindas foi abordado por duas beldades, que exalavam o frescor da juventude. Tratava-se de jovens integrantes de uma religião qualquer, tentando arrebanhar novos adeptos. Encontraram, num idoso sem crença, presa fácil para seu intento.  Segundo elas a prática da fé possibilitaria a entrada dele no reino dos céus. Meu pai encontrou nas garotas o que carecia: atenção e interlocução. Seus filhos, embora numerosos, andavam todos envolvidos com estudos e trabalhos, sem tempo para o que ele tanto gostava: um dedo de prosa. Aceitou delas a delicada oferta de catequese e combinaram que, a partir de então, elas iriam diariamente até nossa residência, para catequizá-lo. Cada sessão durava cerca de duas horas. Ele ficou radiante com o fato de ter à sua disposição duas lindas jovens sorridentes, atenciosas, cheirosas e apetitosas. Minha mãe, ciente de seu ceticismo, esbravejava aos quatro ventos:
─ Velho safado! Você não quer religião. Você quer é ficar de chamego com essas duas, isso sim!
O entusiasmo dele era tal que ela não conseguiu impedir a catequese.  Diariamente, ao toque da campainha, no horário combinado, ela baixava a tromba e enviesava o olhar. Ele, ao contrário, corria todo faceiro e sorridente em direção ao salão de visitas para receber as amáveis moçoilas.
De certa forma, era benéfico para ambas as partes: por um lado, elas se sentiam realizadas pelo cumprimento do dever religioso, ao arrebanhar aquela alma desgarrada. Por outro, ele regozijava-se pelo fato de tê-las assiduamente ao seu lado, embora soubesse que era temporário, mas, como ele sempre repetia, “nessa vida tudo é passageiro”!
Chegou enfim o grande dia, o dia do batismo. Ninguém da família dispunha de tempo para acompanhá-lo. Partiu sorridente, acompanhado pelas catequistas, e voltou acabrunhado e carrancudo.
─ O que foi papai? Não gostou do batismo? ─ perguntei-lhe.
─ Ora veja! Inventaram de me enfiar num tanque cheio de água fria. É claro que recusei. Sou que nem gato. Detesto água fria!
O fato é que o fervor religioso das donzelas havia sido insuficiente para aquecer a água. Ele, com fervor algum, escafedeu-se dali e continuou com seu ceticismo de longa data.
Anos mais tarde, em seu leito de morte, certo dia ele me fez um pedido.
─ Minha filha, eu não acredito em céu, em inferno, em nenhuma dessas baboseiras religiosas, mas por via das dúvidas, chame um padre para eu me confessar antes de partir. Como diz o ditado, “seguro morreu de velho”!
 
*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

VIAGEM SEM VOLTA



Por: Jô Drumond

Oferecer uma viagem sem volta ao planeta Marte parece brincadeira de mau gosto, mas não é. Conseguir, em pouco tempo, a inscrição paga de duzentos mil candidatos à viagem também parece piada, mas não é.
Amplamente divulgado pela mídia, o projeto Mars One, do holandês Bas Lansdorp, iniciado em março de 2011, é mirabolante à primeira vista, mas aos poucos está atraindo a atenção do meio acadêmico e da sociedade em geral, assim como o apoio de companhias aeroespaciais do mundo todo. Por enquanto ainda se trata de um sonho, mas Lansdorp está se movimentando no sentido de arrecadar cerca de seis bilhões de dólares para a viabilização do projeto.
Outro holandês chamado Paul Römer, cocriador do primeiro reality show do tipo Big Brother está aderindo à ideia de participar da escolha dos candidatos por meio de um reality show que envolverá o mundo todo. Os candidatos deverão enfrentar situações complexas a partir de simulações de sobrevivência em ambiente marciano. Segundo o cronograma proposto, entre o processo de seleção dos candidatos e o lançamento dos módulos tripulados haverá uma década de preparo.
Muitos perigos de percurso podem se interpor aos astronautas. Talvez eles nem consigam sobreviver aos sete meses de viagem, devido à exposição à radiação e à microgravidade. Caso consigam chegar ao destino, provavelmente sobreviverão por pouco tempo no ambiente inóspito do planeta vermelho, com temperaturas abaixo de 60° centígrados. A obtenção de água e oxigênio será complexa e poderá falhar. Partículas de gelo retiradas do subsolo serão aquecidas. O vapor será condensado em reservatórios. Esse processo, acrescido do nitrogênio e do argônio, filtrados da atmosfera marciana, produzirá ar respirável para a base. Mas, em caso de imprevistos, se houver alguma pane nesse sistema, quem garantirá a subsistência dos incautos viajantes?
Propor-se uma aventura dessas é uma forma de candidatar-se à morte prematura? Por que tanta gente se propõe trocar a família, os amigos, o trabalho e os prazeres da vida terrena por uma aventura interplanetária?
Certamente há os que gostam de viver perigosamente, como equilibristas em corda bamba. Há os que querem notoriedade, com sonhos de pioneirismo. Há os estudiosos que vislumbram tentar na prática suas teorias interplanetárias. Deve haver também um bando de suicidas que veem no projeto uma maneira honrosa de dar cabo, em grande estilo, da sua enfadonha existência.  Em vez de serem considerados covardes, de terem as exéquias fúnebres rejeitadas pela Igreja, serão vistos como desbravadores, ou até mesmo como heróis.
As grandes invenções da humanidade muitas vezes partem de sonhos mirabolantes. O futuro será mais auspicioso se as inovações de um visionário sul-africano vingarem. O bilionário Elon Musk dedica sua vida e sua fortuna a dois projetos: um mais simples, de fornecer à humanidade energia não poluente a baixo custo e outro mais complexo, de colonizar o espaço, com o objetivo de preservar a civilização em longo prazo. Em 2002, investiu o montante de 1,5 bilhão de dólares para fundar a maior empresa privada de exploração do cosmo, a Space X. Em 2012 tal empresa foi a primeira companhia privada a atracar uma sonda na estação Espacial Internacional. Segundo declarou, ele acordou certo dia, às duas da madrugada, com uma solução viável para viagens interplanetárias: foguetes movidos a metano e oxigênio podem atingir um impulso de 3,8 quilômetros por segundo, o que é suficiente para chegar a Marte. Uma vez lá, é possível converter elementos existentes in loco, o dióxido de carbono (CO2) e o permafrost (H2O - solo congelado com abundância de água) em metano (CH4) e oxigênio líquido (O2), para garantir o retorno à Terra.
Nossos avós nunca imaginaram que seus netos, um dia, pudessem assistir à chegada do homem à Lua, pela televisão. Naquela época não existia televisor, nem iluminação pública. Thomas Edson, um dos precursores da revolução tecnológica, morto em 1931, foi o primeiro a construir a lâmpada incandescente, capaz de transformar energia elétrica em energia luminosa.
Pode ser que, no futuro, as viagens interplanetárias se tornem corriqueiras para nossos descendentes. Apesar da rápida evolução tecnológica, talvez não estejamos mais aqui para presenciar mais esse grande passo rumo às estrelas.
*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do 
Instituto Histórico (IHGES