sexta-feira, 17 de março de 2017

A MOÇA DE BRANCO

Jô Drumond

Após algumas “biritas”, num boteco próximo à igreja Santa Efigência, em Ouro Preto, Marcos avistou, na rua, uma bela jovem com longos cabelos louros, soltos sobre túnica branca. Aproximou-se dela e ofereceu-lhe bebida. Ela respondeu-lhe negativamente, com um gesto, que não bebia. Ofereceu-lhe cigarro. Não fumava. Convidou-lhe para entrar e dançar um forró. Não dançava. Perguntou-lhe se morava por perto. Ela apontou uma casa. O jovem se ofereceu para acompanhá-la. Como a noite estava fria, tirou seu paletó e o colocou sobre os ombros da moça. Despediu-se à porta e se foi. Ao sentir frio, lembrou-se do paletó. Que esquecimento providencial! – pensou o rapaz – amanhã terei uma boa desculpa para procurá-la. Queria ver, à luz do dia, aquela formosura da qual nem sabia o nome.
Na manhã seguinte, ao bater à porta, foi atendido por uma idosa circunspecta. Disse-lhe que gostaria de falar com a moça que residia naquela casa. A velha lhe respondeu que morava sozinha. Ele alegou que, na véspera, havia acompanhado uma jovem até a porta daquela casa e que tinha voltado para buscar seu paletó, usado para protegê-la contra a friagem da noite. A velha, meio brava, disse-lhe que zarpasse dali, que bebesse menos, para não ter visões. Ali não morava moça alguma.
Marcos olhou de relance o interior da casa e viu a foto da moça sobre um console, na saleta de entrada. Apontou o porta-retratos dizendo que se tratava daquela jovem da foto. Garantiu-lhe que não estava ébrio, na noite anterior.
- Não pode ser, seu moço!
- Quem é ela?
- É minha filha.
- A senhora poderia chamá-la, por obséquio?
- Não senhor, por obséquio algum.
- Por que não?
- Ela não mora mais aqui
- Mas eu mesmo a acompanhei ontem à noite, da porta do bar até aqui.
- Você deve ser um desses que vivem se encharcando de cachaça, no bar do meu vizinho.
- Não senhora, não sou daqui e não estava bêbado.
- Pois bem, seu moço. Pode ter sido alucinação. Ela faleceu há seis anos.
- Como assim? Eu a vi ontem! Estou certo disso. Quem me garante que a senhora está dizendo a verdade? Por que está me escondendo sua filha?
- Posso lhe provar.
- Pois prove!
- Venha comigo.
Subiram a escadaria, contornaram a igreja, pela direita, e entraram num pequeno cemitério. Aproximaram-se de um túmulo, no qual estava estampada a mesma foto da jovem. Marcos ficou estático. Um frio percorreu-lhe a espinha; um frisson sacudiu-lhe por inteiro. Sobre o túmulo, ao lado da foto, encontrava-se seu paletó. A velha ficou pasma, mais branca que a lápide do jazigo. Um mal estar súbito se apoderou de ambos. Ele acreditou que ela havia dito a verdade. Por sua vez, ela acreditou na história fantasmagórica da véspera. Silêncio sepulcral. Em estado de choque, o rapaz afastou-se rapidamente, sem nada dizer, e se foi, deixando sobre a lápide a prova daquele assombro.

(“causo” que se conta em Ouro Preto, narrado pela contadora de histórias, Ângela Xavier)

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias. de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)

quinta-feira, 2 de março de 2017

VIDA A DOIS

*Jô Drumond

Casais aparentemente felizes são motivo de inveja ou de admiração dos demais. No entanto, muitas vezes, o que se vê não é o retrato do que se vive entre quatro paredes. Como diz o ditado popular, “a grama do vizinho é sempre mais verde”, até que se descubra que ela é artificial. Há relacionamentos inusitados, na vida a dois. Disponho-me a relatar alguns casos de conhecidos meus. Os nomes são, evidentemente, fictícios, mas os fatos são reais.

Convivi com um casal do tipo “felizes para sempre”, saído de um conto de fadas. O marido se desdobrava em elogios e carinhos para com a amada, diante dos familiares e dos amigos. Nunca se viu marido tão extremoso, educado, dedicado e gentil. Certo dia, em conversa reservada com sua esposa, descobri que ela era muito infeliz. Seu maior sonho era se desvencilhar da falsidade em pessoa, travestida de marido. No aconchego do lar, ou melhor, de um lar sem aconchego algum, ele era possessivo, seco, egoísta ao extremo, mal-educado, e, às vezes, bruto. Todo e qualquer gesto de carinho ou afeição era reservado às demonstrações públicas. Na farsa do “par perfeito”, ela não passava de simples marionete, ao bel-prazer do manipulador. Ninguém da família acreditava nas constantes reclamações por parte da esposa. Era-lhe inútil “bater na mesma tecla”. O quadro da opressão foi se transformando, aos poucos, em depressão, somatização, definhamento físico, baixa imunidade... e desaguou em doença degenerativa. Instalada em ambiente propício, a moléstia teve a gentileza de livrá-la logo daquele suplício e de conduzi-la por sendas desconhecidas dos viventes.

Conheci também um casal quase oposto ao primeiro. Não havia elogios nem carinhos em seu repertório. Depois de idosos, a distração preferida de ambos era a implicância mútua, sobretudo em público. Cada um se empenhava em listar defeitos, ranzinzisses e caduquices do outro. No entanto, um forte amálgama os unia. Não saberiam viver separados. Quando um tinha que se ausentar por motivo de viagem, o outro chegava a adoecer de tristeza. E assim foram se espezinhando no dia a dia, até “a vez e a hora”, quase simultâneas, de ambos.

Isso me remete a outro casal de idosos que conheci. Seu Zeca e Dona Maricota viveram além da conta. Não se sentiam no direito de morrer. Um teria que cuidar do outro ad aeternum. Se eu me for - dizia ele - quem vai zelar por minha Maricotinha? Tão frágil, tão velhinha! Se eu morrer - dizia ela, por sua vez -  quem vai fazer o guisado preferido do Zequinha? Quem vai lhe dar os remedinhos na hora certa? Ele anda tão fraco! Coitadinho!

“No frigir dos ovos”, nenhum dos dois desencarnava. Os filhos foram envelhecendo e minguando; os netos foram se casando; os bisnetos crescendo; os trinetos nascendo... e os dois anciões continuavam envolvidos até os ossos com a decrepitude. Numa ensolarada manhã de um dia qualquer, Maricota não acordou. Ao perceber que o coração dela parara, o dele resolver fazer o mesmo, por solidariedade. Partiram juntos, pelos caminhos do absoluto.

“Em cada cabeça uma sentença.” Em cada casal uma desavença. Depois dos filhos crescidos e casados, os camponeses Marli e Mário passaram a viver a dois, num terreno de poucos hectares, herdado dos antepassados. Ela cuidava da casa, da cozinha, da horta e das galinhas. Ele, mantendo o preceito de bom provedor, se encarregava do minguado gado leiteiro e da lavoura, que lhes garantia o sustento. 

À tarde, tendo lavorado o dia todo, eventualmente ele parava numa birosca à beira da estrada, para umas biritas. Aos poucos, o eventual tornou-se habitual. As biritas tornaram-se “porre”. Mário voltava pra casa tropeçando nas sombras da noite, caindo aqui, ali, acolá. Dependendo do teor etílico, enchia sua meiga mulher de “porradas”, sem motivo algum. Desgostosa do marido e da vida, ela passou a beber cachaça, enquanto o esperava. Sua meiguice foi se transformando em matreirice. Numa noite, “mais ébrio que um gambá”, ele se pôs a espancá-la. Ela também havia bebido, porém bem menos que ele. O álcool aqueceu as veias da vítima, subiu-lhe à cabeça e lhe deu coragem para enfrentar o agressor. O “saco de pancadas” revidou com força total, complementada por porretadas e cadeiradas. A sova foi tamanha, que o pobre ébrio passou o resto da noite prostrado no assoalho. No dia seguinte foi ao posto de saúde mais próximo, cheio de hematomas e algumas fraturas, dizendo-se atropelado. Jamais contou como se deu o atropelamento. Jamais levantou a mão contra a meiga Marli.

Filhos podem representar bênção ou maldição para um casal desajustado. Ter um filho para salvar a relação é grande risco. O remédio pode dar efeito contrário. Isso aconteceu com conhecidos meus. O filho, encomendado com o intuito de estabilizar a instabilidade, era extremamente problemático, o que acarretou a ruptura definitiva dos pais.

Por falar em ruptura, Elga e Elton desistiram de se divorciar porque nenhum dos dois queria a guarda dos filhos. Ambos trabalhavam o dia todo. Não dispunham de tempo, nem de paciência para cuidar dos pimpolhos. Acabaram mantendo a relação, “aos trancos e barrancos”, para compartilhar as birras, as travessuras e as doenças infantis dos garotos. No entanto, pouco tempo depois, perderam os filhos num trágico acidente automobilístico. Não havendo mais empecilho, o divórcio se concretizou.

