sexta-feira, 3 de agosto de 2018

30.000 MORTES CAUSADAS POR FAKE NEWS


Uma longa, penosa e custosa guerra civil desencadeada em Canudos, no final do século XIX, no sertão da Bahia, foi provocada por boatos infundados e por equívocos militares. O conflito foi desencadeado devido à fake new de um representante da justiça (juiz de Direito) quanto à hipótese de uma iminente invasão de uma determinada cidade, pelos seguidores do beato Antônio Conselheiro. O estopim do conflito foi um simples entrevero relacionado à compra de um madeirame adquirido pelos conselheiristas. A represália dos compradores pela não entrega do produto desencadeou um conflito noticiado erroneamente na capital do país como levante monarquista para desestabilizar a jovem República, de apenas oito anos de idade.

 Esse foi o motivo da primeira expedição do governo contra Canudos. A cada fracasso do exército, nova expedição era enviada. Os jagunços se apoderavam do mantimento, do armamento e da munição enviados pelo governo. O restante do país, distante do conflito e com parcos meios de comunicação, não entendia o motivo do fracasso das expedições. Acreditava-se que os sertanejos recebiam ajuda bélica, quiçá internacional, de monarquistas. Até mesmo Euclides da Cunha, antes de vivenciar o conflito, acreditava nessa hipótese. Tanto é que escreveu dois artigos para o jornal, intitulados “A nossa Vendeia”, uma referência explícita à histórica “Revolta da Vendeia”, na França, em 1793. Juntamente a um reforço à 4ª expedição, o engenheiro Euclides da Cunha foi enviado à Bahia por um jornal Paulistano, para fazer a cobertura jornalística da guerra de Canudos. Foi então que ele concebeu sua obra Os sertões, a partir das crônicas de campanha.

Em Canudos 25.000 habitantes foram massacrados pela força governamental. Somam-se a esse número 5.000 baixas do lado do exército invasor, o que dá um total de cerca de trinta mil mortos, num infundado conflito fratricida. Ao conhecer de perto o conflito, o enviado especial se deu conta do engano de toda a imprensa nacional e internacional. Não existia levante algum em Canudos. O rude sertanejo era tão ignorante que não tinha noção conceitual de Monarquia nem de República; tais termos não passavam de palavras ocas, de simples abstrações, no universo sertanejo. O que lhes interessava, além da sobrevivência imediata, eram as pregações do messias Antônio Conselheiro e a fé religiosa. Aqueles que eram considerados inimigos do governo não passavam de um bando de carolas ignorantes que seguiam cegamente seu líder espiritual. Atacados pelas tropas governamentais, eles se defendiam como podiam, numa guerra, que, para eles, era santa. O que estava em jogo era a defesa do grande pastor Antônio Conselheiro e de seu rebanho contra os invasores.

Na época do conflito, muitos boatos surgiram a respeito de Canudos. Diziam que Antônio Conselheiro contava com mais de vinte mil oficiais capazes, e que os monarquistas estariam ligados aos fanáticos do sertão. Ponderavam que, sem essa ajuda, estes não seriam capazes de enfrentar as tropas do Governo. Os monarquistas acabaram sendo injustamente responsabilizados pelas derrotas das forças governamentais. Por conseguinte, naquela época, três jornais monarquistas do Rio e um de SP foram depredados e fechados.

In loco, Euclides percebeu que os revezes sofridos até então pelas tropas eram explicados pelo fato de o Exército não ter uma linha contínua de piquetes que permitissem a marcha segura de comboios contendo víveres e munições, e pela ausência de um serviço garantido de transmissão regular e rápida de notícias. O escritor chegou a afirmar, em correspondência, que o governo não ganharia a guerra nem mesmo se enviasse mais de cem mil homens; poderia ganhá-la graças aos burros que transportassem alimentos e munições para os guerreiros.

Euclides demonstra, em seu livro, que o motivo de tantos fracassos por parte das tropas do Governo foi provocado, em parte, pelo desconhecimento do meio ambiente e, por conseguinte, pela falta de estratégia adequada àquele tipo de topografia, de clima e de vegetação. Os sertanejos, habituados às condições climáticas desfavoráveis ao homem da cidade, eram profundos conhecedores da região onde viviam. Usavam vestimentas de couro, próprias para o deslocamento entre pedregulhos, gravetos e espinhos, sob sol escaldante, o que lhes permitia muito mais agilidade. Além disso, conhecedores das trincheiras e tocaias naturais da topografia local, surpreendiam facilmente o inimigo ao longo do percurso para Canudos, em locais de difícil fuga. Pilhavam seus víveres e munições para abastecimento próprio. As forças do Governo, com uniformes inadequados (que se agarravam à vegetação espinhenta), deslocavam-se dificilmente na caatinga. Os que escapavam a caminho, durante os ataques, muitas vezes se perdiam, sem provisões, sem água e pereciam por inanição e desidratação.

A guerrra chegou ao fim, segundo o jornalista, por absoluta falta de combatentes inimigos.  Os sertanejos sitiados, já quase mortos de fome e de sede, em momento algum se entregaram. Na invasão do arraial, crianças, mulheres e velhos foram trucidados. Os que ainda tinham forças para a luta se mantiveram altivos e corajosos até à última chama de vida.

Concluindo, o massacre de Canudos teria sido apenas um infeliz episódio ocorrido no início da República, relegado providencialmente ao esquecimento, não fosse a força e a densidade do texto euclidiano que resgata o conflito, desnuda a realidade e leva o leitor a um posicionamento crítico. Em Os sertões, o autor faz um belíssimo relato dos motivos que engendraram o conflito, do desenvolvimento das campanhas do Exército brasileiro contra a pobre comunidade, e do trágico desfecho. Testemunha presencial da carnificina, o jornalista-escritor tem a humildade de reconhecer sua própria falta (e a de todo o Brasil), ao considerar erroneamente os conselheiristas como monarquistas rebelados contra a República. Além disso, tem a coragem de acusar o poder constituído (do qual fora representante, como militar) de crime contra a humanidade.

A cidade de Canudos foi duplamente extirpada da paisagem brasileira: trucidada e incendiada pelo exército, em 1987; afogada e inundada pelas águas do açude Cocorobó, em 1969. Submergiram juntamente com ela as três grandes vergonhas dos representantes do poder constituído: a infâmia de um representante da justiça, que desencadeou o conflito baseando-se em falsidade, o constrangimento da Igreja católica, cujo enviado local insuflou ataques contra o Conselheiro e o logro das expedições governamentais, apesar do poderio bélico, contra simples e despreparados sertanejos.

Jô Drumond   - Agosto 2018

sexta-feira, 27 de julho de 2018

FAKE NEWS E AS ELEIÇÕES DE 2018


JÔ DRUMOND 
As fake news podem influenciar as eleições de 2018? Infelizmente, sim. Tanto é que diversos veículos brasileiros de mídia se uniram para monitorar essa questão. As mentiras travestidas de verdades, assim como as desinformações veiculadas frequentemente nas redes sociais, com o objetivo de ocultar as verdades, confundem as pessoas; a manipulação de informações cria falsas convicções e pode mover o fiel da balança no período eleitoral.

A internet é recente, mas as fake news existem desde a Grécia antiga, porém sem esse rótulo anglicista da era digital. Com o advento das redes sociais, a rapidez da disseminação de notícias falsas nas mãos de pessoas inescrupulosas é realmente preocupante no jogo do “vale tudo” eleitoral.

No dia 22 de julho foi publicada uma reportagem especial no jornal A Gazeta (ES), intitulada “Boatos mudaram curso da história brasileira”, na qual se afirma que criar notícia falsa com interesse político não é novidade em nosso país; citam-se poderosos boatos que alteraram a história do Brasil. Neste período pré-eleitoral, é mister conscientizar o eleitor do acontecido e alertá-lo para o que poderá acontecer. Por isso tomo a liberdade de registrar, sucintamente, alguns efeitos nefastos da boataria nos rumos da política brasileira, registrados pela reportagem citada: 

Em 1889 a proclamação da República se deveu à revolta dos militares e, por conseguinte, à deposição do Imperador, por causa da divulgação da notícia, jamais confirmada, de que ele mandara prender militares republicanos.

Em 1921, foram publicadas cartas ofensivas dirigida aos militares e a Nilo Peçanha. Tais cartas eram falsamente atribuídas a Arthur Bernardes, para prejudicar sua candidatura à Presidência.

Em 1937 houve um golpe de Getúlio Vargas, com o intuito de permanecer no poder. Foi veiculada pelo rádio a descoberta, por parte do governo, de um plano comunista (plano Cohen), que tornaria reféns tanto os ministros de Estado quanto a Corte Suprema. As eleições foram suspensas e  Getúlio iniciou o Estado Novo.

Em 1945, a falsa notícia de que o candidato Eduardo Gomes teria dito que  dispensava os votos dos marmiteiros, ou seja, do pessoal de baixa renda, o que ocasionou a vitória a Gaspar Dutra.

Em 1964, a justificativa do golpe militar foi a ameaça comunista. O então presidente João Goulart foi rotulado de comunista a serviço de países considerados inimigos, o que também não era verdade.

Como se vê, o perigo das fake news não é falso. Ele paira sobre as próximas eleições. Por isso foi criado um curso online gratuito, sob a chancela da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), para alertar o público em geral. Tal curso encontra-se à disposição dos interessados no site www.firstdraftnews.org/learn.O facebook acaba de  desativar 196 páginas e 87 contas com o intuito de reprimir perfis enganosos, que tinham aparentemente o propósito de difundir desinformações, antes das eleições de outubro.  

O desejo do poder muitas vezes envereda por meios tortuosos: artimanhas, traições, assassinatos, batalhas e guerras. A expressão popular “os fins justificam os meios”, atribuída a Maquiavel (1469-1527), também é fake.  Maquiavel não era nenhum santo, mas a leitura apressada e descontextualizada de suas teorias leva muita gente a lhe atribuir erroneamente a falta de ética de suas verdades. Seu objetivo, no livro O Príncipe (1513), era analisar o governo do príncipe Lourenço de Médici e lhe oferecer uma forma de manter-se permanentemente no poder, sem ser odiado pelo público. 

Na era do iluminismo, Rousseau (1712-1778) lançou a teoria do “bon Sauvage”: “L’homme naît bon; c’est la société qui le corrompt.” (O homem nasce bom; é a sociedade que o corrompe.) O homem, na ótica de Maquiavel, seria justamente o contrário: ele nasce egoísta e mau; é a sociedade que o molda. Qual dos dois estaria certo? Nenhum dos dois? Talvez ambos? A sociedade tanto pode moldar o homem para o bem, quanto para o mal. O certo é que, como já foi dito, nos dias de hoje, o perigo do fake não é falso. 

Jô Drumond
26/07/17



quinta-feira, 12 de julho de 2018

DIFERENÇAS CULTURAIS ENTRE BRASIL E JAPÃO

Hábitos e costumes de qualquer sociedade, ou seja, seus aspectos consuetudinários, variam no tempo e no espaço. Algo que é aceito em certas épocas pode ser condenável em outras, e vice-versa. O que é usual em certas culturas orientais pode ser inusual para nós, ocidentais. Ao ler o livro Stupeur et tremblements, de Amélia Nothomb, escritora de origem belga, nascida no Japão em 1967, surpreendi-me com a grande incidência de diferenças culturais, na contemporaneidade, entre o Ocidente e o Oriente.

A autora, filha de uma ilustre família belga, viveu no Japão até os cinco anos de idade. Depois disso, acompanhou seu pai, barão e ex-embaixador em Roma, nas andanças diplomáticas mundo afora : Nova Iorque, Pequim, Laos, Bangladesh, Birmânia... Instalou-se posteriormente na Bélgica, durante 17 anos, para concluir seus estudos em Filologia Romana. Logo depois, decidiu trabalhar como intérprete em uma grande empresa de Tóquio. Foi agraciada com o prêmio de melhor romancista do ano pela Academia Francesa, graças à publicação do romance que ora veremos, intitulado Stupeur et tremblements, publicado em 1999. Trata-se do relato de sua experiência sob os rigorosos códigos de conduta da cultura nipônica, muitos deles incompreensíveis e/ou inaceitáveis, a seu ver. Ela registra gafes, surpresas, incompreensões, anseios e inseguranças de uma novata estrangeira, dentro de uma grande empresa, cujo ambiente, além de desconhecido, é altamente hierarquizado e opressor.
(Amélie Nothomb, nascida em 1967)

A história se passa em Tóquio, entre 7 de janeiro de 1990 e 7 de janeiro de 1991, dentro de uma empresa chamada Yumimoto, para a qual ela foi contratada. Amélie Nothomb (personagem, narradora e autora) pinta satiricamente, de maneira impiedosamente hilária, as diferenças culturais entre os dois mundos nos quais circula. Seu estilo leve e jocoso torna a leitura agradável até mesmo nos momentos mais degradantes, nos quais ela se encontra no fundo do abismo, mergulhada num pesadelo que lhe serviu como tema para esse romance autobiográfico.

Devido à inaceitação dos hábitos ocidentalizados da nova empregada, por parte das chefias, ela tem uma queda vertiginosa na hierarquia da empresa. Apesar de ter sido contratada como tradutora e intérprete, passa por várias funções, cada vez mais degradantes, até chegar a uma função para a qual não precisaria de diplomação alguma: faxineira dos banheiros.

Submetida a constantes constrangimentos e humilhações, Amélie percebe claramente o menosprezo por parte dos que a cercam, devido a suas atitudes ocidentalizadas. Por vezes notava até mesmo certa repugnância pelos ocidentais. Por exemplo, quando aborda a questão da transpiração, absolutamente inaceitável para os japoneses. Não há nada mais vergonhoso e vulgar que transpirar. « Nous ne pourrions pas les empêcher de suer. C’est leur race. – Chez eux, même les belles femmes transpirent. » (Não poderíamos impedi-los de suar. É da raça. Entre eles, até mesmo as belas mulheres transpiram.) A autora acrescenta ironicamente que entre transpirar e se suicidar se deve priorizar a segunda opção, pois, após a morte, a angústia da transpiração acabará pelo resto da eternidade.

Vejamos algumas particularidades interessantes :

Inaceitação da presença de pelos no corpo, por parte dos asiáticos. « Não há nada mais imundo que ter pelo do corpo. »

A obesidade também é desprezante e vergonhosa. Os obesos são ridicularizados.

O cúmulo da grosseria para eles é assoar o nariz em público. Quanto a isso, todos nós concordamos como grosseria, mas não como o cúmulo da.

Há detalhes que, para nós, não têm nenhuma relevância, mas, para eles, são importantíssimos. Por exemplo, o usuário do banheiro deve apertar o botão da descarga, sem cessar, durante o pipi, para que ninguém ouça o ruído da urina.

Quanto aos nomes próprios, eles podem ser derivados de qualquer categoria gramatical. Por exemplo, o filho do personagem Saito se chama « Trabalhar ». Pode-se registrar o nome de um filho a partir de um adjetivo, substantivo, verbo, advérbio...

As crianças podem ser tratadas como pequenos deuses, com todas as regalias, somente até os três anos. Segundo a autora, as crianças recebem um « golpe seco », poderíamos dizer « cruel », ao serem expulsas do paraíso da infância, para se inscrever no serviço militar, que vai dos 3 aos 18 anos e dos 25 anos até a morte.

Toda mulher deve se casar até os 25 anos, como se o prazo de validade vencesse nessa idade. Caso continue celibatária, é motivo de deboches. A autora enfatiza a degradante condição feminina no Japão. Ela explica a incoerência do sistema japonês com relação à mulher, que deve ser perfeita, no trabalho, com dedicação total e absoluta, o que a leva a ultrapassar a idade de 25 anos, por falta de tempo para um relacionamento. Justamente pelo fato de ser perfeita no trabalho, ela se torna imperfeita ou defeituosa (sem marido), aos olhos da sociedade. Segundo Amélie, a vida das mulheres japonesas não vale a pena ser vivida nem antes, nem depois do casamento. Ela chega a se admirar pelo fato de não haver suicídio feminino em massa. O fato de uma mulher optar pela vida e não pelo suicídio, na opinião da autora, é um ato de resistência e de coragem. Acrescenta que o suicídio, cuja taxa é altíssima, no Japão, é visto como atitude honrosa, naquele país. « Si tu te suicides, ta réputation sera éclatante et fera la fierté de tes proches. » (Se tu te suicidas, tua reputação será deslumbrante e fará o orgulho de teus próximos.)

No cotidiano da empresa, Amélie faz o possível para agradar a todos, sem se dar conta de que acontece justamente o contrário. Ela não sabia que nunca se deve saltar um degrau da hierarquia, ou seja, o empregado só tem direito de se dirigir à sua chefia imediata. Não sabia tampouco que a submissão é absoluta. Por exemplo, um crime grave de iniciativa, cometido por ela, foi o de distribuir a correspondência, sem ter pedido a permissão do chefe. Ela desconhecia o fato de que, em momento algum, um subalterno pode retrucar ou questionar alguma ordem recebida de um superior, mesmo que seja totalmente estapafúrdia.

Houve um momento, em que ela tentou se manifestar a favor de um colega de trabalho incriminado injustamente dentro da empresa. Ordenaram-lhe, em tom peremptório, que se calasse. Tal ordem foi seguida de um comentário preconceituoso: « Ce pragmatisme odieux est digne d’un occidental » (esse pragmatismo odioso é digno de um ocidental).

Os chefes são, ao mesmo tempo, escravos e carrascos do sistema. Fubuki, chefia direta de Amélie, deixa-lhe bem claro que não existe amizade dentro de uma empresa. O que pode existir é uma boa relação entre colegas. Amélie é oprimida ao máximo por Fubuki, que, por sua vez, o é por parte de seu chefe, Saito. Este se submete aos caprichos de Omochi e todos eles devem submissão absoluta ao chefe supremo Haneda.

A autora escolheu o título Estupor e tremores justamente para ironizar o excesso de submissão existente no país. Ele explica, na página 171, que, no antigo protocolo imperial japonês, era estipulado que se deveria dirigir ao imperador com estupor e tremor.

A tradução literal do título não foi respeitada. Ele foi traduzido para o português como Medo e submissão. Sabe-se que « estupor » (assombro, grande espanto) é bem mais forte que medo. « Tremor » é bem diferente de submissão, mas a solução encontrada em português para o título traduz melhor o conteúdo do livro que o título original.

(Capas do livro)

Às vezes, Amélie se comportava desse modo (fazia cara de espanto e tremia falsamente), diante de Fubuki, que não atinava com a ironia de sua subalterna. Quanto mais era maltratada e humilhada, mais tinha vontade de rir. Dentro da empresa ela se sentia como personagem de um filme.

Indignados com o rebaixamento aviltante de Amélie à faxina dos banheiros do 44º andar, onde trabalhavam, alguns colegas fizeram um boicote, considerado pelas chefias como sabotagem. Passaram a usar os banheiros dos outros andares, o que acarretava perda de tempo e, por conseguinte, redução na produção do trabalho. A autora aproveitou o ensejo para registrar que o mais grave delito nipônico, a sabotagem, é um crime tão odioso que não existe uma palavra em japonês que possa exprimir tamanho aviltamento. Usam então um termo francês: « sabotage ». Na opinião deles, « il faut être étranger pour imaginer pareille bassesse » (é preciso ser estrangeiro para imaginar tal baixeza).

Há muitos outros aspectos interessantes a serem focalizados no livro. Encerramos esta resenha citando mais um costume diferente dos nossos, vivenciado pela narradora nos últimos dias de contrato com a empresa, no final de 1991. Durante a passagem de ano, todos respeitam um repouso ritual e obrigatório de três dias e três noites, período em que não se pode nem mesmo cozinhar. Comem-se pratos frios, preparados anteriormente.

Poucos dias depois do réveillon, Amélie Nothomb volta para a Bélgica e começa sua carreira como escritora. Hoje, apesar de ainda jovem, tem mais de 30 títulos no mercado, alguns deles traduzidos em diversas línguas e outros com adaptação para o cinema.
Jô Drumond