segunda-feira, 5 de agosto de 2019

SANA INSANITAS

Ao apoiar-se no peitoril de sua janela de estimação, Candinha viu passar, a cavalo, um vulto feminino, franzino. A rapidez não lhe permitiu a identificação. Ela conhecia todos naquele vilarejo. A amazona parecia apressada. - Normalmente, ninguém galopa dentro da cidade, disse a si mesma - a não ser que esteja apertado para ir ao banheiro ou para tirar o pai da forca. Quem será? Por que tanta pressa? Aonde estará indo?
Candinha sabia de tudo que se passava naquele vilarejo. Conhecia as qualidades e os podres de cada morador. Não se conformava de ter deixado passar esse furo de bisbilhotice.
Resolveu fazer sua ronda matinal pelas ruas adjacentes, à procura de novidades. Notou grande atropelo diante da casa de seu Zé da Onça, um respeitado senhor que ficara com essa alcunha por ter enfrentado uma onça a unhas e dentes. Pelo menos era o que diziam. Pois bem, como era de se esperar, a mexeriqueira de marca maior, vislumbrou o que procurava. Notícia quentinha, saindo do forno. A vizinhança se aglomerava à porta de seu Zé. Ele procurava por sua avó, de 92 anos, que desaparecera misteriosamente naquela manhã. A seu ver, a mente de Vó Zita já vacilava entre realidade e devaneios. Às vezes aparentava normalidade, às vezes divagava por mundos utópicos ou incógnitos, o que deixava a família apreensiva. Certo dia, ela disse, em tom de brincadeira, à sua bisneta preferida que fingia ter Alzheimer, por divertimento. Gostava de ver a cara de tacho dos que a cercavam, quando misturava “lé com cré”. A bisneta não acreditou. Pensou que fosse uma maneira de justificar seus lapsos de memória. A idosa morava sozinha, mas  quase sem autonomia, em uma pequena casa de fundos, de modo a ser monitorada o tempo todo pela família. Nunca saía desacompanhada. Porém, naquele dia, evaporou-se como água. Procuraram-na por toda a vizinhança. Nesse interim, Seu Jacó se aproximou, procurando por seu cavalo baio, que também havia desaparecido. Num átimo, Candinha matou a charada. Regozijou-se com a descoberta e empavonou-se, com ares de detetive, para dar a boa nova.
- Vovó Zita, a cavalo? A galope? Não! Não é possível! Você está zombando de nós, Candinha! – disse Zé da Onça.
- Bem,  não posso jurar de pés juntos que era ela, mas ao que tudo indica...
Seu Zé tirou o carro da garagem e percorreu as redondezas. Primeiramente foi à casa de parentes. Não a tendo encontrado, foi ao sítio da família. Ninguém a tinha visto. Percorreu todos os sítios e chácaras da circunvizinhança, em vão.
O dia se foi, e a noite chegou, sem sombra da vovozinha. Onde passará a noite? Estará perdida neste mundão de Deus? Pobre coitada! Enfrentar o frio e o breu da noite, nessa idade!...
Os vizinhos reunidos e solidários puxaram o terço pelo surgimento da desaparecida.  Após a reza, prosearam à espera do sono. Aos poucos, foram se dispersando. Na família, ninguém conseguiu pregar o olho naquela noite. Na manhã seguinte, aproximou-se um cavaleiro, apeou e bateu à porta. Era o mandalete da fazenda do Coité, rapazinho esperto e espevitado, com boas novas. A vovozinha fujona foi parar a trinta quilômetros de distância na fazenda onde nascera. Como conseguiu ir tão longe, sozinha? Como conseguiu encontrar o caminho de suas raízes? – Muitas interrogações no âmbito familiar.  Zé da onça reuniu os filhos e partiram todos em busca daquela que havia batido em retirada, sem sua anuência.
Ao chegarem à fazenda do Coité, foram muito bem recebidos pelos moradores, com cafezinho e pão de queijo. Naquele momento, vó Zita estava fazendo a sesta, em uma chaise-longue, na varanda dos fundos.  Antes de ter contato com a anciã, informaram-se sobre sua chegada e sobre seu comportamento.  Ela realmente chegara sozinha, a cavalo, completamente lúcida e disse que havia resolvido voltar à sua terra natal porque não suportava mais ser vigiada e ao mesmo tempo paparicada, como se fosse criança. Queria voltar a levar a vida de antes, com autonomia para pequenas extravagâncias e com direito de ir e vir.
Ao entrarem na varanda, ela os cumprimentou formalmente, como se nunca os tivesse visto. Ao se identificarem, ela disse com toda naturalidade: ¬ Deve haver um Equívoco. Não os conheço e tampouco conheço a pessoa que estão procurando. Moro aqui desde menina e aqui permanecerei até o último suspiro.
Ao dizer isso deu uma piscadela para a anfitriã, que entendeu a mensagem e atendeu prontamente a seu pedido de socorro.  A dona da casa convidou os visitantes à sala de estar e lhes disse que gostaria imensamente de cuidar, pelo menos por uns tempos, de sua madrinha Zita, com quem ela se dava muito bem e de quem adorava ouvir os causos de outrora.
Todos aquiesceram de bom grado. Partiram contentes e mais leves, sem o fardo de cuidadores da pretensa demente.