Jô Drumond
Cadeira n° 10 da Academia
Espírito Santense de Letras
Há pessoas que passam rapidamente pela
vida da gente e se vão para sempre. Outras marcam presença durante algum tempo
e também desaparecem – refletia Anita. Há aquelas que, desaparecendo ou não, se
integram à nossa história de vida. Dizem que, normalmente, ninguém se esquece
do primeiro amor. Talvez seja o meu caso. Por onde andará meu inesquecível
Ulisses? Em busca de sua Ítaca ou já instalado no reino de Hades?
Cenas vividas ainda vívidas, na mente
de Anita, eram pescadas no baú da memória, juntamente com o doce sabor da
juventude. No resgate de tempos idos, incessante fluir de recordações, profusão
de sentimentos e coração em atropelo. No desvão temporal, pipocavam
revivescências do passado.
Anita soube que o advento das redes
sociais facilitava enormemente os reencontros e os reatamentos de laços de
amizades e de parentescos. Não era muito afeita à internet, mas
cadastrou-se no facebook com a firme intenção de
tentar localizar o elo perdido. Jamais se esquecera de seu
sobrenome, sobretudo porque adorava pimenta: Pimentel. Entrou no facebook e
procurou por Ulisses Pimentel. Havia diversos homônimos. Pela foto, não o
reconheceria, depois de meio século. Entrou na página de cada Ulisses, na
esperança de encontrar um conterrâneo. Encontrou Ulisses Mendes Pimentel. Não
se lembrava do sobrenome “Mendes”. Seria ele? Pelo sim, pelo não, enviou-lhe
uma mensagem solicitando amizade. Nada de resposta. Um mês depois, enviou-lhe
outra mensagem com maiores detalhes, citando passagens vividas por ambos.
Finalmente obteve uma resposta lacônica. Era o próprio.
Certo dia,
estando ambos on line, começaram um bate-papo saudosista, pinçando
relembramentos de antanho. Descobriram afinidades religiosas, artísticas,
sobretudo musicais. Ambos gostavam também de viajar, de dançar e de ir ao
cinema. Não abriam mão das salas de projeção, das telas panorâmicas, do
aconchego da poltrona, nem do escurinho do cinema. Lamentavam os atuais
comilões que exalam cheiro de manteiga saturada e sujam o carpete com pipocas.
Em sua época não se ia ao cinema para se empanturrar de guloseimas. Ia-se para
assistir a boas películas e para flertar com os brotinhos, na chegada e na
saída.
Meio século se passou sem aviso, sem notícia.
“Não mais que de repente”, eles se reencontraram, cheios de vivimentos e de
páginas viradas, repletas de acontecências.
Na urdidura dos dias, cada um
seguiu sua sina, cada um teceu sua trama, criou raízes, filhos e poesias, com
vislumbres diversos e horizontes dispersos. Ainda havia muito chão a percorrer.
Começaram uma despretensiosa troca de
mensagens, que aos poucos foi se adocicando, se intensificando e se acalorando.
Todas as manhãs, Anita abria a caixa de entrada do iphone, para
verificar se havia alguma mensagem. Tornou-se ato contíguo ao despertar. Mesmo
antes de se levantar, verificava se havia ali algo para colorir o dia. Uma
foto, uma reminiscência, uma frase enigmática, um elogio... a mensagem matinal
tornou-se mais importante que o café da manhã. Era fonte de energia para a
jornada que se iniciava. Depois de uma eternidade que durou não mais que um
mês, ela recebeu uma proposta de conversa presencial, num local público.
Moravam em bairros contíguos, na orla da Zona Sul carioca. Ele no Leblon, ela
em Ipanema. O acaso nunca havia cruzado seus caminhos, nem providenciado nenhum
encontro durante as caminhadas matinais no calçadão da praia.
Para o reencontro, escolheram um local
lindo, aconchegante, ideal para se relembrarem de tempos idos: a antiga
Confeitaria Colombo. A ansiedade de cada um se refletia no esmero da aparência.
Embora tivessem a mesma idade, ambos queriam camuflar as marcas do tempo.
Haviam sido colegas de classe, no curso ginasial, época em que cruzavam
centelhas nos olhares, com friozinho na barriga e coração em disparada.
Durante a semana que precedeu o
encontro, ele começou a fazer exercícios abdominais, para atenuar o ventre
cervejeiro, implementou uma dieta light, pintou os cabelos, já meio
grisalhos, e fez clareamento nos dentes. Ao ouvir, no rádio do carro, a antiga
canção “L’Amour est bleu”, lembrou-se de que essa era a cor preferida de Anita.
Foi ao shopping, escolheu uma camisa azul, de mangas compridas.
Por sua vez, Anita passou a correr na
praia, procurou esteticista e salão de beleza, para melhorar o visual. Escolheu
uma cor alegre, a seu ver, mais condizente com a ocasião. Comprou um
vestido vermelho, sem mangas, decote em “v”, com cintura bem-marcada e
saia godet.
Ulisses fez questão de chegar à Colombo
mais cedo. Não seria de bom tom deixar uma dama à sua espera. Escolheu um
recanto aconchegante e pouco movimentado. Ao vê-la entrar no recinto, foi ao
seu encontro. Cumprimentaram-se cordialmente, sem maiores efusões. O
momento exigia formalidade. Afinal, apesar da troca de mensagens virtuais,
ainda não se (re)conheciam.
Nessa tarde, diferente de todas as
demais, fizeram uma benfazeja viagem no tempo. Relembraram-se das manias dos
professores, das rusgas entre colegas, dos castigos por indisciplina, das
festas escolares, das horas dançantes em casas de amigos...
Depois, cada um falou de si, de sua
vida familiar e profissional. Ambos eram viúvos, tinham filhos, netos e muitas
histórias a contar. Na vida acadêmica, optaram por caminhos
diferentes. Ele era desembargador, já aposentado; e ela,
uma renomada cientista, com diversas especializações no exterior, ainda na
ativa. Nas horas vagas, dedicava-se à poesia. Não poderia viver longe dos
laboratórios, das pesquisas, nem abandonar a literatura. Médica e poeta, tal qual
Orfeu, jamais renunciaria à sua lira.
Ao chegar a casa, Anita fez a seguinte
anotação: Há momentos que se eternizam, revividos a cada dia por
teimosia de uma memória renitente que escava minudências
para preencher lapsos na vacuidade do esquecimento. E a
vida imbuída de boas lembranças torna-se mais leve. Há momentos que valem por
uma vida inteira.
Apesar de memorável, a tarde havia sido
insuficiente para passar a vida a limpo. Outros encontros aconteceram na
Colombo, trocados posteriormente por almoços em restaurantes panorâmicos, com
vista para a baía de Guanabara.
As mensagens virtuais, ao despertar,
tornaram-se imprescindíveis, mesmo que fosse apenas um “bom-dia”. Uma ida
semanal ao cinema passou a fazer parte daquela doce rotina. No entanto, nos finais
de semana, cada um curtia sua própria família.
A prudência de Anita exigia calma e
temperança. Para desenvolver um envolvimento afetivo ela carecia de tempo. Era
algo que ia se condensando aos poucos, sem pressa, sem tropeços, com boa dose
de imaginação. Como num crescendo musical, o sentimento ia se solidificando até
chegar ao patamar da confiança recíproca e do enlevo amoroso. Era como a
feitura de uma trança, ou de um complexo laço. Caso a trança fosse cortada ou o
laço rompido, caia o pano: uma pesada cortina negra de luto reflexivo, uma trilha
morosa de entendimento, maturação e aceitação a ser percorrida, para a
assimilação da perda.
Anita, sempre calada e compenetrada,
mostrava-se sorridente, irradiava alegria e bom humor. Tanto seus colegas de trabalho
quanto os familiares estranharam a nítida mudança. A simples existência do
“outro” preenchia seus dias. Trabalhava com mais afinco e passou a cultivar a
alegria de viver.
Ulisses mantinha-se sempre em contato,
mas nunca ultrapassava as lindes da amizade e do companheirismo. Era bom de
prosa, de companhia agradável e presença cativante. Anita foi se afeiçoando
cada dia mais àquela figura, mas mantinha distanciamento ético, na esperança de
que um dia ele desse o primeiro passo além da amizade. No entanto isso não
acontecia. Com o passar do tempo, ela foi criando para si a imagem de um
Ulisses idealizado, tal qual ela gostaria que ele fosse. Passava horas a
devanear, a fazer conjeturas, a criar viagens mirabolantes e noitadas vorazes.
Sentia-se presa àquela figura mítica, sem a qual a vida se tornaria insossa.
Durante as noites de vigília, fazia anotações poéticas tais como: Na
seara da insônia, semeiam-se letras, colhem-se palavras com sabor de poesia.
Palavras palatáveis, de florescência poética, que se degustam no céu da boca.
Nas altas horas da madrugada, vígil caçadora do agora embrenha-se em ontens e
amanhãs, deslizando na atemporalidade do tempo.
Não conseguia entender o que se passava
consigo. Há sentimento que não se explica – divagava ela. Não se encaixa à doxa
vigente. Difere de amizade, de amor e de paixão. Talvez seja mais que isso, ou
nada disso. É a percepção de algo etéreo, de afinidade que não se
encontra comumente no dia a dia. Ultrapassa as barreiras da lógica, propicia
alumbramentos e bem-aventurança. É ressonância de energias afins, de efeitos
encantatórios. É algo insensato, mas salutar ao coração solitário. Torna menos
anódina e mais bela esta vida besta. No “enquanto” da existência, quero voar
sem asas. Que mal há nisso?
Anita gostaria muito de desvelar o
hermetismo de Ulisses. Supunha não haver nenhuma Penélope à sua espera. Eram
ambos desimpedidos. Por que não juntar as escovas de dente? A química amorosa
talvez fosse unilateral. Quiçá não sentisse atração física por ela, tivesse
receio de um envolvimento mais sério ou preferisse mulheres mais jovens.
Em outra noite de insônia, Anita
rabiscou uns versinhos inspirados na circunstância:
Há que se manter o distanciamento para
assegurar o platonismo /
Há que se assegurar o platonismo para
sustentar o mistério/
Há que se sustentar o mistério para
cultivar o encanto /
Há que se cultivar o encanto para
estimular o fascínio/
Há que se estimular o fascínio para
fomentar a sedução /
E a sedução se incumbe de ludibriar
Platão /
Apaixonar, há que se /
Isso mesmo. Ela estava se apaixonando
por Ulisses, mas não por aquele com quem se encontrava eventualmente, sujeito a
todos os prosaísmos do cotidiano. Seu Ulisses era um misto de homem e mito.
Simples mortal, mas com virtudes de semideus. Já fazia parte integrante de sua
história de vida. Não gostaria de se privar daquela presença misteriosa,
simpática e contagiante. Ele nada mencionava de sua vida íntima, nem sugeria
maior aproximação, como por exemplo, um almoço em família, um final de semana
em sua casa de Angra. Persignando-se, ela acedia: melhor isso que nada disso.
Será melhor adaptar-me às circunstâncias e deixar o barco correr. Ça va
de soi.
O final de ano se aproximava. Talvez
pudessem brindar a virada juntos. No entanto dezembro terminou sem nenhuma
menção ao réveillon. Anita foi com a família apreciar a queima de
fogos em Copacabana. Dirigiram-se ao ponto mais estratégico para melhor
assistir ao espetáculo pirotécnico. Avistou de costas um senhor com o mesmo
porte de Ulisses, abraçado a alguém. Não devia ser ele. Pelo sim, pelo não,
aproximou-se para verificar. Era ele sim, abraçado a uma mulher aparentemente bem
mais jovem. Deve ser uma de suas filhas, pensou. Manteve-se por perto, na
esperança de visualizar melhor. Era uma japonesinha mirrada e sem
sal, uma magrela insignificante. Ulisses mantinha-se de costas. À meia-noite,
um demorado beijo na boca desmoronou por completo aquele réveillon.
Anita voltou para casa cabisbaixa e macambúzia. Todos quiseram saber o motivo
daquela repentina mudança. Ela alegou cansaço.
Naquela noite, não conseguiu pregar os
olhos. Uma infinidade de pensamentos contraditórios a atordoavam. O fato é
que a troca diária de mensagens virtuais, as palavras adocicadas e a constante
presença dele em sua vida envolveram-na emocionalmente muito além do desejável
e muito aquém do desejado. Voltou a ser a adolescente apaixonada de outrora. Os
tempos acabaram se embaralhando em sua mente. O passado se sobrepôs ao presente
e impôs forte carga afetiva. O virtual sobrepujou o real, e a imaginação
alçou altos voos. Quanto maior a altitude, mais vertiginosa é a queda. Anita
não podia se imaginar de volta à mesmice insossa da rotina. Era preciso buscar
algo para preencher o oco da solidão, para dissipar o que desvirtuava a alegria
de viver.
Teria sido melhor se não tivesse ido à
queima de fogos em Copacabana. Doeu muito. Tal dor era preocupante pelo fato de
ser ilógica e totalmente inesperada em alguém que até então se considerava
racional, sensata e ponderada. Batendo no peito com a mão direita, repetia
parte do confiteor: Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa,
por não ter conseguido timonear meu coração. É melhor colocar um ponto final no
que nem foi iniciado. São caraminholas de uma adolescente apaixonada, que ainda
não caiu em si, depois de meio século. Como poderia esperar ou exigir uma
contrapartida de algo que nunca existiu? Não consigo entender a mim mesma, nem
entender a mente humana. Que encanto é esse que me fascina? Que rebuliço é esse
que me atormenta? Que júbilo é esse que me invade o ser? Que emoções são essas
que brotam aos borbotões e me arrebatam? Que pensamentos são esses que criam
visgo e me amarguram? Decididamente, não me reconheço. Não sou mais a mesma,
tampouco sou outra. Não sei mais quem sou, o que sou, se sou...
Entre ambos, um fio invisível,
delicado, mas concreto esgarçava-se em fragmentos, separava o que
nunca estivera unido. Juras nunca havidas, carícias contidas, beijos não
dados, o adeus sem partida... saudades do não acontecido.
Sem sono, Anita abriu o facebook.
Por coincidência, viu uma comparação entre “amor” e “apego”. “Quero que você
seja feliz” (é amor); “quero que você me faça feliz” (é apego). Por que não
mesclar as coisas? ─ Pensou: “quero que você seja feliz e me faça feliz”.
Aliás, o que é felicidade? Isso existe? Ou existem apenas momentos de
bem-aventurança? Quais são os tipos de amor? Quais são seus graus de intensidade?
Qual é o limite entre amor e afeição? Por que esses sentimentos geram o ciúme?
Em que proporção o ciúme prejudica o relacionamento das pessoas? Até
que ponto o sofrimento emocional pode abalar o sistema imunológico e engendrar
doenças psicossomáticas? Por que minha tristeza é inversamente
proporcional à alegria estampada no casal abraçado, em Copacabana? O poeta
Fernando Pessoa tem razão: felizes são as plantas, que existem por existir.
Anita amofinava-se num torvelinho de
dúvidas. No primeiro dia do ano, decidiu evadir-se. Enviou a Ulisses uma curta
mensagem dizendo que ficaria desconectada do mundo, durante as férias de verão,
numa fazenda da família. Levou consigo os sete volumes originais da obra de
Proust, À la recherche du temps perdu (Em busca do tempo perdido).
Sempre protelava o início daquela leitura, pelo fato de ser muito longa,
difícil e arrastada. Carecia de tempo e de sossego.
Na fazenda, Anita remoia seus anseios:
─ O entressonho alenta a memória, mas remendos do passado não se cosem no
presente.
Remendava as horas com retalhos
de esperança e tecia conjecturas com meadas de quimeras. Dias e dias a fio, foi
cosendo fragmentos e cerzindo sentimentos, para encapar o viver. Na lerdeza do
tempo, as meadas se desbotavam, os retalhos se esgarçavam, e tudo se
decompunha, nos fiapos soturnos da noite. Nas altas horas, Anita fazia
registros poéticos em sua caderneta: na gramática da melancolia, a
sintaxe em desalento coordena padecimentos com palavras doridas. Na quietude da
roça, escuridão e silêncio liberam vaga-lumes e zumbidos de muriçoca. Na
escuridão da noite, vaga-lumes coriscam salpicando claridade. No silêncio da
madrugada, muriçocas ciciam, ferindo meus ouvidos. Na quietude da alcova, a
insônia me aprisiona, na indolente lassidão do tempo.
Nas malfadadas férias, Anita mergulhou
na obra de Proust, no afã de passar o tempo em boa companhia. Nessa busca,
acabou encontrando, no primeiro volume À côté de chez Swann,
reflexões que, de certa forma, a ajudaram a superar o desapontamento. Descobriu
que o sentimento amoroso é inexplicável; que ele se desenvolve, sobretudo por
intermédio da imaginação, da idealização. Não se sabe por que se ama alguém;
não há base sólida na qual se possa apoiar. A imagem vista ou criada da pessoa
amada não condiz com a realidade. Assim sendo, o amor não está no ser amado.
Ele se encontra inteiramente no ser enamorado, ou apaixonado. Para Proust, o
objeto do desejo não prescinde de existência própria. Ele existe tal e qual é
contemplado por aquele que o deseja.
É isso mesmo ─ pensou Anita. ─ Meu
Ulisses foi criado por mim. Não tem concretude. Não conheço seus hábitos
cotidianos, não sei o que pensa, o que sente, o que come... desconheço seus
passatempos prediletos, seus amigos, seus amores... como posso amar alguém que
mal conheço?
Continuando a desvendar as concepções
proustianas sobre o amor, interou-se de que o ato sexual ou a posse física do
ser amado nem sempre tem a completude almejada. Tudo é muito subjetivo. Tal
posse pode engendrar ansiedade, inquietude e até mesmo frustração. Isso
acontece porque o apaixonado não deseja apenas o corpo físico; anseia penetrar
na essência do ser amado, sem se dar conta de que grande parte deste foi
idealizada por ele. Destarte, o mistério que o ser amado desperta não se encontra
em si, mas no próprio sentimento amoroso. O sentimento de posse muitas vezes
desperta o ciúme, confunde-se com ele e acaba se transformando pura e
simplesmente em ciúme, às vezes doentio, obsessivo e mórbido. Essa tortura
malsã intenta penetrar não apenas nas ações do dia a dia, no convívio social,
mas também no pensamento do ser amado. Esse estado de alucinação amorosa,
responsável por tantos atritos e tantos crimes só termina cedendo lugar à
lucidez, ao desapego. Como dizia
Proust, Il faudrait choisir : cesser de souffrir ou cesser d’aimer.
A decisão «cessar de sofrer», está
irremediavelmente ligada ao “cessar de amar”. Com distanciamento temporal e,
por conseguinte, com distanciamento crítico, ela se deu conta de sua
insensatez. A perda de um ser amado não corresponde à perda da capacidade de
amar.
Anita identificou-se com a concepção
amorosa proustiana: O protagonista Swann se interessa por Odette. Num
“crescendo”, ele se encanta, se enamora, se enciúma, se apaixona, se angustia e
sofre. Seu sentimento, assim como o dos outros personagens, se inicia com o
desejo e termina com a ansiedade dolorosa.
O mesmo se deu com Anita. Em ambos os
casos tal sentimento perpassou as alegrias e as agruras a ele inerentes:
interesse, desejo, amor, inquietação, ansiedade, frustração e sofrimento.
Então é isso ─ refletia Anita. ─ O amor
jamais produz a felicidade. A felicidade é inatingível. Deve ter a mesma
inefabilidade do termo “paraíso”, ou é apenas um metaforismo?
No final das férias, Anita garatujou
alguns versinhos, antes de embarcar de volta:
Na falta de tuas mensagens / preencho a
vaziez do tempo / com versos dispersos.
Na lerdeza das horas / palmilho degraus
da vida / em busca não sei de quê.
Na inópia de concretude / pesco minha
cabeça nas nuvens / prendo-a ao corpo físico /
Cogito desertar de tudo/
Ela ainda não sabia o que fazer após a
volta ao Rio. Nunca pensou que uma simples cena pudesse afetá-la
tanto. Daria o visto pelo não visto e tudo continuaria como antes. Não,
não conseguiria. Não tinha vocação para atriz. Pediria explicações. Não, não
havia nada a explicar. Eram apenas amigos. Não tinham compromisso algum. Ele
era livre para namorar todas as japonesinhas do mundo. Seria absolutamente
ridículo da parte dela demonstrar qualquer tipo de mágoa. Teria que apagar
as pegadas do passado. O que havia acontecido, da parte dela, foi um
embevecimento platônico-apolíneo de rara beleza e de grande delicadeza; da
parte dele, incógnita total. Para ela, o que se passava na cabeça masculina
correspondia ao outro lado da lua... ao desconhecido, ao inacessível.
Decisão tomada, a
duras penas: “desapaixonar, há que se.”
Jô Drumond é escritora e membro da: AEL (Academia Espírito-santense de
Letras). AFESL (Academia Feminina Espírito-santense de Letras) AFEMIL (Academia
Feminina Mineira de Letras) IHGES (Instituto Histórico e Geográfico do ES).