Faço questão de registrar um relato emocionado de uma
moradora de Brasília, Raimunda Rodrigues, com mais de 90 anos, que presenciou o
enterro de Juscelino Kubitschek e o traslado de seus restos mortais, décadas
após, para o Memorial JK.
Segundo ela disse, nunca se viu tamanha comoção pública,
durante o período ditatorial. O que mais me impressionou em seu relato, além da
manifestação maciça, foi a explosão popular de amor à democracia e de
solidariedade, num regime altamente repressivo, que se viu impotente diante da
magnitude da manifestação brotada espontaneamente nos quatro cantos do Distrito
Federal. Antes porém, de relatar o depoimento baseado em memória presencial de
quem viu, ouviu e participou, faz-se mister contextualizar o fato.
A construção de Brasília não foi ideia de Juscelino. Na
Constituição de 1891, já estava estabelecido o local onde deveria ser
construída a chamada “Novacap” (Nova Capital). Nenhum governante antes dele
ousou colocar em prática tão audacioso projeto.
Brasília foi construída em
apenas mil dias. O plano urbanístico ficou a cargo de Lúcio Costa; e o
arquitetônico, a cargo de Niemeyer. Os militares, durante a ditadura, tinham
sérias restrições ao ex-presidente devido aos gastos exorbitantes para a
construção da capital e, sobretudo, devido à guarida que ele deu a um comunista
declarado, Oscar Niemayer.
Em 1964, Juscelino foi cassado pelo governo militar
e teve seus direitos políticos suspensos por dez anos. Exilado, viveu em Nova
Iorque e depois em Paris.
Vejamos informações extraídas da Internet, sobre o
acontecimento:
Assim que recebeu a notícia da morte de Juscelino
Kubistchek, na noite do dia 22 de agosto de 1976, a Globo colocou no ar um
noticiário extra de três minutos, informando ao público os recentes
acontecimentos. A matéria não agradou à Censura Federal, que enviou um recado à
redação do Jornal Nacional pedindo que a morte fosse abordada com menos emoção.
Além disso, estava proibida a menção ao fato de que JK tivera os direitos
políticos cassados pelo governo militar, e também qualquer alusão aos anos de
seu mandato presidencial (1956-1961).
Mesmo com as advertências, a TV Globo acompanhou o velório
no dia seguinte, com imagens do cortejo, que seguiu para o aeroporto Santos
Dumont, de onde o corpo partiria para Brasília. Emocionada, a multidão
homenageou JK cantando a música Peixe Vivo, o hino Nacional, o da Independência
e o à Bandeira. Mas as imagens não chegaram à emissora a tempo de entrar no JN,
por conta do tumulto. Naquela época, a Globo ainda não tinha adotado a
tecnologia Eletronic News Gathering (ENG), que permitia o envio de imagem e som
direto do local do acontecimento para a emissora: o primeiro uso desse sistema
no JN ocorreu apenas em 1977. (Grifo nosso.)
Juscelino Kubitschek de Oliveira morreu em acidente
automobilístico, juntamente com seu motorista, perto de Resende, Rio de Janeiro,
quando viajava de São Paulo para o Rio de Janeiro, no dia 22 de agosto de 1976.
Apesar do poderio bélico, o governo nada pôde fazer para
impedir a força do povo, em acintosas atitudes contra o poder constituído. Foi
um evento comandado espontaneamente pela população em massa, para prestar sua
última homenagem ao ex-presidente. O regime militar, intimidado pela magnitude
da manifestação, não ousou cerceá-la. Ateve-se à manutenção da ordem.
O caixão levado pelo povo |
Funcionários públicos e de empresas particulares se
autoliberaram para o enterro. Nenhuma chefia teve coragem de impedi-los, porque
queria fazer coro aos subordinados, na mesma emoção. A bandeira do Brasil, no
Congresso Nacional, foi hasteada, pelos manifestantes, a meio-pau, em sinal de
luto. Os governantes ordenaram que fosse reerguida. Em vez de obedecer à ordem,
os funcionários foram além: Colocaram todas as bandeiras dos ministérios também
a meio-pau.
As escolas suspenderam as aulas; o comércio e as
repartições públicas anteciparam o encerramento do expediente; motoristas de
coletivos liberaram as catracas, tudo isso sem autorização alguma. Os taxistas
transportavam passageiros gratuitamente, para o velório. Todos os
automobilistas davam carona a quem quer que estivesse indo em direção à
Catedral. Uma solidariedade jamais vista num grande centro urbano.
No Rio, um grande cortejo popular acompanhou o féretro da
editora Bloch até o aeroporto Santos Dumont. Multidão ainda maior o aguardava
no aeroporto de Brasília, cidade na qual ele queria ser enterrado. O poder público
não se fez presente no aeroporto, para a recepção do corpo de JK. O povo se
organizou rapidamente, não se sabe como, para recebê-lo com honrarias, em época
em que não havia telefone celular, smartphone, nem internet . No traslado do
aeroporto de Brasília até a Catedral, centenas de motociclistas, representando
os candangos, fizeram a guarda de honra. Todos eles portavam sinal de luto no
braço e na moto. Cinco mil veículos acompanharam também o cortejo até a
catedral, onde seria celebrada a missa de corpo presente.
Na chegada à Catedral, comoção geral. Até então a esplanada
dos Ministérios nunca tinha comportado tanta gente. O povo chorava e, ao mesmo
tempo, cantava a música preferida de JK, “O peixe vivo”. Depois todos entoaram
“Oh! Minas Gerais” e o Hino Nacional.
O Presidente Geisel não se manifestou. O Presidente do
Senado, Petrônio Portela, ao perceber o vulto da comoção pública, sentiu-se no
dever de fazer um pronunciamento oficial, no Senado, como representante do
governo.
Após a missa, a multidão impediu que o caixão fosse levado
para o cemitério em um caminhão do Corpo de Bombeiros. “O povo leva!” --
gritaram milhares de populares. O longo percurso foi feito a pé, com
revezamento de ombros. O cortejo começou às 17h00 e terminou depois das 23h. Milhares
de pessoas acompanharam o féretro até o cemitério Campo da Esperança, em
Brasília. As floriculturas enviaram espontaneamente caminhões abarrotados de
coroas de flores. O cruzeiro existente no centro do cemitério ficou repleto de
flores.
Essa manifestação popular demonstrou não apenas o apreço ao
ex-presidente democrata, mas sobretudo o descontentamento com a ditadura. O
povo sentiu que o momento era propício para fazer ouvir sua voz, sem a temível
repressão militar. Gritos de “Viva a Democracia!” eram eventualmente ouvidos
durante o cortejo.
Raimunda Rodrigues, grande defensora da democracia, estava
também presente no momento da exumação e traslado dos restos mortais de
Juscelino para o memorial JK. Ela relatou-me pausadamente os fatos, emocionada,
como se estivesse revivendo as cenas. Seus olhos se inundavam a cada instante.
Para mim, foi uma verdadeira descoberta. Nunca tinha ouvido nada a respeito
dessa manifestação popular. Decidi então registrar o fato para que aqueles que,
como eu, não tiveram o privilégio de estar presentes, tomem conhecimento desse
momento histórico de nosso país.
Viveiro do Silêncio, 11-08-2016
*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3
Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGE