“Castigat ridendo mores” (Correção dos costumes pelo
riso)
Jean de Santeuil
(Baltazar Guimarães Silva e a escritora Jô Drumond)
Como
explicar o sucesso estrondoso de uma sátira escrita há mais de meio século contra
uma determinada pessoa pública que não se mantinha nos trilhos?
Um
dos diversos teóricos do riso, Vladimir Propp afirma que a essência da sátira é
a derrisão dos defeitos dos homens. Afirma também, em seu livro Comicidade e riso (1992), que é possível
rir do ser humano em quase todas as suas manifestações, tanto na vida física
quanto na vida moral e intelectual.
A
sátira seria uma espécie de arma utilizada, às vezes, para coibir excessos e
desvios sociais e/ou individuais. A crítica, seja irônica, sutil, ferina ou
mordaz, provoca o riso de zombaria, que é um dos tipos de riso mais frequentes
na sociedade.
Baltazar
Guimarães (1926), meu conterrâneo e parente (temos ascendentes comuns),
residente em Patos de Minas (MG), fez uma espécie de cordel satírico, com 16
versos (4 estrofes) em redondilha maior (heptassílabos), com rimas alternadas, tipo
de verso muito apreciado na poesia popular.
Para
melhor entendimento de sua sátira, é mister fazer uma prévia contextualização.
Em
meados do século passado, em Patos de Minas, havia um prefeito que andava enamorado
por uma bela cidadã. Como era casado, contratou-a como chefe de gabinete.
Destarte estaria sempre a seu lado, sem levantar suspeitas. Acontece que sua
preferida era casada e afeita à poligamia. Namorava também um serralheiro, que
gostaria de tê-la por perto.
Certa
feita, a prefeitura abriu concorrência pública para a construção de mata-burros
nas estradas rurais, com aproveitamento de velhos trilhos de ferrovia. Como se
tratava de um serviço próprio de serralheiro, o namorado número 2 vislumbrou a
possibilidade de ganhar a concorrência para frequentar mais assiduamente o
gabinete onde ela trabalhava. Com esse intuito, montou uma firma de engenharia,
contratou engenheiro e fez uma proposta com custos bem abaixo do mercado, na
certeza de ser contemplado. Ciente do
estratagema de seu rival, o prefeito agiu nos mesmos moldes. Arranjou outra
firma para cobrir a proposta em iguais condições e com os mesmos valores. Em
caso de empate, cabia a ele decidir por uma das duas. Evidentemente, escolheu a
que lhe convinha.
O
serralheiro, despeitado pela proximidade cotidiana do rival com o objeto de
seus desejos e indignado com sua atitude desonesta, por ter violado a proposta
e feito outra igual, começou a maldizê-lo em rodas de bar. Incomodado com essas
maledicências, o prefeito resolveu partir para a agressão. Casualmente, entrou
em uma lanchonete onde se encontrava seu desafeto. O malfadado encontro acabou
em tapas, socos e safanões.
No
dia seguinte, o carro do prefeito apareceu com marca de tiro em uma porta
lateral. Seu rival foi acusado de tentativa de homicídio. No entanto, o exame
de balística comprovou que a bala era proveniente da arma do próprio prefeito.
Baltazar
Guimarães expôs a situação de maneira jocosa, com cadência cordelística:
Os
versos anônimos acabaram caindo nas mãos da imprensa da capital, acrescidos de uma
nota explicativa. Posteriormente foram publicados por um jornal carioca. A
rápida divulgação causou espanto ao autor, que fazia questão de se manter no
anonimato, por temer represálias do alvo da sátira, pessoa nem sempre pacífica.
Na
época, Patos de Minas ainda era uma pequena cidade, local propício para fofocas
e maledicências. Alguém acabou dando com a língua nos dentes, e Baltazar viu-se
perseguido pela administração pública. No entanto um providencial imprevisto o
livrou do castigo: o capotamento de um carro da prefeitura, na estrada de Unaí,
provocou a morte dos encarregados de castigá-lo pela indevida “molecagem”.
Quem
foi castigado, de fato, foi o prefeito, que se viu à mercê da maledicência
pública.
Na
época da colonização, Padre Antônio Vieira já dizia que Gregório de Matos, com
seus epigramas maliciosos, corrigia e educava mais rapidamente a sociedade
brasileira do que ele com seus sermões
.
(Baltazar e seu filho Caio, com Jô Drumond)
Nota:
Em
recente bate-papo com o autor, ele frisou a ambiguidade do título
(“Concorrência” pública e amorosa) e
ressaltou alguns detalhes que não devem passar despercebidos:
*
“TAÍ.DÃO, tiro na rua: o responsável pelo tiro, chamado Ataídes, tinha a
alcunha de TAÍDÃO.
*“por
alguém que se dis...PUTA”: do verbo disputar (a concorrência) e ao mesmo tempo menção
à vida poligâmica do pivô do conflito.
*“um
crime quase PERFEITO”: (perfeito/prefeito) “quase”, porque o exame de
balística pôs fim à farsa de tentativa
de homicídio.
*“o
homem já vai à lua”: isso aconteceu na época da primeira viagem do homem à lua.