quinta-feira, 21 de agosto de 2014

ESPERANÇA



(Uma das três virtudes teologais: Fé, Esperança e Caridade)

Por: Jô Drumond

Tive a oportunidade de acompanhar algumas voluntárias que promovem jogos de bingo e passa-tempos diversos nos ambulatórios de quimioterapia e de hemodiálise, de um grande hospital, com o intuito de alegrar os pacientes e amenizar o peso das horas.

 Entramos primeiramente na ala da quimioterapia, onde fomos muito bem recebidas pelos pacientes. Todos participaram animadamente da brincadeira, interagiram o tempo todo demonstrando contentamento. Antes de nossa saída, um deles chegou a fazer um pequeno discurso laudatório enfatizando os benefícios da presença das voluntárias.


De lá, passamos ao ambulatório de hemodiálise. A recepção foi quase nula. Poucos quiseram participar da brincadeira. Houve quem  recusasse abertamente, quem  demonstrasse desgosto pela nossa presença e houve também quem fizesse ouvidos moucos, fingindo ignorar o que se passava. Era como se fôssemos um bando de invasoras saudáveis e alegres  apoderando-se abusivamente de um ambiente doentio e triste. Nossa presença parecia ressaltar a contraposição entre saúde e doença. Senti-me assaz constrangida, como indesejável intrusa.


Saí do hospital sem entender a disparidade de acolhimento e de participação das duas alas. Soube então, por meio de uma voluntária veterana, que a diferença entre ambas se chama simplesmente ESPERANÇA. Na quimioterapia, os pacientes se submetem ao tratamento, na expectativa de recuperação e/ou de cura. 

Na hemodiálise, eles têm consciência da impossibilidade da realização de seus desejos. Terão que se submeter ao tratamento compulsório e vitalício, sem vislumbre de melhoras. Suas vidas dependem da filtragem do sangue por um rim artificial, três vezes por semana, num processo que dura cerca de 4 horas.

Segundo Santo Agostinho, “enquanto houver vontade de lutar, haverá esperança de vencer”. Eu inverteria a sentença: “enquanto houver esperança de vencer, haverá vontade de lutar”. Os pacientes renais crônicos, cientes da impossibilidade de cura, às vezes perdem a vontade de lutar e, quiçá, o prazer de viver.


Para Thomas Hobbes, “o desejo, acompanhado da idéia de satisfazê-lo, chama-se esperança; despojado de tal idéia, chama-se desespero.” No caso focalizado não se trata de desespero, mas de apatia. Tais doentes não precisam de outro remédio senão de esperança. Somente ela lhes trará o pássaro azul da felicidade. Com o avanço da medicina, espero que um dia ele pouse nesse ambulatório, traduzindo sonhos em realidade.


*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)

Membro de 3 Academias de Letras

 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES

sexta-feira, 25 de julho de 2014

O MALFADADO CITY TOUR EM TIRADENTES



*Jô Drumond
Normalmente, ao visitar uma cidade desconhecida, o turista começa por um city tour guiado, para ter ideia do todo. Posteriormente, escolhe os locais a ser revisitados, a seu bel prazer. É o que sempre faço em minhas andanças mundo afora, e foi o que aconteceu na cidade Tiradentes (MG), berço do inconfidente Joaquim José da Silva Xavier, fundada por volta de 1702, quando se descobriu ouro na região. 

Em meu primeiro dia nessa charmosa cidade, ao sair do hotel, situado na principal praça da cidade, fui abordada, juntamente com meus companheiros de viagem, por um jovem que oferecia um city tour, numa charrete cor-de-rosa, de quatro assentos, forrada com tapete artesanal e puxada por um belo cavalo. 

Embarcamos nesse deleite. Outro rapaz juntou-se a nós, tomou as rédeas e se pôs a repetir como uma matraca, com péssima dicção, o texto que havia decorado para mostrar a cidade aos turistas. O fato de não articular bem as palavras dificultava nossa compreensão. Pedíamos em vão, que diminuísse a velocidade da fala. O que mais nos incomodava nele era um cheiro nauseabundo de suor que emanava de seu corpo; uma fedentina insuportável capaz de provocar enxaqueca em turistas de olfato sensível. Ao chegarmos à principal igreja pudemos descer, pela primeira vez, para visitar o interior o monumento, segundo ele, o segundo templo mais rico em ouro, do Brasil. 

Ao retomarmos os assentos cor-de-rosa, fomos surpreendidos pela troca de guia. Sentimo-nos aliviados, livres do mau cheiro, e esperávamos que esse se expressasse mais claramente que seu colega. Ledo engano! Tinha um dos maiores problemas para alguém que escolhe esse tipo de trabalho. Era completamente gago. Ao ouvi-lo, olhamo-nos discretamente uns aos outros com ares de troça. Nada perguntamos, para evitar constrangimento. Ele pouco falou. Diferentemente do primeiro, batia vigorosamente no traseiro do animal com uma vara. O guia anterior apenas balançava a rédea, emitia um ruído com a voz, e era prontamente atendido.

Catinga e gagueira foram apenas pequenos incidentes de percurso, comparados a algo mais sério, que merece a atenção da sociedade protetora dos animais. O antigo calçamento das ruas, feito com pedras irregulares, é impróprio para ferraduras. O cavalo avançava aos tropeços, escorregando a cada passo e, às vezes, caindo de joelhos nas descidas escorregadias. Esforçava-se ao máximo puxando a pesada charrete ladeira acima e freando com o próprio corpo, ladeira abaixo. Além disso, havia a punição das varadas sobre o lombo, após cada escorregão. Uma verdadeira tortura.

