Jô Drumond
No meu recanto da
mata, situado no Viveiro do Silêncio, ao entardecer de um chuvoso
domingo, propício à malemolência, eu lia um bom livro de Joël Dicker,
intitulado La vérité sur l’affaire Harry Quebert , ouvindo o
ruído da chuva no telhado e o cicios da Mata Atlântica. Enquanto isso, meu
marido tirava uma soneca sob um espesso edredom. Aquela noite seria propícia
para assistir a um bom filme, no sítio, enrolado num aconchegante cobertor
Surpreendi-me com um
chamado pelo walk talkie. Como o serviço de telefonia
rural não é muito confiável na região, propusemos esse meio de comunicação aos
sitiantes vizinhos, para situações emergenciais ou corriqueiras. Para tal
usam-se codinomes: Leão da Montanha, Urso Pardo, Águia Ligeira e Jacaré do
Brejo. Um dos vizinhos (Leão da Montanha), já com a lareira acesa,
nos convidava (Águia Ligeira) para uma soirée de queijos e
vinhos, em sua mansão, no alto da serra. Evidentemente, o convite foi aceito de
bom grado.
Acordei meu marido e,
em poucos minutos, estávamos enfrentando a borrasca e uma estrada barrenta, em
busca dos prazeres da mesa e de um bom bate-papo com amigos. No meio do
caminho, uma árvore caída bloqueava totalmente a passagem. Tínhamos que voltar
de ré, numa estrada muito estreita, com espaço para um só veículo, tendo de um
lado um barranco e de outro, um lago. A visibilidade, na boca da noite,
tornava-se quase nula devido ao temporal. O carro entrou num atoleiro, de onde
se recusava a sair, apesar de inúmeras tentativas. Estávamos literalmente “no
mato e sem cachorro”, como se diz na roça. Não havia como pedir ajuda. Celular
ali, nem pensar! Sempre fora de área. O walk
talkie havia ficado em casa. Meu marido me disse para aguardar no carro
enquanto ele buscaria ajuda, antes que o breu da noite abocanhasse as réstias
de luz no cimo das árvores. Meu pobre herói, saiu a pé, no barro, sob chuva
gelada, sem proteção alguma e sem lanterna, sem enxergar onde pisava.
Que situação! E pensar que poucos minutos antes, ele estava a sonhar no embalo da chuva, sob um aconchegante edredom, ao abrigo das intempéries e de cobras peçonhentas. Desliguei o carro e apaguei os faróis para poupar bateria. Enquanto esperava, não havia nada a fazer. Tentei pensar em coisas alegres. Lembrei-me da piadinha do carro atolado:
Um amigo cruzou com outro, cujo carro estava atolado.
̶ O que houve, perguntou o primeiro?
̶ Meu carro atolou-se, respondeu o segundo.
̶ Não é assim que se diz. O certo é “meu carro se atolou”
̶ Nada disso, você está errado. O certo é “meu carro atolou-se”.
̶ Não meu amigo! Na escola, sempre fui melhor que você em
gramática.
O entrevero da colocação pronominal parecia não ter fim. Um passante aparentemente bêbado foi chamado para dar termo à discussão.
.̶ Os dois podem estar certos, disse o terceiro. Se o carro tiver as
rodas dianteiras atoladas, ele se atolou; se tiver as traseiras, atolou-se.
̶ As quatro rodas estão atoladas, responderam os querelantes.
̶ Então, meus senhores, ele se atolou-se.
Devia ser noite de lua nova. Não enxergava um palmo diante de meu nariz. Fiquei atenta aos ruídos do entorno. Depois de algum tempo, comecei a cismar. E se acontecer algum incidente com meu marido no caminho? E se ele não voltar? Se, por exemplo, escorregar, quebrar uma perna e ficar impossibilitado de pedir socorro? Tomei uma resolução: se ele demorasse mais de quarenta minutos, teria que procurá-lo. Que transtorno! Trocar o aconchego do veículo pela caminhada no barro, em noite escura, sob chuva fria, e, o que seria pior, sozinha! Melhor nem pensar nisso, mas seria inevitável.
Após trinta minutos de espera, avistei uma luzinha tremeluzente vindo em minha direção. Era o Leão da Montanha, a pé, segurando numa das mãos um lampião a gás, e na outra, um guarda-chuva. Pouco depois um carro se aproximou, por trás, trazendo três ajudantes. Como não havia cordas, eles empurravam enquanto eu acelerava. O “desatolamento” foi mais fácil que o previsto. Melhor seria voltar pra casa. A árvore caída poderia ser serrada na manhã seguinte, caso a chuva desse trégua.
O inesperado pode nos pregar uma peça a qualquer momento. Caso pudesse ser previsto, perderia a graça. Deixaria de ser imprevisto. Adeus noitada de queijos e vinhos!
*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGE