Por: Jô Drumond
Quando
vou a Belo Horizonte, hospedo-me ao lado do Palácio da Liberdade, com direito
ao desfrute das sinuosidades arquitetônicas de Niemeyer, no edifício que leva
seu nome. Plantado num local privilegiado das alterosas, o edifício de
acentuada leveza e rara beleza foi construído pelo famoso arquiteto logo após o
complexo arquitetônico da Pampulha. Suas arrojadas linhas modernas contrastam
fortemente com o estilo eclético dos antigos edifícios do entorno, que dão ares
parisienses à Praça da Liberdade. Imponente, repleto de curvas e contracurvas,
belo em todos os ângulos, o edifício não tem fachada definida. Sua presença é
constante nos manuais internacionais de arquitetura moderna. As vidraças, de
parede inteira, são protegidas por marquises estreitas e próximas umas das
outras, de modo a impedir o acesso direto do sol, e a proporcionar claridade e
ventilação adequadas a todos os apartamentos.
Foi
dentro dessa obra de arte que Tancredo Neves, falecido entre a eleição e a
posse à presidência da República, havia plantado seu domicílio. Foi também
dentro dessa mesma obra que minha irmã Francisca, minha anfitriã habitual,
amarrou seu viver.
Há mais
de duas décadas, transferi meu domicílio de Belo Horizonte para Vitória (ES),
cidade linda e acolhedora, onde fui muito bem recebida. Desde então continuo
frequentando as alterosas para rever parentes e amigos.
Até pouco
tempo, sempre que eu me aproximava da entrada do edifício Niemeyer, um porteiro
ancião, arqueado pelo peso da idade, tão logo me avistava pela porta
envidraçada, levantava-se com solicitude, ajudava-me a carregar a bagagem e
fazia questão absoluta de abrir a porta do elevador e de apertar o botão do
andar ao qual eu me dirigia. Alegre e prestativo, mantinha um dedinho de prosa
com todos os que chegavam ou saiam. Nunca me esquecerei de seu nome, nada
usual: Orozimbo. Perguntei-lhe um dia por que não se aposentava. Disse-me que
já era aposentado havia tempos, mas que só pararia de trabalhar depois de
morto. O vai e vem da portaria era sua energia vital. Não abria mão daquele
posto para ninguém, a não ser que fosse demitido. Esse risco não existia.
Todos os moradores tinham por ele grande apreço e afeição. Além da indubitável
competência e solicitude no trabalho, ocupava o posto de guardião da entrada,
desde a inauguração do prédio, em meados do século XX. Era como se ele fizesse
parte integrante do patrimônio do edifício Niemeyer.
Responsável
por numerosa prole, trabalhava inicialmente doze horas por dia, das seis da
noite às seis da manhã, a fim de avolumar o vencimento, no final do mês. Depois
de idoso, passou a trabalhar no turno da tarde, das 14h00 às 22h00. Sacolejava
num lotação por cerca de sessenta minutos em direção ao bairro Palmares.
Certo
dia, chegando a minha hospedagem habitual, um novo porteiro me recebeu. Não
abriu a porta do elevador, não apertou o botão, nem se ofereceu para aliviar o
peso da bagagem. Aliás, nem se deu o trabalho de se levantar. Apenas apertou um
botão, diante de si, para meu acesso ao hall de entrada. Tomei o elevador,
apreensiva pelo mau presságio. O que teria acontecido com o Sr. Orozimbo?
Lamentavelmente,
aconteceu o inevitável. Fiquei pesarosa como se tivesse perdido alguém da
família. Dei-me conta de que não sabia quase nada sobre ele. Lastimei a perda, assim
como o fato de não lhe ter dado a devida atenção. A má notícia suscitou
questionamentos existenciais e revisão de valores. Para que tanta correria?
Para chegar aonde? Mais cedo ou mais tarde, os ponteiros de cada um param
no quadrante da existência, sem delongas. Consternada, e com a consciência um
tanto pesada pela omissão, quis saber mais sobre aquela figura que, de certa
forma, fez parte de minha história de vida. Obtive seu número de telefone e
disquei. Uma voz feminina respondeu. Identifiquei-me, indaguei a respeito de
seu passamento... conversa vai, conversa vem, acabei me inteirando de seus
passatempos favoritos e das minúcias do cotidiano. Adorava ser chamado de
vovô por todas as crianças do bairro. Plantava cana para ter a satisfação de
distribuí-la à criançada da rua. Aproveitava caixas de fósforos vazias para
fazer carrinhos, e usava palhas de milho para fazer bonequinhas. Não aprendeu a
ler, mas fez questão de que seus sete filhos frequentassem a escola. Estes, em
idade escolar, usavam tamancos e pastas de madeira, feitos artesanalmente pelas hábeis mãos de Orozimbo (medida de economia,
considerando-se o parco salário de porteiro). Depois de velho, ocupava seus
momentos ociosos fazendo móveis em miniatura para as crianças, assim como
peneiras e balaios de bambu para os adultos.
A casa
onde sua família ainda reside foi erguida em adobe, por suas próprias mãos, aos
domingos, únicos dias de folga. Sempre gostou de cultivar o pomar e a horta, de
tocar violão e de aquietar o espírito tragando um cheiroso pito de palha. Não
era religioso. Fez do trabalho sua oração. Segundo sua filha, ele se pôs a
chorar, tão logo foi informado, pouco antes de morrer, aos oitenta anos, que
não tinha condições físicas de continuar trabalhando. Corroído pelo câncer,
teve que abandonar a carcaça e partir para outra dimensão. Deve estar hoje lá
no alto, fazendo brinquedinhos para legiões de querubins.
Pessoas
simples, como Sr. Orozimbo, às vezes tecem uma rica história de vida, que pode
passar despercebida pelos que o cercam, todos muito apressados, correndo
inutilmente atrás dos ponteiros dos relógios.
*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3
Academias de Letras
(AFEMIL, AEL,
AFESL) e do
Instituto Histórico
(IHGES)