quinta-feira, 27 de agosto de 2015

JOAQUIM FUBÁ

*Jô Drumond
Em meados do século passado, Joaquim Fubá tinha um monjolo, no Córrego do Monjolo, em Patos de Minas. Dizem que ele era arredio a transações comerciais. Todo o dinheiro arrecadado com a venda do fubá e com outras negociações era colocado debaixo do colchão. Seus filhos, já crescidos, insistiam para que ele não guardasse dinheiro em casa. − Lugar de dinheiro é no banco, diziam.

Certo dia, ele encheu de dinheiro três sacos de 60 kg, colocou-os num carrinho de pedreiro e dirigiu-se ao banco mais próximo. Apresentou-se no estabelecimento bancário para falar com o gerente. Estava malvestido, sujo, de sandálias havaianas e chapéu de palha.

De longe, o gerente avistou a figura pobretona e pensou que fosse algum pedinte. Deu-lhe uns trocados, na esperança de que ele se fosse. Seu Joaquim agradeceu, colocou as moedas no bolso e continuou pacientando. Alguns funcionários abordaram-no, querendo saber do que se tratava. Ele batia pé dizendo que só falaria ao gerente e que não arredaria pé enquanto não lhe falasse. Findo o expediente, após horas de espera, foi finalmente atendido. Disse então ao gerente que seus filhos não queriam que ele guardasse dinheiro em casa. Portanto gostaria de abrir uma conta.
 Quando lhe perguntaram sobre o montante a ser depositado, o futuro cliente se embaraçou. Não sabia o que significava “montante”, e muito menos qual seria. O velho não tinha a mínima ideia de quanto dispunha. Pegou os três sacos e despejou a dinheirama sobre a mesa. O gerente ficou tão nervoso com a inusitada situação, que teve que sair às pressas, com dor de barriga. Dois funcionários passaram horas contando as cédulas. Era tanto, tanto dinheiro... muito acima da quantia que constava nos caixas do banco, naquela data.
Nem sempre se pode fiar nas aparências. Um engano, às vezes, causa situações constrangedoras. O caso do Joaquim Fubá, a mim narrado por Marcão, em minha última ida a Patos de Minas, remeteu-me a uma situação embaraçosa, acontecida comigo em Vitória (ES), devida ao mesmo tipo de engano.

Certa noite, estava eu sozinha, ao volante, num movimentado cruzamento, quando percebi a aproximação de um tipo mal-encarado e molambento, de cerca de 30 anos, com péssima aparência. Olhou-me fixamente e veio em minha direção. Temendo um assalto, acabei de fechar o vidro do carro, que se encontrava semiaberto. Ao perceber minha reação, ele começou a me destratar.

̶ Qualé, madame? Tá achando que sou bandido? Só porque sou pobre?

Continuou a dirigir-me um monte de impropérios. Fiquei estática. O semáforo não abria. Todos me olhavam. O homem não parava de vociferar aos quatro ventos. Eu me sentia culpada, sem ter culpa alguma. Não via a hora de dar o fora dali, mas o semáforo continuava fechado. Demorou uma eternidade para abrir.

Ao me ver livre daquele embaraço, pus-me a pensar no temor disseminado nas grandes metrópoles. Com o perdão do trocadilho, vivemos sobressaltados temendo ser assaltados. Todas as pessoas estranhas, sobretudo de má aparência, são suspeitas até prova em contrário. Como viver em paz com tanta insegurança?

Sinto saudades da pacata Patos de Minas da época do Joaquim Fubá, na década de sessenta. Patos de hoje não é mais a mesma. Tomou ares de cidade grande e abarcou todos os atributos do novo estilo de vida, inclusive o da insegurança. Por toda parte veem-se grades, cercas elétricas e alarmes, aparatos inexistentes na minha juventude. Não há mais córrego, não há mais monjolo, não há mais Joaquim Fubá.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGES

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

CORTINA DE FERRO

* Jô Drumond 

O momento mais comovente de minha viagem à Europa, em junho de 2015, aconteceu no coração de Berlim, próximo ao renomado portão de Brandemburgo.

Após cansativa visita guiada, a pé, sob sol escaldante, num longo percurso pelo centro  histórico, paramos para apreciar o belo monumento neoclássico. Trata-se de uma antiga porta de entrada da cidade, construída no final do século XVIII, em formato de arco do triunfo.


Muitos eventos históricos se deram nesse local, considerado um dos marcos mais conhecidos da Alemanha. Tal portão, símbolo da unidade e da paz europeia, ficou do lado sombrio do Muro de Berlim, no pós-guerra, isolado e inacessível aos ocidentais.

Durante a caminhada turística, muito se falou sobre a construção do  “muro da vergonha” e sobre os efeitos funestos sobre a população. Segundo nosso guia, após a divisão da Alemanha, diariamente, milhares de pessoas migravam do lado oriental para o lado ocidental, fugindo do regime comunista. 

Para evitar a fuga maciça, numa madrugada de 1961, ergueu-se o muro, sob os auspícios da União Soviética. A cidade se viu dividida em dois blocos. O oriental socialista, sob jugo soviético, e o ocidental capitalista, governado pelos países aliados. Durante 28 anos, dezenas de milhares de famílias ficaram divididas, sem contato algum. Quantos amigos, quantos colegas de trabalho, quantos parentes ficaram sem se comunicar durante quase três décadas, estando tão próximos geograficamente!

Muitos não puderam voltar pra casa, naquela noite fatídica. Outros  morreram em vãs tentativas de transpor a metafórica “cortina de ferro”, gradeada, eletrificada, patrulhada 24 horas por dia, equipada com dispositivos de alarme e vigiada por cães ferozes.

Ao nos aproximarmos do monumento, deparamos com uma cena teatral. Uma senhora bem-vestida, bonita, alta, forte, loira, de aproximadamente 50 anos, se deslocava ruidosamente de um lado para outro. Corria cerca de três ou quatro metros, parava, saltava diversas vezes com os braços para cima e dava gritos de euforia. Voltava correndo na mesma direção e repetia a cena, sem cessar. Parei para assistir ao inusitado espetáculo. Todos os transeuntes fizeram o mesmo. Pensei que se tratasse de uma louca ou de alguém que tivesse acabado de surtar. Aproximei-me de um senhor alto, louro, protótipo da raça ariana germânica, e perguntei, em inglês, o que estava acontecendo. Ele me respondeu que aquela mulher era sua esposa. Tinham vindo de Frankfurt para visitar Berlim, pela primeira vez, após a queda do muro. Ela estava eufórica pelo fato de poder transitar livremente de um lado para outro, no local onde o muro fora derrubado. Era uma travessia simbólica, uma espécie de libertação. 

Comemorava o fim de um período negro na história do país, dividido em dois mundos opostos.
Enquanto conversávamos, a tal senhora se aproximou de nós e, como  disse o poeta Vinícius, “do riso fez-se o pranto”. Desatou a chorar, convulsivamente. Aquilo me emocionou sobremaneira. Choramos juntas, abraçadas, unidas por um estranho sentimento de desalento e redenção.

Nunca imaginei que algum dia eu pudesse me encontrar em tal situação, chorando por uma causa que não me dizia respeito, num país distante, abraçada a uma desconhecida cujo nome nunca saberei, e que não falava minha língua. Não se tratava apenas de choro solidário; foi explosão fraterna, brotada espontaneamente dos recônditos da alma.

Após o acontecido, pus-me a refletir sobre as relações humanas, em geral. Como entender a complexidade do ser humano, capaz de abraçar tanto uma causa guerreira ou  mortífera, como Hitler, quanto uma causa humanitária, como Luther King? Por um lado, pode ser cruel, insensível, capaz das maiores malvadezas; por outro lado, bom, sensível e solidário. Recorro aqui à metáfora da mandioca, utilizada por Guimarães Rosa para se expressar sobre esse tema: a mandioca mansa (comestível), pode se transformar em mandioca brava (venenosa), e vice-versa.

Além de ambíguo, o ser humano  às vezes  também é antagônico; carrega em si um maniqueísmo latente. Em alguns, prevalece a face do Bem; em outros, a do Mal. No entanto, muito além do Bem e do Mal, a meu ver, prevalece o sentimento de fraternidade. Talvez tenha sido esse sentimento que me fez chorar por uma causa alheia, abraçada a uma desconhecida diante do portão de Brandemburgo.


Jô Drumond:  Escritora e membro da: AEL (Academia Espírito-santense de Letras). AFESL (Academia Feminina Espírito-santense de Letras) AFEMIL (Academia Feminina Mineira de Letras) IHGES (Instituto Histórico e Geográfico do ES).

terça-feira, 24 de março de 2015

DESPAIXÃO


Jô Drumond
Cadeira n° 10 da Academia Espírito Santense de Letras

Há pessoas que passam rapidamente pela vida da gente e se vão para sempre. Outras marcam presença durante algum tempo e também desaparecem – refletia Anita. Há aquelas que, desaparecendo ou não, se integram à nossa história de vida. Dizem que, normalmente, ninguém se esquece do primeiro amor. Talvez seja o meu caso. Por onde andará meu inesquecível Ulisses? Em busca de sua Ítaca ou já instalado no reino de Hades?

Cenas vividas ainda vívidas, na mente de Anita, eram pescadas no baú da memória, juntamente com o doce sabor da juventude. No resgate de tempos idos, incessante fluir de recordações, profusão de sentimentos e coração em atropelo. No desvão temporal, pipocavam revivescências do passado.

Anita soube que o advento das redes sociais facilitava enormemente os reencontros e os reatamentos de laços de amizades e de parentescos. Não era muito afeita à internet, mas cadastrou-se  no facebook com a firme intenção de tentar localizar o elo perdido.  Jamais se esquecera de seu sobrenome, sobretudo porque adorava pimenta: Pimentel. Entrou no facebook e procurou por Ulisses Pimentel. Havia diversos homônimos. Pela foto, não o reconheceria, depois de meio século. Entrou na página de cada Ulisses, na esperança de encontrar um conterrâneo. Encontrou Ulisses Mendes Pimentel. Não se lembrava do sobrenome “Mendes”. Seria ele? Pelo sim, pelo não, enviou-lhe uma mensagem solicitando amizade. Nada de resposta. Um mês depois, enviou-lhe outra mensagem com maiores detalhes, citando passagens vividas por ambos. Finalmente obteve uma resposta lacônica.  Era o próprio. 

Certo dia, estando ambos on line, começaram um bate-papo saudosista, pinçando relembramentos de antanho. Descobriram afinidades religiosas, artísticas, sobretudo musicais. Ambos gostavam também de viajar, de dançar e de ir ao cinema. Não abriam mão das salas de projeção, das telas panorâmicas, do aconchego da poltrona, nem do escurinho do cinema. Lamentavam os atuais comilões que exalam cheiro de manteiga saturada e sujam o carpete com pipocas. Em sua época não se ia ao cinema para se empanturrar de guloseimas. Ia-se para assistir a boas películas e para flertar com os brotinhos, na chegada e na saída.

Meio século se passou sem aviso, sem notícia. “Não mais que de repente”, eles se reencontraram, cheios de vivimentos e de páginas viradas, repletas de acontecências.
 Na urdidura dos dias, cada um seguiu sua sina, cada um teceu sua trama, criou raízes, filhos e poesias, com vislumbres diversos e horizontes dispersos. Ainda havia muito chão a percorrer.

Começaram uma despretensiosa troca de mensagens, que aos poucos foi se adocicando, se intensificando e se acalorando. Todas as manhãs, Anita abria a caixa de entrada do iphone, para verificar se havia alguma mensagem. Tornou-se ato contíguo ao despertar. Mesmo antes de se levantar, verificava se havia ali algo para colorir o dia. Uma foto, uma reminiscência, uma frase enigmática, um elogio... a mensagem matinal tornou-se mais importante que o café da manhã. Era fonte de energia para a jornada que se iniciava. Depois de uma eternidade que durou não mais que um mês, ela recebeu uma proposta de conversa presencial, num local público. Moravam em bairros contíguos, na orla da Zona Sul carioca. Ele no Leblon, ela em Ipanema. O acaso nunca havia cruzado seus caminhos, nem providenciado nenhum encontro durante as caminhadas matinais no calçadão da praia.

Para o reencontro, escolheram um local lindo, aconchegante, ideal para se relembrarem de tempos idos: a antiga Confeitaria Colombo. A ansiedade de cada um se refletia no esmero da aparência. Embora tivessem a mesma idade, ambos queriam camuflar as marcas do tempo. Haviam sido colegas de classe, no curso ginasial, época em que cruzavam centelhas nos olhares, com friozinho na barriga e coração em disparada.