Conheci um caso interessante, em que os filhos não aceitaram a reconciliação dos pais. Os três filhos de Tôco e Têca cresceram em ambiente hostil, passível de frequentes brigas, gritos e impropérios. Depois de muito “arranca-rabo”, o casal achou por bem se separar. Cada um viveria por si, sem a desagradável presença do outro. A mãe se foi, deixando a casa, o marido, as crianças e poucas saudades. O pai se desdobrou para que não faltasse nada às crianças. Um regime de paz e harmonia passou a reinar entre eles. Anos depois, já crescidos, foram informados de que o casal fizera as pazes e que a família poderia se reconstituir sob o mesmo teto. A reação contrária foi tamanha, que os pais tiveram que manter a separação, para evitar o total desmantelamento do que restava.

O ser humano é um animal gregário. No entanto o compartilhamento da vida nem sempre é pacífico. Relacionamentos entre pais, filhos e irmãos podem ser conflituosos, ou não. Apesar de cada um manter sua individualidade, todos têm o mesmo berço, a mesma criação, os mesmos costumes... Família é para sempre. Não se escolhe. Já o relacionamento amoroso pode ser escolhido, assim como descartado. Para constituir novo núcleo familiar, o/a jovem deixa sua família para viver com outro/a, de família diversa: outros costumes, outra moral, até mesmo outro idioma. A escolha pode dar certo, ou não. Como diz a canção popular, “casamento é loteria”.

Conflitos familiares sempre existiram, com peculiaridades diversas. Nenhuma relação é “um mar de rosas” o tempo todo.  Há momentos de tensão, de desgosto, de desespero, de desavenças, mas há também momentos de bem-estar, de alegria, de afeição e bem-aventurança. Segundo Aristóteles “a virtude está no meio”. Donde se infere que o importante é manter o equilíbrio entre as polarizações. No palco desse grande teatro, que é o mundo, cada um deve encenar, da melhor forma possível, a curta cena que lhe foi legada.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias. de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

O MORRO (NÃO) TEM VEZ?

*Jô Drumond


Certa vez meu avô disse que, com o aumento da violência, chegaria o dia em que os homens de bem ficariam presos, em casa, e os bandidos soltos, na rua. Pois bem. Esse dia chegou em Vitória. Hoje, dia seis de fevereiro de 2017, a cidade, apavorada, foi totalmente parada por contraventores de toda espécie. Sem policiamento algum, desde o dia 4, devido a uma manifestação que mantém os policiais aquartelados, a população está entregue de bandeja aos marginais, sem ter a quem recorrer.  O morro desceu e se espraiou pelos quatro cantos da ilha e adjacências.

 Quando digo “o morro”, estou me referindo apenas à parte podre da maçã! No morro há muita gente de bem, correta, honesta e trabalhadora, mas acaba levando a má fama, devido à aglomeração de malfeitores. Agora, é a vez do “morro” tomar conta da cidade. Sem policiamento, os bandidos assaltam, roubam, arrombam, saqueiam, incendeiam, ferem, matam.  Arrastões em grande escala, a pé e de moto, pipocam por todo lado.

O crime talvez seja mais organizado do que se imagina. Das janelas dos edifícios, os moradores filmam, pelos celulares, cenas assustadoras de tiroteios e de todo tipo de violência. A visualização de tais vídeos postadas nas redes sociais aumentam a tensão dos habitantes. Cidade parada, ruas desertas, necrotério e hospitais lotados.

Somos todos reféns da violência urbana. Supermercados e padarias que ousaram abrir as portas na manhã de hoje, foram depredados. Quem não tiver comida em casa, não terá onde comprar. Somos atores involuntários de um filme policial, à mercê do banditismo, enquanto não chega Reforço policial de outros Estados da Federação.

Balanço dos 9 dias de paralização

(Informações obtidas no dia 12 de fevereiro de 2017)
*Sete mil pedidos de socorro, por telefone (nº 190), não foram atendidos pela polícia
*144 assassinatos
*Prejuízo de 50 milhões de reais por dia, no comércio e na indústria
*3130 homens vindos da força nacional e do exército para resgatar a segurança da população

*Expectativa da volta às aulas, da volta do transporte urbano, enfim, da volta à normalidade, nesta segunda-feira, dia 10 de fevereiro.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias. de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)