Jô Drumond
Aficionada
às artes, sempre gostei de visitar museus, sobretudo aqueles voltados para
pintura, escultura e mobiliário antigo. Certa vez, em Bruges (Brugge), na
Bélgica, tive a oportunidade de apreciar uma retrospectiva de um dos meus
pintores prediletos: Paul Cézanne (1839-1906). Foi sorte rara ver reunida, em
um só espaço, grande quantidade de obras do renomado artista. Cézanne, muitas
vezes enquadrado entre os pós-impressionistas, abriu novos caminhos para a arte
do século XX e trouxe uma nova concepção de percepção da realidade. Em algumas
de suas obras, ele prenuncia as pesquisas do Cubismo.
Ao percorrer
lentamente as galerias, observando cada quadro, deparei com uma obra que me
deixou paralisada. Um frisson percorreu todo meu corpo. Mal pude disfarçar as
lágrimas. Para um visitante qualquer, poderia ser a representação de uma
floresta. Para mim, era muito mais que uma pintura a óleo. Era o Belo absoluto,
arrebatador. celestial. Mergulhei o
olhar naquele suposto arvoredo e deixei-me enveredar por trilhas sinestésicas,
tentando prolongar ao máximo possível aquele momento de pura estesia. Era como
se a obra tivesse sido especialmente concebida para meu deleite pessoal. Não
sei por quanto tempo estive estática diante do quadro. Perdi a noção temporal.
Alguém esbarrou em mim. Percebi então que todos se movimentavam. Devia seguir o
fluxo dos visitantes. Por duas ou três vezes, fiz a volta completa naquele
recinto e parei diante do “meu” Cézanne, para uma última mirada. Tratava-se de
uma oportunidade única. Dificilmente poderia postar-me novamente diante daquele
original. Nenhuma reprodução surtiria o mesmo efeito; nem mesmo o original, em
outras circunstâncias.
Na sequência
organizada pela curadoria, o visitante não tinha retorno. Tão logo entrava, já
seguia obedientemente em direção à saída.
Antes de abandonar o museu, desobedeci às setas e deslizei discretamente
até meu ponto predileto. Ao entrar pela porta de saída, percebi a inquietação
do vigilante. A contração dos sobrolhos e o olhar sobranceiro demonstravam seu
nervosismo causado por meu inusitado retorno. Antes que a segurança do museu
fosse acionada, saí rapidamente e me misturei à multidão. Caso fosse autuada
por atitude suspeita, não saberia me justificar nem a mim mesma; muito menos
aos guardas, em língua flamenga (neerlandês).
Já estive
assim (enlevada, extasiada, arrebatada, maravilhada), por diversas vezes,
diante do Belo. É algo inexplicável, um momento epifânico. Isso já me
aconteceu diante de uma vitrine, ao observar um carrilhão barroco absolutamente
deslumbrante, dourado, repleto de curvas, contracurvas, volutas e arabescos.
Aconteceu de outra feita, no teatro Opéra Bastille, em Paris, diante da cena
final do ballet, Le lac du Cygne, numa coreografia mesclada de projeção de imagens,
no qual, o bailarino se transforma em cisne e alça voo. Aconteceu também durante
um espetáculo de tango, em Buenos Aires, no qual dois dançarinos, olhos nos
olhos, em perfeita sintonia, pareciam estar alhures, longe de tudo e de todos.
Senti-me assim durante o filme Retratos da vida, ao som do “Bolero” de Ravel,
com a inefável leveza de um único bailarino, num palco postado diante da torre
Eiffel. O mesmo me aconteceu ao visualizar a antológica cena final do filme
Rapsódia de agosto, na qual, uma velhinha centenária, com um guarda-chuva
revirado às avessas, sob uma borrasca, corre contra o vento no meio de um
capinzal que se curva em reverência à sua passagem.
Dizem que os
artistas, de modo geral, são mais predispostos a isso. Na antiguidade, os
gregos consideravam divinos esses momentos. A estesia diante do Belo assim como
a comoção diante do Grandioso ou do Insólito indiciavam a presença de uma
divindade. Talvez por isso se manteve, através dos tempos, desde tribos
primitivas, a tradição de que a arte esteja, de algum modo, ligada ao absoluto,
e de que o artista tenha dons que o distinguem dos simples mortais.
Pode ser que
haja pessoas com maior ou menor sensibilidade ao Belo. O certo é que momentos
mágicos como esses podem ocorrer no dia-a-dia de todos nós, graças a uma obra
literária, a uma música, a uma imagem, ou simplesmente à observação das belezas
da natureza. Isso faz com que a vida valha a pena ser vivida.
Segundo Hume Hogarth, “A beleza não é uma qualidade das coisas propriamente ditas; existe tão-só na mente que as contempla; e cada mente percebe uma diferente beleza”
*Jô Drumond (Josina
Nunes Drumond) Membro de 3 Academias
de Letras
(AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)