Durante a semana que precedeu o encontro, ele começou a fazer exercícios abdominais, para atenuar o ventre cervejeiro, implementou uma dieta light, pintou os cabelos, já meio grisalhos, e fez clareamento nos dentes. Ao ouvir, no rádio do carro, a antiga canção “L’Amour est bleu”, lembrou-se de que essa era a cor preferida de Anita. Foi ao shopping, escolheu uma camisa azul, de mangas compridas.

Por sua vez, Anita passou a correr na praia, procurou esteticista e salão de beleza, para melhorar o visual. Escolheu uma cor alegre, a seu ver,  mais condizente com a ocasião. Comprou um vestido vermelho, sem mangas, decote em “v”, com cintura bem-marcada e saia godet.

Ulisses fez questão de chegar à Colombo mais cedo. Não seria de bom tom deixar uma dama à sua espera. Escolheu um recanto aconchegante e pouco movimentado. Ao vê-la entrar no recinto, foi ao seu encontro. Cumprimentaram-se cordialmente, sem maiores efusões.  O momento exigia formalidade. Afinal, apesar da troca de mensagens virtuais, ainda não se (re)conheciam.

Nessa tarde, diferente de todas as demais, fizeram uma benfazeja viagem no tempo. Relembraram-se das manias dos professores, das rusgas entre colegas, dos castigos por indisciplina, das festas escolares, das horas dançantes em casas de amigos...

Depois, cada um falou de si, de sua vida familiar e profissional. Ambos eram viúvos, tinham filhos, netos e muitas histórias a contar. Na vida acadêmica, optaram por caminhos diferentes.  Ele  era desembargador, já aposentado; e ela, uma renomada cientista, com diversas especializações no exterior, ainda na ativa. Nas horas vagas, dedicava-se à poesia. Não poderia viver longe dos laboratórios, das pesquisas, nem abandonar a literatura. Médica e poeta, tal qual Orfeu, jamais renunciaria à sua lira.

Ao chegar a casa, Anita fez a seguinte anotação: Há momentos que se eternizam, revividos a cada dia por teimosia de uma memória renitente que escava minudências para  preencher lapsos na vacuidade do esquecimento.  E a vida imbuída de boas lembranças torna-se mais leve. Há momentos que valem por uma vida inteira.

Apesar de memorável, a tarde havia sido insuficiente para passar a vida a limpo. Outros encontros aconteceram na Colombo, trocados posteriormente por almoços em restaurantes panorâmicos, com vista para a baía de Guanabara.

As mensagens virtuais, ao despertar, tornaram-se imprescindíveis, mesmo que fosse apenas um “bom-dia”. Uma ida semanal ao cinema passou a fazer parte daquela doce rotina. No entanto, nos finais de semana, cada um curtia sua própria família.

A prudência de Anita exigia calma e temperança. Para desenvolver um envolvimento afetivo ela carecia de tempo. Era algo que ia se condensando aos poucos, sem pressa, sem tropeços, com boa dose de imaginação. Como num crescendo musical, o sentimento ia se solidificando até chegar ao patamar da confiança recíproca e do enlevo amoroso. Era como a feitura de uma trança, ou de um complexo laço. Caso a trança fosse cortada ou o laço rompido, caia o pano: uma pesada cortina negra de luto reflexivo, uma trilha morosa de entendimento, maturação e aceitação a ser percorrida, para a assimilação da perda.

Anita, sempre calada e compenetrada, mostrava-se sorridente, irradiava alegria e bom humor. Tanto seus colegas de trabalho quanto os familiares estranharam a nítida mudança. A simples existência do “outro” preenchia seus dias. Trabalhava com mais afinco e passou a cultivar a alegria de viver.

Ulisses mantinha-se sempre em contato, mas nunca ultrapassava as lindes da amizade e do companheirismo. Era bom de prosa, de companhia agradável e presença cativante. Anita foi se afeiçoando cada dia mais àquela figura, mas mantinha distanciamento ético, na esperança de que um dia ele desse o primeiro passo além da amizade. No entanto isso não acontecia. Com o passar do tempo, ela foi criando para si a imagem de um Ulisses idealizado, tal qual ela gostaria que ele fosse. Passava horas a devanear, a fazer conjeturas, a criar viagens mirabolantes e noitadas vorazes. Sentia-se presa àquela figura mítica, sem a qual a vida se tornaria insossa.

Durante as noites de vigília, fazia anotações poéticas tais como: Na seara da insônia, semeiam-se letras, colhem-se palavras com sabor de poesia. Palavras palatáveis, de florescência poética, que se degustam no céu da boca. Nas altas horas da madrugada, vígil caçadora do agora embrenha-se em ontens e amanhãs, deslizando na atemporalidade do tempo.

Não conseguia entender o que se passava consigo. Há sentimento que não se explica – divagava ela. Não se encaixa à doxa vigente. Difere de amizade, de amor e de paixão. Talvez seja mais que isso, ou nada disso.  É a percepção de algo etéreo, de afinidade que não se encontra comumente no dia a dia. Ultrapassa as barreiras da lógica, propicia alumbramentos e bem-aventurança. É ressonância de energias afins, de efeitos encantatórios. É algo insensato, mas salutar ao coração solitário. Torna menos anódina e mais bela esta vida besta. No “enquanto” da existência, quero voar sem asas. Que mal há nisso?
Anita gostaria muito de desvelar o hermetismo de Ulisses. Supunha não haver nenhuma Penélope à sua espera. Eram ambos desimpedidos. Por que não juntar as escovas de dente? A química amorosa talvez fosse unilateral. Quiçá não sentisse atração física por ela, tivesse receio de um envolvimento mais sério ou preferisse mulheres mais jovens.

Em outra noite de insônia, Anita rabiscou uns versinhos inspirados na circunstância:
Há que se manter o distanciamento para assegurar o platonismo /
Há que se assegurar o platonismo para sustentar o mistério/
Há que se sustentar o mistério para cultivar o encanto /
Há que se cultivar o encanto para estimular o fascínio/
Há que se estimular o fascínio para fomentar a sedução /
E a sedução se incumbe de ludibriar Platão /
Apaixonar, há que se /

Isso mesmo. Ela estava se apaixonando por Ulisses, mas não por aquele com quem se encontrava eventualmente, sujeito a todos os prosaísmos do cotidiano. Seu Ulisses era um misto de homem e mito. Simples mortal, mas com virtudes de semideus. Já fazia parte integrante de sua história de vida. Não gostaria de se privar daquela presença misteriosa, simpática e contagiante. Ele nada mencionava de sua vida íntima, nem sugeria maior aproximação, como por exemplo, um almoço em família, um final de semana em sua casa de Angra. Persignando-se, ela acedia: melhor isso que nada disso. Será melhor adaptar-me às circunstâncias e deixar o barco correr. Ça va de soi.

O final de ano se aproximava. Talvez pudessem brindar a virada juntos. No entanto dezembro terminou sem nenhuma menção ao réveillon. Anita foi com a família apreciar a queima de fogos em Copacabana. Dirigiram-se ao ponto mais estratégico para melhor assistir ao espetáculo pirotécnico. Avistou de costas um senhor com o mesmo porte de Ulisses, abraçado a alguém. Não devia ser ele. Pelo sim, pelo não, aproximou-se para verificar. Era ele sim, abraçado a uma mulher aparentemente bem mais jovem. Deve ser uma de suas filhas, pensou. Manteve-se por perto, na esperança de visualizar melhor.  Era uma japonesinha mirrada e sem sal, uma magrela insignificante. Ulisses mantinha-se de costas. À meia-noite, um demorado beijo na boca desmoronou por completo aquele réveillon. Anita voltou para casa cabisbaixa e macambúzia. Todos quiseram saber o motivo daquela repentina mudança. Ela alegou cansaço.

Naquela noite, não conseguiu pregar os olhos. Uma infinidade de pensamentos contraditórios a atordoavam. O fato é que a troca diária de mensagens virtuais, as palavras adocicadas e a constante presença dele em sua vida envolveram-na emocionalmente muito além do desejável e muito aquém do desejado. Voltou a ser a adolescente apaixonada de outrora. Os tempos acabaram se embaralhando em sua mente. O passado se sobrepôs ao presente e impôs forte carga afetiva. O virtual sobrepujou o real, e a imaginação alçou altos voos. Quanto maior a altitude, mais vertiginosa é a queda. Anita não podia se imaginar de volta à mesmice insossa da rotina. Era preciso buscar algo para preencher o oco da solidão, para dissipar o que desvirtuava a alegria de viver.

Teria sido melhor se não tivesse ido à queima de fogos em Copacabana. Doeu muito. Tal dor era preocupante pelo fato de ser ilógica e totalmente inesperada em alguém que até então se considerava racional, sensata e ponderada. Batendo no peito com a mão direita, repetia parte do confiteorMea culpa, mea culpa, mea maxima culpa, por não ter conseguido timonear meu coração. É melhor colocar um ponto final no que nem foi iniciado. São caraminholas de uma adolescente apaixonada, que ainda não caiu em si, depois de meio século. Como poderia esperar ou exigir uma contrapartida de algo que nunca existiu? Não consigo entender a mim mesma, nem entender a mente humana. Que encanto é esse que me fascina? Que rebuliço é esse que me atormenta? Que júbilo é esse que me invade o ser? Que emoções são essas que brotam aos borbotões e me arrebatam? Que pensamentos são esses que criam visgo e me amarguram? Decididamente, não me reconheço. Não sou mais a mesma, tampouco sou outra. Não sei mais quem sou, o que sou, se sou...

Entre ambos, um fio invisível, delicado, mas concreto esgarçava-se em fragmentos, separava o que nunca estivera unido. Juras nunca havidas, carícias contidas, beijos não dados, o adeus sem partida... saudades do não acontecido.

Sem sono, Anita abriu o facebook. Por coincidência, viu uma comparação entre “amor” e “apego”. “Quero que você seja feliz” (é amor); “quero que você me faça feliz” (é apego). Por que não mesclar as coisas? ─ Pensou: “quero que você seja feliz e me faça feliz”. Aliás, o que é felicidade? Isso existe? Ou existem apenas momentos de bem-aventurança? Quais são os tipos de amor? Quais são seus graus de intensidade? Qual é o limite entre amor e afeição? Por que esses sentimentos geram o ciúme? Em que proporção o ciúme prejudica o relacionamento das pessoas?  Até que ponto o sofrimento emocional pode abalar o sistema imunológico e engendrar doenças psicossomáticas?   Por que minha tristeza é inversamente proporcional à alegria estampada no casal abraçado, em Copacabana? O poeta Fernando Pessoa tem razão: felizes são as plantas, que existem por existir.

Anita amofinava-se num torvelinho de dúvidas. No primeiro dia do ano, decidiu evadir-se. Enviou a Ulisses uma curta mensagem dizendo que ficaria desconectada do mundo, durante as férias de verão, numa fazenda da família. Levou consigo os sete volumes originais da obra de Proust,  À la recherche du temps perdu (Em busca do tempo perdido). Sempre protelava o início daquela leitura, pelo fato de ser muito longa, difícil e arrastada. Carecia de tempo e de sossego.

Na fazenda, Anita remoia seus anseios: ─ O entressonho alenta a memória, mas remendos do passado não se cosem no presente.

 Remendava as horas com retalhos de esperança e tecia conjecturas com meadas de quimeras. Dias e dias a fio, foi cosendo fragmentos e cerzindo sentimentos, para encapar o viver. Na lerdeza do tempo, as meadas se desbotavam, os retalhos se esgarçavam, e tudo se decompunha, nos fiapos soturnos da noite. Nas altas horas, Anita fazia registros poéticos em sua caderneta: na gramática da melancolia, a sintaxe em desalento coordena padecimentos com palavras doridas. Na quietude da roça, escuridão e silêncio liberam vaga-lumes e zumbidos de muriçoca. Na escuridão da noite, vaga-lumes coriscam salpicando claridade. No silêncio da madrugada, muriçocas ciciam, ferindo meus ouvidos. Na quietude da alcova, a insônia me aprisiona, na indolente lassidão do tempo.

Nas malfadadas férias, Anita mergulhou na obra de Proust, no afã de passar o tempo em boa companhia. Nessa busca, acabou encontrando, no primeiro volume À côté de chez Swann, reflexões que, de certa forma, a ajudaram a superar o desapontamento. Descobriu que o sentimento amoroso é inexplicável; que ele se desenvolve, sobretudo por intermédio da imaginação, da idealização. Não se sabe por que se ama alguém; não há base sólida na qual se possa apoiar. A imagem vista ou criada da pessoa amada não condiz com a realidade. Assim sendo, o amor não está no ser amado. Ele se encontra inteiramente no ser enamorado, ou apaixonado. Para Proust, o objeto do desejo não prescinde de existência própria. Ele existe tal e qual é contemplado por aquele que o deseja.

É isso mesmo ─ pensou Anita. ─ Meu Ulisses foi criado por mim. Não tem concretude. Não conheço seus hábitos cotidianos, não sei o que pensa, o que sente, o que come... desconheço seus passatempos prediletos, seus amigos, seus amores... como posso amar alguém que mal conheço?

Continuando a desvendar as concepções proustianas sobre o amor, interou-se de que o ato sexual ou a posse física do ser amado nem sempre tem a completude almejada. Tudo é muito subjetivo. Tal posse pode engendrar ansiedade, inquietude e até mesmo frustração. Isso acontece porque o apaixonado não deseja apenas o corpo físico; anseia penetrar na essência do ser amado, sem se dar conta de que grande parte deste foi idealizada por ele. Destarte, o mistério que o ser amado desperta não se encontra em si, mas no próprio sentimento amoroso. O sentimento de posse muitas vezes desperta o ciúme, confunde-se com ele e acaba se transformando pura e simplesmente em ciúme, às vezes doentio, obsessivo e mórbido. Essa tortura malsã intenta penetrar não apenas nas ações do dia a dia, no convívio social, mas também no pensamento do ser amado. Esse estado de alucinação amorosa, responsável por tantos atritos e tantos crimes só termina cedendo lugar à lucidez, ao desapego. Como dizia Proust, Il faudrait choisir : cesser de souffrir ou cesser d’aimer.

A decisão «cessar de sofrer», está irremediavelmente ligada ao “cessar de amar”. Com distanciamento temporal e, por conseguinte, com distanciamento crítico, ela se deu conta de sua insensatez. A perda de um ser amado não corresponde à perda da capacidade de amar.

Anita identificou-se com a concepção amorosa proustiana: O protagonista Swann se interessa por Odette. Num “crescendo”, ele se encanta, se enamora, se enciúma, se apaixona, se angustia e sofre. Seu sentimento, assim como o dos outros personagens, se inicia com o desejo e termina com a ansiedade dolorosa.

O mesmo se deu com Anita. Em ambos os casos tal sentimento perpassou as alegrias e as agruras a ele inerentes: interesse, desejo, amor, inquietação, ansiedade, frustração e sofrimento.

Então é isso ─ refletia Anita. ─ O amor jamais produz a felicidade. A felicidade é inatingível. Deve ter a mesma inefabilidade do termo “paraíso”, ou é apenas um metaforismo?

No final das férias, Anita garatujou alguns versinhos, antes de embarcar de volta:
Na falta de tuas mensagens / preencho a vaziez do tempo / com versos dispersos.
Na lerdeza das horas / palmilho degraus da vida / em busca não sei de quê.
Na inópia de concretude / pesco minha cabeça nas nuvens / prendo-a ao corpo físico /
Cogito desertar de tudo/

Ela ainda não sabia o que fazer após a volta ao Rio. Nunca pensou que uma simples cena pudesse afetá-la tanto. Daria o visto pelo não visto e tudo continuaria como antes. Não, não conseguiria. Não tinha vocação para atriz. Pediria explicações. Não, não havia nada a explicar. Eram apenas amigos. Não tinham compromisso algum. Ele era livre para namorar todas as japonesinhas do mundo. Seria absolutamente ridículo da parte dela demonstrar qualquer tipo de mágoa. Teria que apagar as pegadas do passado. O que havia acontecido, da parte dela, foi um embevecimento platônico-apolíneo de rara beleza e de grande delicadeza; da parte dele, incógnita total. Para ela, o que se passava na cabeça masculina correspondia ao outro lado da lua... ao desconhecido, ao inacessível.
Decisão tomada, a duras penas: “desapaixonar, há que se.”


Jô Drumond é escritora e membro da: AEL (Academia Espírito-santense de Letras). AFESL (Academia Feminina Espírito-santense de Letras) AFEMIL (Academia Feminina Mineira de Letras) IHGES (Instituto Histórico e Geográfico do ES).