Não me contive. Sugeri ao “charreteiro” que colocasse uma proteção de borracha, ou de qualquer outro material antiderrapante em volta da ferradura, para evitar o sofrimento do animal. Respondeu-me que seria inviável devido ao rápido desgaste do material em atrito com as pedras.
Fica aqui um apelo para que se criem, o mais rapidamente possível, resistentes capas antiderrapantes para ferraduras de quadrúpedes obrigados a subir e descer ladeiras carregando peso, naquele tipo de pavimentação.
*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES

segunda-feira, 9 de junho de 2014

O ESTOURO DA BOIADA

 *Jô Drumond
 
Tumultos envolvendo multidões, como a tragédia da boate Kiss (RS), causada por um incêndio, provocam alvoroço em grande escala, com resultados nefastos. O pânico instalado em aglomerações humanas pode provocar uma reação descontrolada, tal qual o “estouro da boiada”, tão bem descrito literariamente por Euclides da Cunha e Rui Barbosa: um alvoroço geral se instala por motivo real ou presumido, às vezes por coisa banal, como o ruflar de asas de um pássaro. Os bois desembestam em disparada sem saber que rumo tomar. Os que têm o infortúnio de cair são pisoteados pelo tropel em derribada.
O estouro da boiada é tema de dois textos, que valem a pena ser revistos. O que é belo deve ser apreciado e compartilhado. Destarte, compartilho excertos de Euclides da Cunha e de Rui Barbosa, que abordam tal fenômeno.
“Uma rês se espanta e o contágio, uma descarga nervosa subitânea, transfunde o espanto sobre o rebanho inteiro. É um solavanco único, assombroso, atirando, de pancada, por diante, revoltos, misturando-os embolados, em vertiginosos disparos, aqueles maciços corpos tão normalmente tardos e morosos.
E lá se vão: não há mais contê-los ou alcançá-los. Acamam-se as caatingas, árvores dobradas, partidas, estalando em lascas e gravetos; desbordam de repente as baixadas num marulho de chifres; estrepitam, britando e esfarelando as pedras, torrentes de cascos pelos tombadores; rola surdamente pelos tabuleiros ruído soturno e longo de trovão longínquo [...]
milhares de corpos que são um corpo único, monstruoso, informe, indescritível, de animal fantástico, precipitado na carreira doida. E sobre este tumulto, arrodeando-o, ou arremessando-se impetuoso na esteira de destroços, que deixa após si aquela avalancha viva, largado numa disparada estupenda sobre barrancas, e valos, e cerros, e galhadas [...] até que o boiadão, não já pelo trabalho dos que o encalçam e rebatem pelos flancos senão pelo cansaço, a pouco e pouco afrouxe e estaque, inteiramente abombado.”
(Euclides da Cunha)
Outro primoroso excerto, escrito posteriormente e amplamente conhecido, surgiu incrustado como pedra preciosa, numa conferência feita por Rui Barbosa, Em Juiz de Fora, em 1910.
"Vai o gado sua estrada mansamente, rota segura e limpa, chã e larga, batida e tranquila, ao tom monótono dos eias! dos vaqueiros. Caem as patas no chão em bulha compassada. Na vaga doçura dos olhos dilatados transluz a inconsciente resignação das alimárias, oscilantes as cabeças, pendente a magrém dos perigalhos, as aspas no ar em silva rasteira por sobre o dorso da manada. Dir-se-ia a paciência em marcha, abstrata de si mesma, ao tintinar dos chocalhos, em pachorrenta andadura, espertada automaticamente pela vara dos boiadeiros. Eis senão quando, não se atina por que, a um acidente mínimo, um bicho inofensivo que passa a fugir, o grito de um pássaro na capoeira, o estalido de uma rama no arvoredo, se sobressalta uma das reses, abala, desfecha a correr, e após ela se arremessa, em doida arrancada, atropeladamente, o gado todo. Nada mais o reprime. Nem brados, nem aguilhadas o detêm, nem tropeços, voltas ou barrancos por davante. E lá vai, incessantemente, o pânico em desfilada, como se os demônios o tangessem, léguas e léguas, até que, exausto o alento, esmorece e cessa, afinal, a carreira, como começou, pela cessação do seu impulso. Eis o estoiro da boiada."
(Rui Barbosa)
O belo texto de Rui Barbosa foi possivelmente inspirado na obra prima de Euclides da Cunha, publicada anteriormente. Euclides descreveu de forma magistral, em Os sertões (1902), um dos quadros mais épicos do sertão brasileiro, após ouvir o relato de um vaqueiro, sem nunca ter presenciado o estouro de uma boiada. Certo dia, ao ler seu texto para um pequeno grupo, um ouvinte boiadeiro, que já havia presenciado diversos estouros, ficou absolutamente perplexo. Segundo ele, para descrever tão bem o fato, Euclides deveria ter visto pelo menos uma centena de estouros de boiada.
O fato relativamente comum no sertão, narrado em ambas as citações, é de importância secundária. Relevante é o registro em prosa poética, a força estilística e a escolha lexical, enfim, a beleza textual que continua encantando diversas gerações de leitores.
 
*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES