Uma longa, penosa e custosa guerra civil desencadeada em
Canudos, no final do século XIX, no sertão da Bahia, foi provocada por boatos
infundados e por equívocos militares. O conflito foi desencadeado devido à fake
new de um representante da justiça (juiz de Direito) quanto à hipótese de uma
iminente invasão de uma determinada cidade, pelos seguidores do beato Antônio
Conselheiro. O estopim do conflito foi um simples entrevero relacionado à
compra de um madeirame adquirido pelos conselheiristas. A represália dos
compradores pela não entrega do produto desencadeou um conflito noticiado
erroneamente na capital do país como levante monarquista para desestabilizar a
jovem República, de apenas oito anos de idade.
Esse foi o motivo da
primeira expedição do governo contra Canudos. A cada fracasso do exército, nova
expedição era enviada. Os jagunços se apoderavam do mantimento, do armamento e
da munição enviados pelo governo. O restante do país, distante do conflito e
com parcos meios de comunicação, não entendia o motivo do fracasso das
expedições. Acreditava-se que os sertanejos recebiam ajuda bélica, quiçá
internacional, de monarquistas. Até mesmo Euclides da Cunha, antes de vivenciar
o conflito, acreditava nessa hipótese. Tanto é que escreveu dois artigos para o
jornal, intitulados “A nossa Vendeia”, uma referência explícita à histórica
“Revolta da Vendeia”, na França, em 1793. Juntamente a um reforço à 4ª
expedição, o engenheiro Euclides da Cunha foi enviado à Bahia por um jornal
Paulistano, para fazer a cobertura jornalística da guerra de Canudos. Foi então
que ele concebeu sua obra Os sertões, a partir das crônicas de campanha.
Em Canudos 25.000 habitantes foram massacrados pela força
governamental. Somam-se a esse número 5.000 baixas do lado do exército invasor,
o que dá um total de cerca de trinta mil mortos, num infundado conflito
fratricida. Ao conhecer de perto o conflito, o enviado especial se deu conta do
engano de toda a imprensa nacional e internacional. Não existia levante algum
em Canudos. O rude sertanejo era tão ignorante que não tinha noção conceitual
de Monarquia nem de República; tais termos não passavam de palavras ocas, de
simples abstrações, no universo sertanejo. O que lhes interessava, além da
sobrevivência imediata, eram as pregações do messias Antônio Conselheiro e a fé
religiosa. Aqueles que eram considerados inimigos do governo não passavam de um
bando de carolas ignorantes que seguiam cegamente seu líder espiritual.
Atacados pelas tropas governamentais, eles se defendiam como podiam, numa
guerra, que, para eles, era santa. O que estava em jogo era a defesa do grande
pastor Antônio Conselheiro e de seu rebanho contra os invasores.
Na época do conflito, muitos boatos surgiram a respeito de Canudos.
Diziam que Antônio Conselheiro contava com mais de vinte mil oficiais capazes,
e que os monarquistas estariam ligados aos fanáticos do sertão. Ponderavam que,
sem essa ajuda, estes não seriam capazes de enfrentar as tropas do Governo. Os
monarquistas acabaram sendo injustamente responsabilizados pelas derrotas das
forças governamentais. Por conseguinte, naquela época, três jornais
monarquistas do Rio e um de SP foram depredados e fechados.
In loco, Euclides percebeu que os revezes sofridos até então
pelas tropas eram explicados pelo fato de o Exército não ter uma linha contínua
de piquetes que permitissem a marcha segura de comboios contendo víveres e
munições, e pela ausência de um serviço garantido de transmissão regular e
rápida de notícias. O escritor chegou a afirmar, em correspondência, que o
governo não ganharia a guerra nem mesmo se enviasse mais de cem mil homens;
poderia ganhá-la graças aos burros que transportassem alimentos e munições para
os guerreiros.
Euclides demonstra, em seu livro, que o motivo de tantos
fracassos por parte das tropas do Governo foi provocado, em parte, pelo
desconhecimento do meio ambiente e, por conseguinte, pela falta de estratégia
adequada àquele tipo de topografia, de clima e de vegetação. Os sertanejos, habituados
às condições climáticas desfavoráveis ao homem da cidade, eram profundos
conhecedores da região onde viviam. Usavam vestimentas de couro, próprias para
o deslocamento entre pedregulhos, gravetos e espinhos, sob sol escaldante, o
que lhes permitia muito mais agilidade. Além disso, conhecedores das
trincheiras e tocaias naturais da topografia local, surpreendiam facilmente o
inimigo ao longo do percurso para Canudos, em locais de difícil fuga. Pilhavam
seus víveres e munições para abastecimento próprio. As forças do Governo, com
uniformes inadequados (que se agarravam à vegetação espinhenta), deslocavam-se
dificilmente na caatinga. Os que escapavam a caminho, durante os ataques,
muitas vezes se perdiam, sem provisões, sem água e pereciam por inanição e desidratação.
A guerrra chegou ao fim, segundo o jornalista, por absoluta
falta de combatentes inimigos. Os
sertanejos sitiados, já quase mortos de fome e de sede, em momento algum se
entregaram. Na invasão do arraial, crianças, mulheres e velhos foram trucidados.
Os que ainda tinham forças para a luta se mantiveram altivos e corajosos até à
última chama de vida.
Concluindo, o massacre de Canudos teria sido apenas um
infeliz episódio ocorrido no início da República, relegado providencialmente ao
esquecimento, não fosse a força e a densidade do texto euclidiano que resgata o
conflito, desnuda a realidade e leva o leitor a um posicionamento crítico. Em
Os sertões, o autor faz um belíssimo relato dos motivos que engendraram o
conflito, do desenvolvimento das campanhas do Exército brasileiro contra a
pobre comunidade, e do trágico desfecho. Testemunha presencial da carnificina,
o jornalista-escritor tem a humildade de reconhecer sua própria falta (e a de
todo o Brasil), ao considerar erroneamente os conselheiristas como monarquistas
rebelados contra a República. Além disso, tem a coragem de acusar o poder
constituído (do qual fora representante, como militar) de crime contra a
humanidade.
A cidade de Canudos foi duplamente extirpada da paisagem
brasileira: trucidada e incendiada pelo exército, em 1987; afogada e inundada
pelas águas do açude Cocorobó, em 1969. Submergiram juntamente com ela as três
grandes vergonhas dos representantes do poder constituído: a infâmia de um
representante da justiça, que desencadeou o conflito baseando-se em falsidade,
o constrangimento da Igreja católica, cujo enviado local insuflou ataques
contra o Conselheiro e o logro das expedições governamentais, apesar do poderio
bélico, contra simples e despreparados sertanejos.
Jô Drumond - Agosto
2018