Meu pai, Francisco Nunes Valadão, era homem sério, circunspeto, e, ao
mesmo tempo, irônico e brincalhão. Tinha agudez de pensamento e presença de
espírito que surpreendiam a todos. Durante qualquer conversa, nada lhe passava
despercebido. Suas ressalvas ou observações eram sempre pertinentes, feitas com
perspicácia e ironia, às vezes em tons de galhofa. Convivia pacificamente com a
beatice de minha mãe e com a religiosidade de toda a família, mas não praticava
religião alguma. Durante toda a vida viu-se obrigado a ouvir a mesma ladainha
por parte de mãe Tunica, sempre indignada pela ausência da prática religiosa:
─ Homem de Deus, você precisa frequentar a igreja! Você tem que rezar!
Onde já se viu uma coisa dessas?
Ao que ele lhe respondia.
─ Deixe estar. Rezarei quando estiver velho.
Na velhice, abordado por ela com a lorota de sempre, ele lhe respondia:
─ Já rezei muito na juventude. Agora não careço mais disso.
Com quase um século nas costas, vergado com o peso da idade, frequentava
diariamente um grupo de idosos que se reunia num quarteirão fechado, próximo à
Praça Sete, no centro de Belo Horizonte, para prosear e jogar baralho. Numa de
suas idas ou vindas foi abordado por duas beldades, que exalavam o frescor da
juventude. Tratava-se de jovens integrantes de uma religião qualquer, tentando
arrebanhar novos adeptos. Encontraram, num idoso sem crença, presa fácil para
seu intento. Segundo elas a prática da fé possibilitaria a entrada dele
no reino dos céus. Meu pai encontrou nas garotas o que carecia: atenção e
interlocução. Seus filhos, embora numerosos, andavam todos envolvidos com
estudos e trabalhos, sem tempo para o que ele tanto gostava: um dedo de prosa.
Aceitou delas a delicada oferta de catequese e combinaram que, a partir de
então, elas iriam diariamente até nossa residência, para catequizá-lo. Cada
sessão durava cerca de duas horas. Ele ficou radiante com o fato de ter à sua
disposição duas lindas jovens sorridentes, atenciosas, cheirosas e apetitosas.
Minha mãe, ciente de seu ceticismo, esbravejava aos quatro ventos:
─ Velho safado! Você não quer religião. Você quer é ficar de chamego com
essas duas, isso sim!
O entusiasmo dele era tal que ela não conseguiu impedir a catequese.
Diariamente, ao toque da campainha, no horário combinado, ela baixava a
tromba e enviesava o olhar. Ele, ao contrário, corria todo faceiro e sorridente
em direção ao salão de visitas para receber as amáveis moçoilas.
De certa forma, era benéfico para ambas as partes: por um lado, elas se
sentiam realizadas pelo cumprimento do dever religioso, ao arrebanhar aquela
alma desgarrada. Por outro, ele regozijava-se pelo fato de tê-las assiduamente
ao seu lado, embora soubesse que era temporário, mas, como ele sempre repetia,
“nessa vida tudo é passageiro”!
Chegou enfim o grande dia, o dia do batismo. Ninguém da família dispunha
de tempo para acompanhá-lo. Partiu sorridente, acompanhado pelas catequistas, e
voltou acabrunhado e carrancudo.
─ O que foi papai? Não gostou do batismo? ─ perguntei-lhe.
─ Ora veja! Inventaram de me enfiar num tanque cheio de água fria. É
claro que recusei. Sou que nem gato. Detesto água fria!
O fato é que o fervor religioso das donzelas havia sido insuficiente
para aquecer a água. Ele, com fervor algum, escafedeu-se dali e continuou com
seu ceticismo de longa data.
Anos mais tarde, em seu leito de morte, certo dia ele me fez um pedido.
─ Minha filha, eu não acredito em céu, em inferno, em nenhuma dessas
baboseiras religiosas, mas por via das dúvidas, chame um padre para eu me
confessar antes de partir. Como diz o ditado, “seguro morreu de velho”!
*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3
Academias de Letras
(AFEMIL, AEL,
AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES