* Jô Drumond
O momento mais
comovente de minha viagem à Europa, em junho de 2015, aconteceu no coração de
Berlim, próximo ao renomado portão de Brandemburgo.
Após cansativa visita guiada, a pé, sob sol escaldante, num
longo percurso pelo centro histórico,
paramos para apreciar o belo monumento neoclássico. Trata-se de uma antiga
porta de entrada da cidade, construída no final do século XVIII, em formato de
arco do triunfo.
Muitos eventos históricos se deram nesse local, considerado
um dos marcos mais conhecidos da Alemanha. Tal portão, símbolo da unidade e da
paz europeia, ficou do lado sombrio do Muro de Berlim, no pós-guerra, isolado e
inacessível aos ocidentais.
Durante a caminhada turística, muito se falou sobre a
construção do “muro da vergonha” e sobre
os efeitos funestos sobre a população. Segundo nosso guia, após a divisão da
Alemanha, diariamente, milhares de pessoas migravam do lado oriental para o
lado ocidental, fugindo do regime comunista.
Para evitar a fuga maciça, numa
madrugada de 1961, ergueu-se o muro, sob os auspícios da União Soviética. A
cidade se viu dividida em dois blocos. O oriental socialista, sob jugo
soviético, e o ocidental capitalista, governado pelos países aliados. Durante
28 anos, dezenas de milhares de famílias ficaram divididas, sem contato algum.
Quantos amigos, quantos colegas de trabalho, quantos parentes ficaram sem se
comunicar durante quase três décadas, estando tão próximos geograficamente!
Muitos não puderam voltar pra casa, naquela noite fatídica.
Outros morreram em vãs tentativas de
transpor a metafórica “cortina de ferro”, gradeada, eletrificada, patrulhada 24
horas por dia, equipada com dispositivos de alarme e vigiada por cães ferozes.
Ao nos aproximarmos do monumento, deparamos com uma cena
teatral. Uma senhora bem-vestida, bonita, alta, forte, loira, de
aproximadamente 50 anos, se deslocava ruidosamente de um lado para outro.
Corria cerca de três ou quatro metros, parava, saltava diversas vezes com os
braços para cima e dava gritos de euforia. Voltava correndo na mesma direção e
repetia a cena, sem cessar. Parei para assistir ao inusitado espetáculo. Todos
os transeuntes fizeram o mesmo. Pensei que se tratasse de uma louca ou de
alguém que tivesse acabado de surtar. Aproximei-me de um senhor alto, louro,
protótipo da raça ariana germânica, e perguntei, em inglês, o que estava
acontecendo. Ele me respondeu que aquela mulher era sua esposa. Tinham vindo de
Frankfurt para visitar Berlim, pela primeira vez, após a queda do muro. Ela
estava eufórica pelo fato de poder transitar livremente de um lado para outro,
no local onde o muro fora derrubado. Era uma travessia simbólica, uma espécie
de libertação.
Comemorava o fim de um período negro na história do país,
dividido em dois mundos opostos.
Enquanto conversávamos, a tal senhora se aproximou de nós e,
como disse o poeta Vinícius, “do riso
fez-se o pranto”. Desatou a chorar, convulsivamente. Aquilo me emocionou
sobremaneira. Choramos juntas, abraçadas, unidas por um estranho sentimento de
desalento e redenção.
Nunca imaginei que algum dia eu pudesse me encontrar em tal
situação, chorando por uma causa que não me dizia respeito, num país distante,
abraçada a uma desconhecida cujo nome nunca saberei, e que não falava minha
língua. Não se tratava apenas de choro solidário; foi explosão fraterna,
brotada espontaneamente dos recônditos da alma.
Após o acontecido, pus-me a refletir sobre as relações
humanas, em geral. Como entender a complexidade do ser humano, capaz de abraçar
tanto uma causa guerreira ou mortífera,
como Hitler, quanto uma causa humanitária, como Luther King? Por um lado, pode
ser cruel, insensível, capaz das maiores malvadezas; por outro lado, bom,
sensível e solidário. Recorro aqui à metáfora da mandioca, utilizada por
Guimarães Rosa para se expressar sobre esse tema: a mandioca mansa
(comestível), pode se transformar em mandioca brava (venenosa), e vice-versa.
Além de ambíguo, o ser humano às vezes
também é antagônico; carrega em si um maniqueísmo latente. Em alguns,
prevalece a face do Bem; em outros, a do Mal. No entanto, muito além do Bem e
do Mal, a meu ver, prevalece o sentimento de fraternidade. Talvez tenha sido
esse sentimento que me fez chorar por uma causa alheia, abraçada a uma
desconhecida diante do portão de Brandemburgo.
Jô Drumond: Escritora e membro da: AEL
(Academia Espírito-santense de Letras). AFESL (Academia Feminina
Espírito-santense de Letras) AFEMIL (Academia Feminina Mineira de Letras) IHGES
(Instituto Histórico e Geográfico do ES).