quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

RODA CARIOCA

Jô Drumond

Após exaustivo dia de turismo sob o sol escaldante do Rio de Janeiro, decidi visitar o Palácio do Catete, antiga residência dos presidentes da República. Como já passava das 17h00, o palácio estava fechado, mas os jardins se descortinavam com palmeiras imperiais, árvores frondosas, lagos e gruta com cascata. Logo na entrada, fui atraída pela cadência de samba de uma roda composta exclusivamente de idosos, todos eles de cabelinhos de algodão. A cada momento chegava novo músico, instrumento à mão, e se alojava junto aos demais.

Após cansativas andanças, nada melhor poderia acontecer. Tomei assento para apreciar o som e o frescor da tarde. Ao término de cada música um dos presentes se levantava e puxava outra, no que era prontamente acompanhado pelos instrumentistas de plantão. Percebi que todos se conheciam. Parecia amizade antiga. A chegada de cada um era motivo de júbilo para os demais. A faixa etária ultrapassava a casa dos setenta. Alguns, apesar de bem velhinhos, com dificuldade de locomoção, pareciam voltar no tempo. Arriscavam gingados e passinhos de samba. 

Conversei com um deles. Soube que se reúnem diariamente no mesmo local e no mesmo horário, com a única finalidade de passar o tempo cantando e ouvindo música. Fiquei encantada com a ideia. Em vez de ficarem em casa remoendo as dores e os achaques da idade diante de um televisor, optam por algo que faz bem à alma, em todas as idades. As amizades me pareciam sólidas, oriundas de antigos carnavais. 

O repertório variava segundo o participante da vez, que puxava a música de sua preferência: serestas, chorinhos, mas, sobretudo samba. Afinal estávamos em plena cidade maravilhosa. “Eu sou o samba, (puxou um o pandeirista) natural daqui do Rio de Janeiro... sou eu quem leva a alegria, para milhões de corações brasileiros.”

No dia seguinte, estando próxima ao palácio do Catete no final da tarde, resolvi conferir se estavam lá. Como era de se esperar, as mesmas pessoas da véspera “batiam o ponto” na roda musical com a mesma alegria e descontração. Porém, o grupo estava bem maior. Cerca de cinquenta ou sessenta participantes. Puxei uma cadeira e fiquei um bom tempo observando as expressões e as reações de cada um. Pareciam estar todos de bem com a vida.

Quando chegar à idade deles, gostaria de participar de algo similar. Bom seria se a ideia desse grupo se espalhasse pelo mundo, “levando a alegria para milhões de corações” cansados, combalidos ou descompassados. Cada minuto dessa “vida besta”, que pode ser bela,  vale a pena ser bem vivido.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)

Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGES)

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

PULGATÓRIO


*Jô Drumond

Na década de 90, passei uma temporada em Ouro Preto, como aluna do curso de pós-graduação em Arte e Cultura Barroca do Ifac (Instituto de Filosofia Arte e Cultura) da Ufop (Universidade Federal de Ouro Preto).

Há certa magia e muita história nos tortuosos becos e ruelas da antiga Vila Rica: ladeiras escorregadias, casarões históricos, igrejas suntuosas, calabouços, lendas, mistérios e fantasmas. No inverno, a cidade se torna mais envolvente, revestida de densa neblina. O nevoeiro mal deixa entrever as pontas das torres iluminadas, cutucando o firmamento. Quantos poetas e pintores foram conhecer a cidade e por lá permaneceram por toda a vida!

Durante minha permanência na antiga Vila Rica, fiz questão de voltar no tempo: Parei de andar de carro, de ler jornais e de ver noticiários televisivos. Não queria saber de conflitos internacionais, querelas políticas, tragédias, acidentes, desastres, nem de violência urbana. Alijei-me do cotidiano e mergulhei no clima do século XVIII.

A estada ouro-pretana superou minhas expectativas. O curso intensivo oferecia oito horas de aulas diárias, que se estendiam em bate-papos noturnos nos bares da cidade sobre filosofia da Arte e estética do Barroco na arquitetura, pintura, escultura, literatura e música, assim como sobre costumes da sociedade mineira colonial. Tínhamos tours culturais, guiados por professores, pelas ladeiras, pelos casarios, pelas igrejas da cidade e pelas capelas do município. Cada tour era uma incursão no mundo barroco, em ótima companhia.

Alojei-me, juntamente com duas colegas, Eliane e Aline, em uma simpática pousada (que hoje não existe mais), ao lado do Museu da Inconfidência. Devido à duração do curso, o valor da hospedagem ficaria bastante oneroso. Fomos incitadas, por preços convidativos, a trocar a pousada por uma república de estudantes chamada Pulgatório, situada na rua Direita. Gastaríamos apenas um décimo da diária habitual. Minhas colegas se entusiasmaram com a ideia. Eu era a única reticente. Preferia continuar onde estava. Era mais confortável, mais silencioso e mais propício aos estudos. Havia morado em Ouro Preto vinte anos antes. Conhecia portanto o ritmo frenético das repúblicas. Os estudantes anfitriões nos prometeram que, enquanto estivéssemos hospedadas lá, a boîte, localizada no porão, funcionaria apenas nos finais de semana, para não nos importunar. Não houve meios de convencer minhas colegas a permanecerem na pousada. Fui voto vencido.

Ao chegarmos à Pulgatório, elas ficaram encantadas com a gentileza dos alunos da Escola de Minas, com a amplitude do casarão, com a limpeza dos banheiros, com o aconchego da lareira, diante da qual um grupo de jovens tocava violão e cantava... Uma delas me perguntou: − Por que essa República se chama Pulgatório? Aqui tudo é tão limpo! Não deve ter pulgas!
— Aguarde! — respondi.
Minhas colegas estavam radiantes. Tudo certo! Tudo ótimo, às mil maravilhas! Somente eu me mantinha contrariada com a mudança. De qualquer modo — pensei com meus botões —, barulho não atrapalha meu sono de pedra, e pulga não me pica.

Na década de 70, quando eu frequentava o único cinema ouro-pretano, o Cine Vila Rica, sempre infestado de pulgas, descobri que elas não me picavam. Durante as projeções, as pessoas próximas a mim se coçavam o tempo todo enquanto eu assistia tranquilamente aos filmes.
Minha noite na Pulgatório foi repousante. Dormi profundamente. Acordei-me de manhã com um grito de pavor de uma das colegas. Ao se despir, no banheiro, descobriu diversas pulgas em seu corpo. Entrou em pânico. Gritava e sapateava, passando as mãos freneticamente pelo corpo, na tentativa de se ver livre dos insetos.

 Fiquei então sabendo que elas não haviam dormido, por dois motivos: os estudantes, descumprindo o prometido, haviam ligado o som da boîte, a todo volume, até às 4h00 da matina. Além do barulho, as pulgas que não lhes deram trégua.

Eliane e Aline disseram-me que não ficariam lá nem mais um minuto. Como os inconvenientes alegados não me incomodavam, foi minha vez de tripudiar, jocosamente.

— Vocês insistiram em vir para cá. Agora sou eu que não quero sair daqui. Terão que ficar aqui comigo até o final do curso! E aí, Eliane? — perguntei. — Encontrou justificativa para o nome da república?

— Seria melhor trocar o “l” pelo “r”  — disse-me. — Purguei todos os meus pecados esta noite.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGES)

Dezembro 2015

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

A ORIGEM DA FÉ

Jô Drumond

Sempre me intrigou o fato de que pessoas de uma mesma família, criadas sob os mesmos preceitos religiosos, no mesmo tempo e espaço, possam tomar caminhos totalmente opostos, no que concerne à fé. Desde sempre, há os que, sem questionamento algum, acreditam piamente em tudo que lhes é inculcado pela religião, na infância, e outros que questionam tudo e não acreditam em nada. Uns acreditam que o homem foi criado por deus; outros acreditam que deus foi criado pelo homem.
Sabe-se que ter fé corresponde a acreditar em algo que não se pode provar. Sabe-se também que as pessoas mais intuitivas carregam consigo grande carga de misticismo. Elas têm tendência a acreditar em tudo que se relaciona ao sobrenatural: divindades, dogmas, milagres, alma, vida pós-morte, fantasmas, macumbas, e assim por diante. Por outro lado, pessoas reflexivas tendem ao racionalismo. Preferem o preto no branco. Não se deixam levar por nenhum tipo de crendice. A fé ou a falta de fé seria inerente ao ser?

Outro dia, encontrei a resposta, ao folhear a revista Veja* (vol. 2449 – ano 48 – nº43, de 28-10-2015), num artigo sobre a origem da fé, assinado por Adriana Dias Lopes.
Segundo consta, pesquisadores da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, afirmam que as pessoas intuitivas são mais religiosas que as reflexivas. As de raciocínio lógico têm dificuldade em acreditar em algo impreciso. Tal afirmação fundamenta-se no resultado de testes aplicados em cerca de 1200 voluntários, na faixa etária de 30 anos.
Outro dado ainda mais interessante, na mesma matéria: o cientista americano Dean Hamer, coordenador do setor de genética do National Cancer Institute, após ter avaliado o grau de espiritualidade em mil pessoas, detectou uma extraordinária coincidência:

        “aqueles que tinham sentimentos religiosos compartilhavam o gene VMAT2, responsável           pela regulação das chamadas monoaminas, grupo de compostos que incluem a adrenalina           (substância excitante) e a serotonina (sensação de prazer). As monoaminas têm papel        
        importante na construção da realidade e na percepção das alterações da consciência, 
        situações comuns em experiências místicas”. (pg.86)

Sua descoberta leva a crer que a fé religiosa é involuntária; depende  simplesmente de um gene. Donde se conclui que um cético, oriundo de um meio extremamente religioso, não precisa mais se sentir a “ovelha negra da família”.

Isso já havia sido demonstrado bem antes, no século XIX, num clássico da literatura universal. Servidão humana, de William Somerset Maugham. Philip, personagem principal do livro, órfão desde tenra idade, foi criado dentro de um vicariato, por seu tio, pastor da igreja local. O tutor fez questão de inculcar no garoto tudo que se fizesse necessário, no intuito de que, um dia, ele viesse a ser seu sucessor. Na juventude, num internato religioso, Philip começa a refletir sobre sua vocação. Decide abandonar o liceu, deixa de crer em tudo e ganha o mundo. Tal decisão lhe tira um peso nos ombros, despojando-o da responsabilidade que carregava em cada um de seus atos, para a salvação de sua alma. Ao se livrar de tais amarras, experimentou uma viva sensação de liberdade. O narrador deixa claro que religião é questão de temperamento. Se a pessoa tiver o espírito inclinado para ela, acreditará em todos os ensinamentos religiosos. Caso contrário, nada adiantará. Um dia ela acabará se afastando desses ensinamentos.

 Vê-se que, coincidentemente, o pensador Maugham, nascido em 1874, afirma, por meio da ficção, o que o pesquisador Hamer afirma, pela ciência, em 2015. O fato de ter ou não ter fé independe do indivíduo.

Seja como for, o ser humano, único animal consciente de sua finitude, e único com capacidade de questionar o sentido da vida, sente necessidade de recorrer a algo maior, imponderável, para justificar sua existência. Muitos deles passam a vida tentando explicar o inexplicável. Alguns se apoiam no conformismo religioso; outros veem , com indignação, a falta de sentido da existência.

 Finalizo com uma citação do Papa Francisco, que, com extraordinária lucidez e coragem, assume a postura de não apartar religião e ciência: “Sobre muitas questões concretas, a Igreja não tem motivo para propor uma palavra definitiva; deve escutar e promover o debate honesto entre os cientistas, respeitando a diversidade de opiniões.”

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGES)