terça-feira, 26 de julho de 2016

A importância dos potes na civilização

Foto de Jô Drumond.
Veja a foto do meu pote
O Museu Mineiro dispôs de cerca de trinta potes antigos, feito por índios, alisados com sabugos de milho (vêem-se as marcas), para o projeto Potes do Sertão, cujo objetivo é mostrar às novas gerações, a importância cultural dos potes em nosso processo civilizatório, numa época em que não havia água canalizada. Tais potes foram distribuídos durante a Semana Roseana , em Cordisburgo, preferencialmente aos moradores de lá. Como havia mais gente de fora que nativos, acabei conseguindo ser a guardiã de um deles, com papel passado. Cada pote é catalogado e cada guardião é fichado e fotografado com seu pote, para o arquivo virtual do museu. Não pode ser comercializado. Em caso de morte do guardião, tem que haver um registro, deixado por ele, contendo os dados do novo responsável pela peça. Após a cerimônia, houve um cortejo, cada um carregando seu pote, do Museu Guimarães Rosa até à estação ferroviária, onde foi improvisada uma bica d'água. Outro cortejo similar acontecerá em BH, em setembro próximo. Vou deixar meu pote em BH até o próximo cortejo, que sairá do Museu Mineiro e irá até o Museu do Artesanato, passando pela Praça da Liberdade. 

terça-feira, 5 de julho de 2016

VIDAS FLUTUANTES

Jô Drumond

Na Amazônia, uma fração da comunidade manauara flutua em cais de devaneios, ancorada em sonhos de infinitude. Casas residenciais, postos de combustível, oficinas mecânicas, restaurantes, feiras de artesanato e barcos de toda sorte oscilam docemente, sob a inclemência abrasante do sol, sem ferir o espelho d’água.

Parte da população ribeirinha desconhece outro estilo de vida. Suas moradas, amarradas em troncos de árvores, flutuam sobre toras de madeira, ao sabor das cheias e das vazantes. Os moradores, presos a quase nada, mantêm os olhos sedentos de esperança nas lonjuras do horizonte aquoso, onde o sol se afoga a cada poente. No dia-a-dia, desfrutam a malemolência cotidiana sem se submeter aos ditames do relógio; sentem o roçagar da amena brisa local, em contraposição ao intenso calor da cidade de Manaus, às vezes insuportável aos turistas habituados a climas mais brandos.

Acabo de visitar esse universo aquoso, justamente nas cheias de julho, segundo dizem, a melhor época do ano para se deslizar selva adentro pelos meândricos igapós. Apesar da rápida convivência com os habitantes da ribeira, percebi que, malgrado as adversas condições de vida, eles dissipam a tristeza com o vento e se agarram à alegria de viver. Dei-me conta do bom humor contagiante, logo no primeiro contato com o timoneiro.

─Essa embarcação é segura? (perguntei-lhe)
─Claro que sim! (respondeu em tom de galhofa) Ela comporta 80 passageiros, mas está levando 200.

Nosso guia fluvial, de aspecto bonachão, gracejou sobre a ausência de problemas com relação à vizinhança da ribeira. Ao menor atrito, pode-se deslocar a casa de lugar. Mencionou a economia do cafezinho ali preparado com a água do rio Negro, portanto com menos pó. Gabou-se da ausência do IPTÁgua (corruptela de IPTU), e da segurança contra inundações, qualquer que seja o nível das águas.

Ao desembarcarmos no Parque Ecológico Janauary, fomos distribuídos em pequenos barcos para a incursão pela selva inundada. Pilotos-mirins, que deveriam estar distraindo sua meninice nos pátios escolares, eram os responsáveis pelo exótico passeio. Nossas vidas estavam nas mãos de um garoto de 13 anos, que enfrentava o barroquismo anárquico da floresta, brincando de se desviar dos troncos eretos, em águas repletas de piranhas. O barco se enveredava mata adentro, atropelando o silêncio das águas mansas, desbravando trilhas só conhecidas pelas sombras da selva. Nos lagos de vitória-régia1, onde havia congestionamento de barcos de turistas, o garoto deslocava a pequena embarcação com inimaginável destreza, sem colidir com nenhuma outra, e sem danificar as plantas aquáticas.

Durante a vagueação na selva, a cada instante deparávamos com uma surpresa: samaumeiras gigantes2, seringueiras, jacarés-açu3, tartarugas, pássaros, macacos, e o famoso boto cor-de-rosa4, capaz de se transformar num rapaz galanteador e sedutor. Segundo a lenda, ele deixa os rios, enfeitiça as garotas indefesas e volta às águas em forma de boto. Presume-se que tal crendice tenha sido inventada para remendar a honra de meninas púberes e adolescentes. Há quem acredite, na Amazônia, que, crianças oriundas do estupro, do incesto e do aliciamento sejam filhas do boto.

Os visitantes que se enveredam pelos igarapés e pelos igapós, em busca de emoções e de deslumbres, regozijam-se com as eventuais surpresas que a fauna e a flora lhes proporcionam: O turista mais sensível ao Belo, com olhar pesqueiro, busca em cada detalhe a indescritível poesia da vida. Ele se extasia diante da magnificência da flora e dos flamejantes reflexos na água, inebria-se com emanações aromáticas, e aquieta-se ao ouvir, pelas vozes da natureza, a canção do silêncio. A estesia, latente em seu âmago, emerge à flor da pele e, tal qual o poeta Baudelaire, embrenha-se numa floresta de símbolos, em que, ecos, sons e cores se mesclam formando um espaço sagrado.

“La nature est un temple où de vivants piliers
Laissent parfois sortir de confuses paroles;
L’homme y passe à travers des forêts de symboles
Qui l’observent avec des regards familiers»

(do soneto “Correspondances” extraído de As Flores do mal)

Baudelaire vê a natureza como concordia discors (unidade de elementos discordantes). Um belíssimo exemplo dessa harmonia de elementos díspares acontece na própria formação do rio Amazonas, a 18 km de Manaus. Ele se origina do encontro de dois rios com densidade, correnteza, temperatura e cores diferentes. Um curso de águas negras e outro de águas barrentas seguem pari passu, sem se misturar, por mais de 10 km. Trata-se de um fenômeno único no globo terrestre. A formação do rio Amazonas5, no encontro dos rios Solimões e Negro, tombado pelo Iphan, é um dos mais belos espetáculos da natureza.

No magnífico universo hídrico da bacia Amazônica, a densa floresta desvela sua exuberância tropical. Os ribeirinhos, a mercê da transitoriedade das águas e das oscilações climáticas, vivem às margens do nada (que é tudo), compartilhando a dança cíclica do tempo, na antecâmara do infinito.

NOTAS:
Vitória-Régia1: planta aquática típica da Amazônia, cujas folhas planas e arredondadas chegam a 2,5 metros de diâmetro e podem suportar até 40 quilos, desde que o peso seja bem distribuído. A flor da Vitória-régia é solitária e aromática. Só se abre à noite, durante três dias, apresentando uma diferente coloração a cada dia.
Samaumeira2:Trata-se da maior árvore nativa das Américas, que pode atingir 70 metros de altura
Jacaré-açu3: O maior jacaré brasileiro, de corpo negro e cabeça marrom, que pode chegar a 6 metros de  comprimento.
Boto4: o boto é parecido com o golfinho, mas vive em água  doce, tem o bico mais comprido sobre o qual há pelos (vibrissas) com função tátil e direcional. Os golfinhos são acinzentados e vivem em bandos; os botos (pretos, cinzas ou cor-de-rosa) são animais solitários. Devido ao formato fálico do bico e talvez devido à sua solidão, criou-se a lenda do boto cor-de-rosa.
Rio Amazonas5: O encontro das águas foi tombado pelo Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). A proposta de tombamento foi baseada no “caráter de excepcionalidade do fenômeno e em seu alto valor paisagístico”. Tal ato provocou a suspensão imediata do licenciamento ambiental para a construção de um terminal portuário em área próxima, que poderia causar danos ambientais e sociais irreversíveis.

Segundo informações do guia turístico, os dois rios demoram a se misturar devido às diferenças abaixo:

Diferenças
Rio Negro
Rio Solimões
cor
Negra, devido à decomposição vegetal
Barrenta devido a desbarrancamentos
correnteza
2 a 3 km/h
6 a 8 km/h
temperatura
22º
28º
densidade
menor densidade
maior densidade

Encontro das águas do Rio Negro e Solimões
A bacia Amazônica, maior bacia hidrográfica do mundo, tem suas origens nos Andes, com o nome de rio Marañón. Percorre o território brasileiro com o nome de Solimões, agregando uma grande quantidade de afluentes, muitos dos quais navegáveis, até se encontrar com o rio negro. A partir de então se chama rio Amazonas.
  


*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGE

quarta-feira, 29 de junho de 2016

O MORTO TAGARELA

(Fato ocorrido na região da Charneca, MG, na primeira metade do século XX )

Jô Drumond

Zé Badão fazia qualquer tipo de frete em sua velha ximbica de estimação, mas nunca tinha carregado caixão vazio, muito menos ocupado. Cresceu na roça, habituado a ouvir causos de assombração, nas longas noites do sertão. À luz de lamparina, via fantasmas em qualquer vulto ou tremulação de claridade. Tinha pavor de defuntos, de velório, de cemitério, de tudo que pudesse remeter à fantasmagoria tenebrosa cultivada em sua mente.

Num domingo, estando ele a tomar umas biritas no povoado do Barranco, já prestes a voltar para casa, recebeu uma encomenda fúnebre. Levar o falecido Zé Tita até a fazenda do Coité, onde seria velado. Recusou de prontidão, mas diante do veemente pedido de seu compadre e amigo Argemiro, tio do falecido, sentiu-se na obrigação de fazer aquele sacrifício. O sol, escondendo-se atrás das árvores, brincava de equilibrar-se no dorso da montanha. Ao perceber o lusco-fusco do dia, Zé Badão sentiu um calafrio. Nunca havia pensando em fazer um carreto desses, muito menos no breu da noite.

─ Era só o que me fartava, Argemiro!... Já verificô se o difunto tá mermo morto?

─ Mortinho da silva, seu Zé. A essa hora já deve de tá proseano com São Pedro. Era uma alma boa, dessas que vai direto pro céu. Alma de gente rúim é que vira alma penada; fica rondano os vivo, apareceno pros ôtro. Num carece de tê medo não. Gente viva é que é pirigosa, isso sim!

─ Tá bem, Argemiro, bote logo esse trem na carroceria antes que eu mude de ideia. Só tô fazeno esse carreto em sua atenção. Das coisas do ôtro mundo, eu quero é distância.

Enquanto proseavam, um ébrio conhecido por Tõe Galinha, mais bêbedo que um gambá, alheio ao que acontecia, aproveitou a distração e se escondeu no fundo da carroceria, para uma caroninha gratuita até o entroncamento do Coité.

A viagem começou sem tropeços. Tõe Galinha adormeceu tão logo começaram os sacolejos da estrada. Zé Badão nunca havia dirigido tão tenso. Tentava acalmar-se, em vão. Dizia a si mesmo:

 ─ Pensando bem, esse frete vai ser bão pra tirar minha cisma. Gente morta é inofensiva. Coitado do Zé Tita! Que Deus o tenha!
Ao começar fazer uma oração pela alma do falecido ouviu um ronco.
─ Êpa, difunto num ronca! Que diabo é isso?

Arrepiou-se de medo. Apertou a acelerador, apesar dos buracos da estrada, numa correria desabalada, o que acordou o bêbado. Tõe Galinha, jogado para cima e para os lados como numa panela de pipocas, gostou da brincadeira e gritou:

─ Aperta o pé, seu Zé!

Ao ouvir aquilo, o motorista enrijeceu-se de medo e apertou mais ainda o acelerador.

 ─Aperta o pé seu Zé! E seja o que Deus quisé!

Afundou o pé ainda mais, se borrando todo de medo, e rezando para afastar maus espíritos. A voz fantasmagórica insistia.

─ Mais! Mais! Mais! Esse trem tá bão demais!

No entroncamento, em dúvida se entrava à direita ou à esquerda, diminuiu a marcha. Nisso, o pinguço aproveitou para saltar na escuridão, sem ser notado, e continuou o percurso a pé, tropeçando nos vãos da noite. O fretista aproximou-se da fazenda indicada para fazer o duplo descarrego: o do real e o do imaginário.

Ao ouvir o ronco do motor, toda a família do defunto foi até ao curral, defronte à sede da fazenda, para receber a encomenda. Mais lívido que o luar, Zé Badão não conseguiu proferir uma só palavra. Esperou que tirassem o caixão e partiu sem se despedir e sem receber pelo frete. Queria se distanciar o mais rapidamente possível daquele encosto. Ao chegar a casa, sem contar nada à Mariquita, pediu-lhe que pegasse uma lanterna e verificasse se havia alguém dentro da carroceria.

─  Não há viva alma nesse caminhão, meu amô.  

─  Nem me fale de alma. Me dá uma garrafa de pinga, que eu quero me afogá.

─  O que é que cê tem?

─  Nada! Tô com a garganta seca, só isso!

─  Só mermo?

─ É só! Ara! Ô muiezinha discunfiada!

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGE