Na
esperança de que o jovem Thomé não se desgarrasse da fé religiosa, sua família
o levou a um local de peregrinações, para que recobrasse o fervor, em vias de
esmaecimento.
Em
respeito às pessoas envolvidas, topônimos serão omitidos neste relato. Fizeram
uma longa viagem, em direção a uma pequena comunidade, na zona rural. Desde que
chegaram ao destino, ouviram, o tempo todo, histórias de milagres acontecidos
naquele local. Por exemplo, um senhor queria gravar a mensagem de Nossa
senhora, mas se esqueceu de colocar a fita K-7 dentro do gravador. Desapontado,
ele demonstrou sua desolação, após o culto, junto à pretensa “arauta da
santidade”. Esta lhe respondeu: - Pode
ficar tranquilo. Minha fala está todinha gravada em sua fita, mesmo estando
fora do gravador.
Muitos
outros casos misteriosos foram contados ao longo do dia por diversas pessoas.
Era uma espécie de preparação psicológica ou de concentração, à espera do
grande momento da aparição de Nossa Senhora, que era vista apenas por uma
pessoa: uma menininha de cerca de oito anos, que, como qualquer outra, brincava
de correr atrás de uma bola, juntamente com crianças de sua idade. Em um
horário determinado não se sabe por quem (como se a rainha dos céus se submetesse
aos ditames do relógio), todos se reuniram para recebê-la. Começaram com
orações e, logo a seguir, passaram a entoar cânticos de louvores. Em um dado
momento, a menina interrompeu a cantoria dizendo: - Ela está chegando...
eu já a estou vendo... está se aproximando, coberta por um manto azul, cabelos
longos, envolvida por uma luz...
Subitamente,
a pirralha se pôs a falar com um vocabulário de adulto. Pode-se dizer que seu
registro linguístico se assemelhava aos sermões aos quais os fiéis estão habituados,
na igreja. Usava a segunda pessoa do plural “vós”, mas não sabia conjugar o
verbo adequadamente. Poderia ser uma fala decorada, ou não. Era bastante longa.
De qualquer forma, não era linguagem apropriada para uma criança. Ao terminar a
prédica, pegou a bola e saiu brincando novamente, como se nada houvesse
acontecido.
Um
dos familiares de Thomé, todo contrito, ainda envolvido por uma espécie de
êxtase quase epifânico, pela proximidade da entidade celestial, perguntou-lhe:
-
E aí, meu jovem, o que você achou?
-
Achei apenas que Nossa Senhora está precisando de estudar a conjugação verbal.
Foi
como se ele jogasse uma balde de água gelada no fervor religioso. Desolada, a
família constatou a inutilidade do esforço, mas não desistiu. Para que ele não
se desviasse da linha reta que levava ao reino do Senhor, foi enviado, malgrado
sua vontade, a um seminário. A formação religiosa, a vida eclesiástica e o
recolhimento monacal se encarregariam de colocá-lo nos devidos trilhos. Por lá
permaneceu longos anos, não por vocação, evidentemente, mas com o intuito de
ter acesso gratuito a um bom ensino formal. Sua família não teria condições de
bancar seus estudos. Passou por todas as etapas, chegou a fazer teologia, mas
se esquivou da ordenação. Preferiu tornar-se professor de latim, língua que
dominava com maestria.
Décadas
após, Thomé soube que tal menina, depois de adulta, continuava tendo as mesmas
visões, no mesmo local, em horário pré-determinado e continuava também suas
pregações como porta-voz da mãe de Deus. Fiéis de todo o Brasil e até mesmo do
exterior afluíam ao local, no afã de ouvir tais mensagens. Com o tempo,
tornou-se um relevante ponto de peregrinação.
Há
alguns anos ele teve contato com outro tipo de mensagens enviadas por Nossa
Senhora, em local bem distante das pretensas aparições. Tratava-se de um
fenômeno assaz bizarro, conhecido como “as formigas bordadeiras”. As folhas de
determinada árvore eram picotadas por formigas, em formato de letras, contendo
mensagens supostamente enviadas por Nossa Senhora, em latim. Recebeu das mãos
de uma frequentadora desse local, um volume contendo mensagens digitadas e
impressas, para que as traduzisse. Ao ler parte do texto, ficou desapontado
pela pobreza do conteúdo. Não passaria aquilo adiante. Contatou a cliente e disse-lhe
que não faria a tradução por motivos de foro íntimo.
Insatisfeita,
ela insistiu em saber o motivo da recusa. Ele lhe disse apenas que não
acreditava na autoria dos textos. Nossa Senhora certamente deveria ter algo
mais importante a fazer do que enviar mensagens por meio de formigas. Além do
mais, se as mensagens fossem de sua autoria não seriam tão mal redigidas, nem
tão machistas.
Lamentava
ter desapontado tanto seus familiares quanto a fervorosa cliente. Eles
acreditavam piamente em algo que, para ele, era incoerente. Não poderia
compactuar com aquela insanidade.
Em
sua concepção, a fé não se impõe. Ela pode brotar espontaneamente em
circunstâncias propícias assim como pode desaparecer, em circunstâncias adversas.
Impossível forjá-la em mentes racionalistas. Caso o indivíduo não tenha
propensão ao misticismo, mesmo sendo criado dentro dos preceitos religiosos, um
dia, sua razão sobrepujará os dogmas, os milagres e todas as crendices
inculcadas em sua mente.
Foi o que aconteceu consigo.
Ao chegar à idade do siso, percebeu que muita coisa não se encaixava
em sua mente inquiridora. Começou espontaneamente a questionar justamente o que
era inquestionável: os dogmas. Talvez fosse influência do positivismo de Auguste
Comte, para quem o conhecimento científico sistemático era baseado em
observações empíricas. Talvez fosse resquício da Dúvida Metódica cartesiana,
linha de pensamento que duvidava de tudo. O fato é que, em sua visão juvenil de
mundo, tudo devia ser amplamente debatido. Por que os dogmas religiosos teriam
caráter indiscutível? Como poderia ter total credibilidade em algo, sem nenhuma
evidência comprobatória? A dúvida não seria inerente ao ser humano, “indivíduo
dividido” nesse mundo descabido? Poderia ele ter fé e dúvida ao mesmo tempo? A
primeira implica uma atitude contrária à segunda ou elas se complementam?
Sabe-se que a dúvida motiva o estudioso a pesquisar para resolvê-la, de modo
que ela impulsiona o acesso ao conhecimento. Nesse caso ela não seria benéfica ao
fortalecimento da fé?