terça-feira, 25 de março de 2014

O LORD DO SERTÃO



*Jô Drumond

 Nasci temporã, filha de pai aposentado, já vergado sob o peso da idade e com cabelos de algodão. A grande diferença de idade deu-me o privilégio de tê-lo como pai e avô, ao mesmo tempo. A defasagem de gerações era bem nítida em nosso registro lingüístico. Meu pai usava um vocabulário rico, porém arcaico e démodé. Por exemplo, dizia “mentecapto” em vez de “louco”; “estorvar” em vez de incomodar; “tutameia”, em vez de “quase nada”, e assim por diante.  Isso, às vezes, criava situações hilariantes.
Lembro-me que certo dia ele me pediu para ajudá-lo a escolher um par de sapatos, numa loja chamada Praça Sete Calçados, no centro de Belo Horizonte. Ao abordar uma jovem vendedora, ele lhe disse:
̶  Boas tardes, senhorita! Eu gostaria de adquirir um calçado singelo, porém de cabedal bom.
A vendedora lançou-me um olhar arregalado, como se estivesse pedindo socorro. Sem reparar o embaraço da garota ele acrescentou:
̶  Não carece ser coisa cara!
A vendedora fitou-me novamente, com olhar inquiridor. Deduzi que ela desconhecia os termos menos usuais. Tive então que traduzir o pedido usando um vocabulário do cotidiano, ou seja, troquei o filet mignon pelo feijão com arroz.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES


segunda-feira, 10 de março de 2014

MAROTAGEM

 * Jô Drumond
Os automobilistas devem redobrar a atenção ao trafegar pelo interior do Piauí. Vê-se uma grande quantidade de cabras, bodes e cabritinhos transitando ou descansando ao longo da estrada. Eles fazem parte daquela paisagem eventualmente castigada pelo sol. São tantos caprinos que o turista desavisado tem a impressão que se trata de um animal nativo daquela região.

Esse tipo de animal foi domesticado há sete mil anos a.C. Seu habitat pode ser muito variado. Come quase tudo que encontra pela frente e se adapta a ambientes inóspitos, como regiões pedregosas, áridas e montanhosas.

Dizem que no Piauí, há um restaurante de culinária regional, cujas especialidades são cabrito na brasa e buchada de bode. Com a crescente demanda, em pouco tempo, o proprietário não conseguia criar a quantidade suficiente de animais para o abate.

As más línguas dizem que, em dias e horários de pouco movimento na estrada, o chefe de cozinha sai com um ajudante, numa caminhonete, para escolher o butim da farta caçada. Enquanto um dirige lentamente, o outro vai alvejando os animais escolhidos. Logo depois, voltam rapidamente, recolhendo os abatidos, sem que ninguém os veja. A caminhonete sai vazia e volta cheia, sem nenhum ônus, em curto espaço de tempo.

Sabe-se que a caprino cultura foi introduzida no Brasil pelos portugueses. No Nordeste brasileiro, com o passar do tempo, houve uma mutação genética em sintonia com o eco-sistema, de modo que a raça Marota (porte pequeno, cabeça avantajada, chifres e membros fortes) se adapta perfeitamente às condições desfavoráveis do trópico semi-árido. Tem grande resistência física e sobrevive às agruras das secas comendo gravetos.

Marota é a raça humana. Mais marota ainda é a maquinação dos responsáveis pelo abate. Não se trata da acepção light de maroto como indivíduo esperto, ladino, travesso, mas da desprezível acepção de canalha, capaz de ações vis e condenáveis.
*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

CETICISMO RELIGIOSO

Meu pai, Francisco Nunes Valadão, era homem sério, circunspeto, e, ao mesmo tempo, irônico e brincalhão. Tinha agudez de pensamento e presença de espírito que surpreendiam a todos. Durante qualquer conversa, nada lhe passava despercebido. Suas ressalvas ou observações eram sempre pertinentes, feitas com perspicácia e ironia, às vezes em tons de galhofa. Convivia pacificamente com a beatice de minha mãe e com a religiosidade de toda a família, mas não praticava religião alguma. Durante toda a vida viu-se obrigado a ouvir a mesma ladainha por parte de mãe Tunica, sempre indignada pela ausência da prática religiosa:
─ Homem de Deus, você precisa frequentar a igreja! Você tem que rezar! Onde já se viu uma coisa dessas?
Ao que ele lhe respondia.
─ Deixe estar. Rezarei quando estiver velho.
Na velhice, abordado por ela com a lorota de sempre, ele lhe respondia:
─ Já rezei muito na juventude. Agora não careço mais disso.
Com quase um século nas costas, vergado com o peso da idade, frequentava diariamente um grupo de idosos que se reunia num quarteirão fechado, próximo à Praça Sete, no centro de Belo Horizonte, para prosear e jogar baralho. Numa de suas idas ou vindas foi abordado por duas beldades, que exalavam o frescor da juventude. Tratava-se de jovens integrantes de uma religião qualquer, tentando arrebanhar novos adeptos. Encontraram, num idoso sem crença, presa fácil para seu intento.  Segundo elas a prática da fé possibilitaria a entrada dele no reino dos céus. Meu pai encontrou nas garotas o que carecia: atenção e interlocução. Seus filhos, embora numerosos, andavam todos envolvidos com estudos e trabalhos, sem tempo para o que ele tanto gostava: um dedo de prosa. Aceitou delas a delicada oferta de catequese e combinaram que, a partir de então, elas iriam diariamente até nossa residência, para catequizá-lo. Cada sessão durava cerca de duas horas. Ele ficou radiante com o fato de ter à sua disposição duas lindas jovens sorridentes, atenciosas, cheirosas e apetitosas. Minha mãe, ciente de seu ceticismo, esbravejava aos quatro ventos:
─ Velho safado! Você não quer religião. Você quer é ficar de chamego com essas duas, isso sim!
O entusiasmo dele era tal que ela não conseguiu impedir a catequese.  Diariamente, ao toque da campainha, no horário combinado, ela baixava a tromba e enviesava o olhar. Ele, ao contrário, corria todo faceiro e sorridente em direção ao salão de visitas para receber as amáveis moçoilas.
De certa forma, era benéfico para ambas as partes: por um lado, elas se sentiam realizadas pelo cumprimento do dever religioso, ao arrebanhar aquela alma desgarrada. Por outro, ele regozijava-se pelo fato de tê-las assiduamente ao seu lado, embora soubesse que era temporário, mas, como ele sempre repetia, “nessa vida tudo é passageiro”!
Chegou enfim o grande dia, o dia do batismo. Ninguém da família dispunha de tempo para acompanhá-lo. Partiu sorridente, acompanhado pelas catequistas, e voltou acabrunhado e carrancudo.
─ O que foi papai? Não gostou do batismo? ─ perguntei-lhe.
─ Ora veja! Inventaram de me enfiar num tanque cheio de água fria. É claro que recusei. Sou que nem gato. Detesto água fria!
O fato é que o fervor religioso das donzelas havia sido insuficiente para aquecer a água. Ele, com fervor algum, escafedeu-se dali e continuou com seu ceticismo de longa data.
Anos mais tarde, em seu leito de morte, certo dia ele me fez um pedido.
─ Minha filha, eu não acredito em céu, em inferno, em nenhuma dessas baboseiras religiosas, mas por via das dúvidas, chame um padre para eu me confessar antes de partir. Como diz o ditado, “seguro morreu de velho”!
 
*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES