terça-feira, 15 de dezembro de 2015

A ORIGEM DA FÉ

Jô Drumond

Sempre me intrigou o fato de que pessoas de uma mesma família, criadas sob os mesmos preceitos religiosos, no mesmo tempo e espaço, possam tomar caminhos totalmente opostos, no que concerne à fé. Desde sempre, há os que, sem questionamento algum, acreditam piamente em tudo que lhes é inculcado pela religião, na infância, e outros que questionam tudo e não acreditam em nada. Uns acreditam que o homem foi criado por deus; outros acreditam que deus foi criado pelo homem.
Sabe-se que ter fé corresponde a acreditar em algo que não se pode provar. Sabe-se também que as pessoas mais intuitivas carregam consigo grande carga de misticismo. Elas têm tendência a acreditar em tudo que se relaciona ao sobrenatural: divindades, dogmas, milagres, alma, vida pós-morte, fantasmas, macumbas, e assim por diante. Por outro lado, pessoas reflexivas tendem ao racionalismo. Preferem o preto no branco. Não se deixam levar por nenhum tipo de crendice. A fé ou a falta de fé seria inerente ao ser?

Outro dia, encontrei a resposta, ao folhear a revista Veja* (vol. 2449 – ano 48 – nº43, de 28-10-2015), num artigo sobre a origem da fé, assinado por Adriana Dias Lopes.
Segundo consta, pesquisadores da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, afirmam que as pessoas intuitivas são mais religiosas que as reflexivas. As de raciocínio lógico têm dificuldade em acreditar em algo impreciso. Tal afirmação fundamenta-se no resultado de testes aplicados em cerca de 1200 voluntários, na faixa etária de 30 anos.
Outro dado ainda mais interessante, na mesma matéria: o cientista americano Dean Hamer, coordenador do setor de genética do National Cancer Institute, após ter avaliado o grau de espiritualidade em mil pessoas, detectou uma extraordinária coincidência:

        “aqueles que tinham sentimentos religiosos compartilhavam o gene VMAT2, responsável           pela regulação das chamadas monoaminas, grupo de compostos que incluem a adrenalina           (substância excitante) e a serotonina (sensação de prazer). As monoaminas têm papel        
        importante na construção da realidade e na percepção das alterações da consciência, 
        situações comuns em experiências místicas”. (pg.86)

Sua descoberta leva a crer que a fé religiosa é involuntária; depende  simplesmente de um gene. Donde se conclui que um cético, oriundo de um meio extremamente religioso, não precisa mais se sentir a “ovelha negra da família”.

Isso já havia sido demonstrado bem antes, no século XIX, num clássico da literatura universal. Servidão humana, de William Somerset Maugham. Philip, personagem principal do livro, órfão desde tenra idade, foi criado dentro de um vicariato, por seu tio, pastor da igreja local. O tutor fez questão de inculcar no garoto tudo que se fizesse necessário, no intuito de que, um dia, ele viesse a ser seu sucessor. Na juventude, num internato religioso, Philip começa a refletir sobre sua vocação. Decide abandonar o liceu, deixa de crer em tudo e ganha o mundo. Tal decisão lhe tira um peso nos ombros, despojando-o da responsabilidade que carregava em cada um de seus atos, para a salvação de sua alma. Ao se livrar de tais amarras, experimentou uma viva sensação de liberdade. O narrador deixa claro que religião é questão de temperamento. Se a pessoa tiver o espírito inclinado para ela, acreditará em todos os ensinamentos religiosos. Caso contrário, nada adiantará. Um dia ela acabará se afastando desses ensinamentos.

 Vê-se que, coincidentemente, o pensador Maugham, nascido em 1874, afirma, por meio da ficção, o que o pesquisador Hamer afirma, pela ciência, em 2015. O fato de ter ou não ter fé independe do indivíduo.

Seja como for, o ser humano, único animal consciente de sua finitude, e único com capacidade de questionar o sentido da vida, sente necessidade de recorrer a algo maior, imponderável, para justificar sua existência. Muitos deles passam a vida tentando explicar o inexplicável. Alguns se apoiam no conformismo religioso; outros veem , com indignação, a falta de sentido da existência.

 Finalizo com uma citação do Papa Francisco, que, com extraordinária lucidez e coragem, assume a postura de não apartar religião e ciência: “Sobre muitas questões concretas, a Igreja não tem motivo para propor uma palavra definitiva; deve escutar e promover o debate honesto entre os cientistas, respeitando a diversidade de opiniões.”

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGES)

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

O CAFUNÉ

*Jô Drumond


Quem não gosta de um cafuné? Nada mais relaxante que sentir a fricção, no couro cabeludo, ou o deslizamento de hábeis dedos sobre as madeixas, sobretudo com a cabeça pousada sobre o colo de uma pessoa amada. Melhor ainda se isso acontecer na malemolência da sesta. O cafuné pode ser um simples gesto de carinho, mas tem também a acepção de “catação de piolhos”. Esse hábito, raro hoje em dia, era muito comum em tempos de antanho, sobretudo no período da colonização brasileira.

Tal desfrute se fazia necessário, não pela sensação carinhosa, mas devido à avassaladora infestação de piolhos, numa época em que ainda não havia medicamentos para combatê-los. A catação de piolhos era comum em todo o mundo, de maneira mais ou menos discreta, entre quatro paredes, mas aqui, no Brasil, esse hábito era mantido a portas e janelas escancaradas, no passeio ou até mesmo em praça pública.

Tal hábito era visto mais comumente nas classes inferiores. Na aristocracia urbana era praticado longe dos olhares inoportunos, mas acontecia com ambos os sexos, em todas as idades e em todas as classes sociais. Via-se que até mesmo homens de prestígio negociavam com forasteiros enquanto se deixavam “cafunezar”. Nas festas ou solenidades da aristocracia rural, não era incomum a cena descrita por Expilly: “senhoras recostarem-se nos espaldares das cadeiras, entregando a cabeça a uma jovem escrava enquanto a conversa prossegue o seu curso”. Vejamos um texto de Charles Expilly, sobre mulheres e costumes no Brasil colônia:

À hora do grande calor, as senhoras,recolhidas ao interior dos aposentos deitam-se no colo da mucama favorita, entregando-lhe a cabeça. A mucama passa e repassa seus dedos indolentes na espessa cabeleira que se desenrola diante dela. Mexe em todos os sentidos naquela luxuriante meada de seda. Caça delicadamente a raiz dos cabelos, beliscando a pele com habilidade e fazendo ouvir, de tempos a tempos, um estalido seco, entre a unha do polegar e a do dedo médio. Esta sensação torna-se uma fonte de prazer para o sensualismo das crioulas. Um voluptuoso arrepio percorre os seus membros ao contato dos dedos acariciadores [...] algumas sucumbem à deliciosa sensação e desfalecem de prazer sobre os joelhos da mucama [...] Mesmo os homens não desdenham, durante as horas de lazer, a carícia de uns dedos ágeis, afagando as suas cabeleiras. Um delicioso arrepio corre-lhe o corpo, cada vez que sentem o ruído significativo das unhas da mucama. (EXPILLY,s/d, pg.366-9)

 Em1805, Thomas Lindley afirmava, em seu livro Viagem ao Brasil, que o que era considerado vulgar na Espanha e em Portugal era aqui praticado naturalmente. Segundo ele, era quase impossível entrar em uma residência sem deparar com uma dessas cenas.

A catação de piolhos, a princípio, tinha caráter de higiene e profilaxia, como entre os animais, no combate às pulgas e a outros parasitas. No entanto sociólogos e psicanalistas relacionam esse hábito à sensualidade. Tal costume coletivo poderia ser, segundo eles, uma maneira lícita de dar vazão à libido publicamente, sem despertar a maldade alheia. A procura do piolho corresponderia, portanto, à procura do prazer. Roger Bastide, em sua obra A psicanálise do cafuné (1941), analisa e pesquisa o prazer oculto do cafuné. Segundo ele, entre jovens, seria uma masturbação simbólica.

A condição feminina do período colonial é muito bem retratada por Gilberto Freyre, em sua obra Casa grande e Senzala. As mulheres do Brasil colônia, desde jovens, se submetiam à tirania paterna e, posteriormente, à tirania do marido. A educação religiosa e a tradição moral representavam uma barreira intransponível a seus desejos libidinosos, recalcados durante toda a vida. Meninas de 12 ou 13anos tornavam-se esposas procriadoras, de senhores de 40 a 70 anos, sem direito ao prazer sexual. Tal prazer era reservado aos homens, que se deitavam e se deleitavam com todas as escravas que lhes apetecessem, mesmo contra a vontade delas.


 Por essa diferenciação exagerada (dos sexos), se justifica o chamado padrão duplo de moralidade, dando ao homem todas as liberdades do gozo físico do amor e limitando o da mulher a ir para a cama com o marido, toda santa noite que ele estiver disposto a procriar (FREYRE, 1934, p.117-8)

A submissão das mulheres, a fidelidade delas exigida e a severa punição das adúlteras, em contraste com a poligamia descarada dos maridos, bolinando as serviçais a olhos vistos, mesmo dentro do lar, propiciaram às esposas uma vida reclusa entre mulheres, destinadas a bordar, a tagarelar e a fazer doces e bolos apetitosos.Tal convívio acabou gerando naturalmente, certas afinidades, certas intimidades e, por conseguinte, certas liberdades entre elas. A tentação lésbica, cada vez mais recalcada pela moral e pelos bons costumes, acabou sendo substituída pela catação de piolhos, aprovada e aceita pela sociedade. Bastide afirma que “o cafuné foi, portanto, um substitutivo dos divertimentos lésbicos. E por isso mesmo ele teve uma função útil, pois representou uma salvaguarda da moral.”

Segundo ele, tal costume desapareceu com o fim da família patriarcal e com o advento da família conjugal, ou seja, quando a relação de subordinação entre os esposos passou a ser de colaboração. O casamento por amor passou a suplantar o casamento por conveniência.

Assim, o cafuné, como instituição social, desapareceu, mesmo antes do aparecimento dos remédios específicos contra a infestação de piolhos. Todavia, por incrível que pareça, em pleno século XXI, os piolhos continuam a passear sobre as cabecinhas infantis, em creches e escolas maternais, das mais humildes às mais sofisticadas. Os pais são avisados por meio de discretos bilhetes nos quais se usa toda sorte de eufemismos para disfarçar a indesejada infestação, vista hoje em dia como algo vergonhoso para a instituição. O hábito da “catação” desapareceu, mas o piolho ainda insiste em dar o ar da sua graça.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGES)

Referências
BASTIDE,Roger. Psicanálise do cafuné e estudos de sociologia estética brasileira. São Paulo: Editora Guaíra Ltda, 1941.
EXPILLY,Charles. Mulheres e costumes no Brasil (trad. de G. Penalva), São Paulo: Cia Ed. Nacional, 1863.
LINDLEY,Thomas.Voyage au Brésil (trad. Doulès) Paris,1805.


FREYRE,Gilberto. Casa Grande e Senzala, 2.ed. Rio de Janeiro: Schmidt, 1934.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Trabalho à Distância

*Jô Drumond

 Há cerca de uma década, tive acesso ao resultado de uma enquete feita na cidade de São Paulo, cujo objetivo era detectar os maiores sonhos de consumo dos habitantes daquela megalópole. Por incrível que pareça, os maiores desejos dos paulistanos correspondiam ao que se tem e ao que se vive em pequenas cidades: morar numa casa com jardim e quintal, almoçar juntamente com a família, morar perto do trabalho... Esse resultado deixa patente que o progresso pode representar um retrocesso na qualidade de vida dos cidadãos. Sabe-se que os problemas enfrentados com resignação (ou não) pela maioria dos habitantes das metrópoles são os mesmos: a correria do dia a dia, o ritmo frenético da cidade grande, o trânsito infernal, engarrafamentos, poluição, exiguidade dos apartamentos, espigões, falta de relacionamento amistoso com a vizinhança... Na rua, cada um representa apenas um dado estatístico. Um desconhecido entre desconhecidos, após oito horas diárias de trabalho, acrescidas de uma a quatro horas no trânsito, volta cansado e sem disposição para dar atenção à família. O salário, na maioria das vezes, não compensa o transtorno, nem o esforço.

Nos dias de hoje, felizmente, bons ares tecnológicos sopram sobre profissões que podem ser exercidas à distância. Graças à popularização da internet, pode-se trabalhar longe dos escritórios, mediante smartphones e tabletsdevidamente conectados. O que se chama atualmente de “trabalho remoto” resolve grande parte das questões profissionais, evita deslocamentos, desafoga o trânsito, permite mais horas de sono e mais tempo para dar atenção a todos, até mesmo ao cachorrinho de estimação. Além de tomar as refeições com os familiares, alguns profissionais conseguem um tempinho para se arriscar como “gourmets”, na preparação de pratos especiais, para o deleite de toda a família. A vida familiar ganha novos sabores, novas cores e mais amores.

Com o advento do emprego flexível, devem-se revisar as relações trabalhistas.  Abole-se a tradição de “bater o ponto”. O trabalho pode ser feito na rua, numa praça, num parque, em casa, enfim, em qualquer lugar, desde que haja conexão. A cada dia, um maior número de profissionais adere ao trabalho remoto. Reuniões são feitas à distância, peloskype, contatos profissionais são feitos pelas redes sociais, sobretudo pelo whatsApp.

Para quem quer abrir seu próprio negócio, há o home based, uma espécie de franquia que permite gerenciar tudo sem sair de casa. Os investimentos são mais baixos; evitam-se, por exemplo, a compra e a manutenção de um ponto comercial.

Nesse período de transição ainda há insegurança e dificuldade de adaptação, mas com o tempo tudo se ajeita. A comunicação via satélite é um caminho sem volta. No século XXI, os trabalhadores terão que se adaptar à Revolução Tecnológica, assim como os do século XVIII tiveram que se adaptar à Revolução Industrial. Como dizem os franceses, “tout est bien qui finit bien”.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)

Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGES)