segunda-feira, 14 de setembro de 2015

OS MUROS DA VERGONHA

*Jô Drumond

Sabe-se que o muro de Berlim, erguido em 1961 pela União Soviética,  conhecido também como “O muro da vergonha”, dividiu a Alemanha durante 28 anos. Atualmente, há um contrassenso generalizado a respeito de barreiras internacionais. Por um lado, louva-se a queda do muro de Berlim, ocorrida no final da década de 90. Por outro, constroem-se mais e mais muros ou cercas fronteiriças, com o intuito de evitar a migração e de aumentar a segurança da população. Segundo consta, há atualmente uma extensão de edificações de barreiras nacionais quatro vezes superior à do muro de Berlim, ou seja, 40.000 quilômetros, sendo que a metade ainda se encontra em obras.
A Hungria construiu uma cerca de quatro metros de altura, ao longo de 170 quilômetros de fronteira com a Sérvia. Israel também ergueu barreira para evitar infiltração de terroristas da Cisjordânia e planeja proteger-se do Estado Islâmico, fechando, da mesma forma, a fronteira com a Jordânia. O Quênia, a Arábia Saudita e a Turquia seguem o mesmo exemplo. Nos Estados Unidos, cogita-se, por motivos eleitoreiros, a construção de cerca de três mil quilômetros na fronteira com o México. Não sabemos até quando isso vai durar, nem a que proporções chegará esse tipo de atitude defensiva.
A meu ver, seria mais enriquecedor considerar a migração sob uma ótica positiva. Os que são contra alegam a facilitação de atos terroristas e o grande afluxo de foragidos de guerra. Nesse caso, em vez de interferir nos processos migratórios, seria melhor criar eficientes mecanismos para coibição do terrorismo e para assentamento das famílias que buscam condições dignas de vida.
Ultimamente duas notícias chocantes trouxeram à baila a discussão referente à imigração e à criação de impedimentos migratórios: a morte de 71 refugiados encontrados asfixiados dentro de um caminhão, na estrada entre Budapeste e Viena, e a imagem estampada em jornais e revistas do mundo todo, de mais uma vítima dos inúmeros naufrágios de embarcações repletas de refugiados. A imagem do garotinho sírio, Aylan, cujo corpo emborcado, como se estivesse dormindo, numa praia da Turquia, emocionou a todos.
Na revista Veja de 02 de setembro de 2015, foi publicada, por Nathalia Watkins, uma matéria reflexiva sobre o assunto, intitulada “A multiplicação de barreiras”, na qual há um relato sobre esse recente tipo de edificação.
Tal constatação nos deixa perplexos, visto que a era da globalização deveria primar pela abolição de todo e qualquer tipo de barreira, seja política, econômica, religiosa ou cultural. Ao contrário, criou-se uma insegurança generalizada no que se refere à perda da identidade e da soberania nacional. Segundo o sociólogo inglês Frank Laczko, o que mais aflige os povos em geral, hoje em dia, é a sensação de vulnerabilidade, devido à falta de controle em zonas fronteiriças.
Contrariamente à acepção usual de fronteira como delimitação ou zona de conflitos, em Semiótica da Cultura define-se fronteira como lugar culturalmente muito rico, onde sistemas culturais completamente diferentes se inter-relacionam e interagem Nas manifestações culturais contemporâneas, nota-se certa tendência ao esfacelamento das fronteiras e ao fortalecimento do hibridismo cultural (sincretismo, mestiçagem, crioulismo etc). Não se trata, no entanto, de mescla ou fusão e sim da convivência de elementos alógenos e heterogêneos. Por analogia, na culinária, os vários condimentos, combinados diferentemente, produzem novos sabores, mantendo cada um seu sabor original. Dessa forma, diferentes culturas, em contato umas com outras, se expandem e se enriquecem, sem perder seus traços distintivos.
Segundo a matéria acima mencionada, pesquisas acadêmicas mostram que, contrariamente ao que se supõe, nos Estados Unidos “a taxa de pessoas  ativas entre os imigrantes é mais alta do que no resto da população”, donde se conclui que a imigração não é tão prejudicial ao país quanto parece. Pode ser até benéfica, pois os imigrantes se encarregam normalmente de tarefas e serviços mais pesados e difíceis, “les taches pénibles”, poupando assim os nativos dos encargos indesejados.
É interessante observar que a fortificação de fronteiras remonta a 220 anos a.C., época em que foi iniciada a grande muralha da China, com o intuito de evitar ataques dos hunos. No medievo, as cidades e os castelos eram fortificados para resistir a ataques inimigos.
Thomas Hobbes (1588/1679) tinha razão ao afirmar: “o homem é o lobo do homem”. Em outras palavras, no afã de usar seu poder para se autopreservar e para satisfazer seus desejos, o homem está prestes a guerrear, mesmo sem causa aparente.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)

Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGES

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

JOAQUIM FUBÁ

*Jô Drumond
Em meados do século passado, Joaquim Fubá tinha um monjolo, no Córrego do Monjolo, em Patos de Minas. Dizem que ele era arredio a transações comerciais. Todo o dinheiro arrecadado com a venda do fubá e com outras negociações era colocado debaixo do colchão. Seus filhos, já crescidos, insistiam para que ele não guardasse dinheiro em casa. − Lugar de dinheiro é no banco, diziam.

Certo dia, ele encheu de dinheiro três sacos de 60 kg, colocou-os num carrinho de pedreiro e dirigiu-se ao banco mais próximo. Apresentou-se no estabelecimento bancário para falar com o gerente. Estava malvestido, sujo, de sandálias havaianas e chapéu de palha.

De longe, o gerente avistou a figura pobretona e pensou que fosse algum pedinte. Deu-lhe uns trocados, na esperança de que ele se fosse. Seu Joaquim agradeceu, colocou as moedas no bolso e continuou pacientando. Alguns funcionários abordaram-no, querendo saber do que se tratava. Ele batia pé dizendo que só falaria ao gerente e que não arredaria pé enquanto não lhe falasse. Findo o expediente, após horas de espera, foi finalmente atendido. Disse então ao gerente que seus filhos não queriam que ele guardasse dinheiro em casa. Portanto gostaria de abrir uma conta.
 Quando lhe perguntaram sobre o montante a ser depositado, o futuro cliente se embaraçou. Não sabia o que significava “montante”, e muito menos qual seria. O velho não tinha a mínima ideia de quanto dispunha. Pegou os três sacos e despejou a dinheirama sobre a mesa. O gerente ficou tão nervoso com a inusitada situação, que teve que sair às pressas, com dor de barriga. Dois funcionários passaram horas contando as cédulas. Era tanto, tanto dinheiro... muito acima da quantia que constava nos caixas do banco, naquela data.
Nem sempre se pode fiar nas aparências. Um engano, às vezes, causa situações constrangedoras. O caso do Joaquim Fubá, a mim narrado por Marcão, em minha última ida a Patos de Minas, remeteu-me a uma situação embaraçosa, acontecida comigo em Vitória (ES), devida ao mesmo tipo de engano.

Certa noite, estava eu sozinha, ao volante, num movimentado cruzamento, quando percebi a aproximação de um tipo mal-encarado e molambento, de cerca de 30 anos, com péssima aparência. Olhou-me fixamente e veio em minha direção. Temendo um assalto, acabei de fechar o vidro do carro, que se encontrava semiaberto. Ao perceber minha reação, ele começou a me destratar.

̶ Qualé, madame? Tá achando que sou bandido? Só porque sou pobre?

Continuou a dirigir-me um monte de impropérios. Fiquei estática. O semáforo não abria. Todos me olhavam. O homem não parava de vociferar aos quatro ventos. Eu me sentia culpada, sem ter culpa alguma. Não via a hora de dar o fora dali, mas o semáforo continuava fechado. Demorou uma eternidade para abrir.

Ao me ver livre daquele embaraço, pus-me a pensar no temor disseminado nas grandes metrópoles. Com o perdão do trocadilho, vivemos sobressaltados temendo ser assaltados. Todas as pessoas estranhas, sobretudo de má aparência, são suspeitas até prova em contrário. Como viver em paz com tanta insegurança?

Sinto saudades da pacata Patos de Minas da época do Joaquim Fubá, na década de sessenta. Patos de hoje não é mais a mesma. Tomou ares de cidade grande e abarcou todos os atributos do novo estilo de vida, inclusive o da insegurança. Por toda parte veem-se grades, cercas elétricas e alarmes, aparatos inexistentes na minha juventude. Não há mais córrego, não há mais monjolo, não há mais Joaquim Fubá.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGES

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

CORTINA DE FERRO

* Jô Drumond 

O momento mais comovente de minha viagem à Europa, em junho de 2015, aconteceu no coração de Berlim, próximo ao renomado portão de Brandemburgo.

Após cansativa visita guiada, a pé, sob sol escaldante, num longo percurso pelo centro  histórico, paramos para apreciar o belo monumento neoclássico. Trata-se de uma antiga porta de entrada da cidade, construída no final do século XVIII, em formato de arco do triunfo.


Muitos eventos históricos se deram nesse local, considerado um dos marcos mais conhecidos da Alemanha. Tal portão, símbolo da unidade e da paz europeia, ficou do lado sombrio do Muro de Berlim, no pós-guerra, isolado e inacessível aos ocidentais.

Durante a caminhada turística, muito se falou sobre a construção do  “muro da vergonha” e sobre os efeitos funestos sobre a população. Segundo nosso guia, após a divisão da Alemanha, diariamente, milhares de pessoas migravam do lado oriental para o lado ocidental, fugindo do regime comunista. 

Para evitar a fuga maciça, numa madrugada de 1961, ergueu-se o muro, sob os auspícios da União Soviética. A cidade se viu dividida em dois blocos. O oriental socialista, sob jugo soviético, e o ocidental capitalista, governado pelos países aliados. Durante 28 anos, dezenas de milhares de famílias ficaram divididas, sem contato algum. Quantos amigos, quantos colegas de trabalho, quantos parentes ficaram sem se comunicar durante quase três décadas, estando tão próximos geograficamente!

Muitos não puderam voltar pra casa, naquela noite fatídica. Outros  morreram em vãs tentativas de transpor a metafórica “cortina de ferro”, gradeada, eletrificada, patrulhada 24 horas por dia, equipada com dispositivos de alarme e vigiada por cães ferozes.

Ao nos aproximarmos do monumento, deparamos com uma cena teatral. Uma senhora bem-vestida, bonita, alta, forte, loira, de aproximadamente 50 anos, se deslocava ruidosamente de um lado para outro. Corria cerca de três ou quatro metros, parava, saltava diversas vezes com os braços para cima e dava gritos de euforia. Voltava correndo na mesma direção e repetia a cena, sem cessar. Parei para assistir ao inusitado espetáculo. Todos os transeuntes fizeram o mesmo. Pensei que se tratasse de uma louca ou de alguém que tivesse acabado de surtar. Aproximei-me de um senhor alto, louro, protótipo da raça ariana germânica, e perguntei, em inglês, o que estava acontecendo. Ele me respondeu que aquela mulher era sua esposa. Tinham vindo de Frankfurt para visitar Berlim, pela primeira vez, após a queda do muro. Ela estava eufórica pelo fato de poder transitar livremente de um lado para outro, no local onde o muro fora derrubado. Era uma travessia simbólica, uma espécie de libertação. 

Comemorava o fim de um período negro na história do país, dividido em dois mundos opostos.
Enquanto conversávamos, a tal senhora se aproximou de nós e, como  disse o poeta Vinícius, “do riso fez-se o pranto”. Desatou a chorar, convulsivamente. Aquilo me emocionou sobremaneira. Choramos juntas, abraçadas, unidas por um estranho sentimento de desalento e redenção.

Nunca imaginei que algum dia eu pudesse me encontrar em tal situação, chorando por uma causa que não me dizia respeito, num país distante, abraçada a uma desconhecida cujo nome nunca saberei, e que não falava minha língua. Não se tratava apenas de choro solidário; foi explosão fraterna, brotada espontaneamente dos recônditos da alma.

Após o acontecido, pus-me a refletir sobre as relações humanas, em geral. Como entender a complexidade do ser humano, capaz de abraçar tanto uma causa guerreira ou  mortífera, como Hitler, quanto uma causa humanitária, como Luther King? Por um lado, pode ser cruel, insensível, capaz das maiores malvadezas; por outro lado, bom, sensível e solidário. Recorro aqui à metáfora da mandioca, utilizada por Guimarães Rosa para se expressar sobre esse tema: a mandioca mansa (comestível), pode se transformar em mandioca brava (venenosa), e vice-versa.

Além de ambíguo, o ser humano  às vezes  também é antagônico; carrega em si um maniqueísmo latente. Em alguns, prevalece a face do Bem; em outros, a do Mal. No entanto, muito além do Bem e do Mal, a meu ver, prevalece o sentimento de fraternidade. Talvez tenha sido esse sentimento que me fez chorar por uma causa alheia, abraçada a uma desconhecida diante do portão de Brandemburgo.


Jô Drumond:  Escritora e membro da: AEL (Academia Espírito-santense de Letras). AFESL (Academia Feminina Espírito-santense de Letras) AFEMIL (Academia Feminina Mineira de Letras) IHGES (Instituto Histórico e Geográfico do ES).