quinta-feira, 2 de março de 2017

VIDA A DOIS

*Jô Drumond

Casais aparentemente felizes são motivo de inveja ou de admiração dos demais. No entanto, muitas vezes, o que se vê não é o retrato do que se vive entre quatro paredes. Como diz o ditado popular, “a grama do vizinho é sempre mais verde”, até que se descubra que ela é artificial. Há relacionamentos inusitados, na vida a dois. Disponho-me a relatar alguns casos de conhecidos meus. Os nomes são, evidentemente, fictícios, mas os fatos são reais.

Convivi com um casal do tipo “felizes para sempre”, saído de um conto de fadas. O marido se desdobrava em elogios e carinhos para com a amada, diante dos familiares e dos amigos. Nunca se viu marido tão extremoso, educado, dedicado e gentil. Certo dia, em conversa reservada com sua esposa, descobri que ela era muito infeliz. Seu maior sonho era se desvencilhar da falsidade em pessoa, travestida de marido. No aconchego do lar, ou melhor, de um lar sem aconchego algum, ele era possessivo, seco, egoísta ao extremo, mal-educado, e, às vezes, bruto. Todo e qualquer gesto de carinho ou afeição era reservado às demonstrações públicas. Na farsa do “par perfeito”, ela não passava de simples marionete, ao bel-prazer do manipulador. Ninguém da família acreditava nas constantes reclamações por parte da esposa. Era-lhe inútil “bater na mesma tecla”. O quadro da opressão foi se transformando, aos poucos, em depressão, somatização, definhamento físico, baixa imunidade... e desaguou em doença degenerativa. Instalada em ambiente propício, a moléstia teve a gentileza de livrá-la logo daquele suplício e de conduzi-la por sendas desconhecidas dos viventes.

Conheci também um casal quase oposto ao primeiro. Não havia elogios nem carinhos em seu repertório. Depois de idosos, a distração preferida de ambos era a implicância mútua, sobretudo em público. Cada um se empenhava em listar defeitos, ranzinzisses e caduquices do outro. No entanto, um forte amálgama os unia. Não saberiam viver separados. Quando um tinha que se ausentar por motivo de viagem, o outro chegava a adoecer de tristeza. E assim foram se espezinhando no dia a dia, até “a vez e a hora”, quase simultâneas, de ambos.

Isso me remete a outro casal de idosos que conheci. Seu Zeca e Dona Maricota viveram além da conta. Não se sentiam no direito de morrer. Um teria que cuidar do outro ad aeternum. Se eu me for - dizia ele - quem vai zelar por minha Maricotinha? Tão frágil, tão velhinha! Se eu morrer - dizia ela, por sua vez -  quem vai fazer o guisado preferido do Zequinha? Quem vai lhe dar os remedinhos na hora certa? Ele anda tão fraco! Coitadinho!

“No frigir dos ovos”, nenhum dos dois desencarnava. Os filhos foram envelhecendo e minguando; os netos foram se casando; os bisnetos crescendo; os trinetos nascendo... e os dois anciões continuavam envolvidos até os ossos com a decrepitude. Numa ensolarada manhã de um dia qualquer, Maricota não acordou. Ao perceber que o coração dela parara, o dele resolver fazer o mesmo, por solidariedade. Partiram juntos, pelos caminhos do absoluto.

“Em cada cabeça uma sentença.” Em cada casal uma desavença. Depois dos filhos crescidos e casados, os camponeses Marli e Mário passaram a viver a dois, num terreno de poucos hectares, herdado dos antepassados. Ela cuidava da casa, da cozinha, da horta e das galinhas. Ele, mantendo o preceito de bom provedor, se encarregava do minguado gado leiteiro e da lavoura, que lhes garantia o sustento. 

À tarde, tendo lavorado o dia todo, eventualmente ele parava numa birosca à beira da estrada, para umas biritas. Aos poucos, o eventual tornou-se habitual. As biritas tornaram-se “porre”. Mário voltava pra casa tropeçando nas sombras da noite, caindo aqui, ali, acolá. Dependendo do teor etílico, enchia sua meiga mulher de “porradas”, sem motivo algum. Desgostosa do marido e da vida, ela passou a beber cachaça, enquanto o esperava. Sua meiguice foi se transformando em matreirice. Numa noite, “mais ébrio que um gambá”, ele se pôs a espancá-la. Ela também havia bebido, porém bem menos que ele. O álcool aqueceu as veias da vítima, subiu-lhe à cabeça e lhe deu coragem para enfrentar o agressor. O “saco de pancadas” revidou com força total, complementada por porretadas e cadeiradas. A sova foi tamanha, que o pobre ébrio passou o resto da noite prostrado no assoalho. No dia seguinte foi ao posto de saúde mais próximo, cheio de hematomas e algumas fraturas, dizendo-se atropelado. Jamais contou como se deu o atropelamento. Jamais levantou a mão contra a meiga Marli.

Filhos podem representar bênção ou maldição para um casal desajustado. Ter um filho para salvar a relação é grande risco. O remédio pode dar efeito contrário. Isso aconteceu com conhecidos meus. O filho, encomendado com o intuito de estabilizar a instabilidade, era extremamente problemático, o que acarretou a ruptura definitiva dos pais.

Por falar em ruptura, Elga e Elton desistiram de se divorciar porque nenhum dos dois queria a guarda dos filhos. Ambos trabalhavam o dia todo. Não dispunham de tempo, nem de paciência para cuidar dos pimpolhos. Acabaram mantendo a relação, “aos trancos e barrancos”, para compartilhar as birras, as travessuras e as doenças infantis dos garotos. No entanto, pouco tempo depois, perderam os filhos num trágico acidente automobilístico. Não havendo mais empecilho, o divórcio se concretizou.

Conheci um caso interessante, em que os filhos não aceitaram a reconciliação dos pais. Os três filhos de Tôco e Têca cresceram em ambiente hostil, passível de frequentes brigas, gritos e impropérios. Depois de muito “arranca-rabo”, o casal achou por bem se separar. Cada um viveria por si, sem a desagradável presença do outro. A mãe se foi, deixando a casa, o marido, as crianças e poucas saudades. O pai se desdobrou para que não faltasse nada às crianças. Um regime de paz e harmonia passou a reinar entre eles. Anos depois, já crescidos, foram informados de que o casal fizera as pazes e que a família poderia se reconstituir sob o mesmo teto. A reação contrária foi tamanha, que os pais tiveram que manter a separação, para evitar o total desmantelamento do que restava.

O ser humano é um animal gregário. No entanto o compartilhamento da vida nem sempre é pacífico. Relacionamentos entre pais, filhos e irmãos podem ser conflituosos, ou não. Apesar de cada um manter sua individualidade, todos têm o mesmo berço, a mesma criação, os mesmos costumes... Família é para sempre. Não se escolhe. Já o relacionamento amoroso pode ser escolhido, assim como descartado. Para constituir novo núcleo familiar, o/a jovem deixa sua família para viver com outro/a, de família diversa: outros costumes, outra moral, até mesmo outro idioma. A escolha pode dar certo, ou não. Como diz a canção popular, “casamento é loteria”.

Conflitos familiares sempre existiram, com peculiaridades diversas. Nenhuma relação é “um mar de rosas” o tempo todo.  Há momentos de tensão, de desgosto, de desespero, de desavenças, mas há também momentos de bem-estar, de alegria, de afeição e bem-aventurança. Segundo Aristóteles “a virtude está no meio”. Donde se infere que o importante é manter o equilíbrio entre as polarizações. No palco desse grande teatro, que é o mundo, cada um deve encenar, da melhor forma possível, a curta cena que lhe foi legada.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias. de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

O MORRO (NÃO) TEM VEZ?

*Jô Drumond


Certa vez meu avô disse que, com o aumento da violência, chegaria o dia em que os homens de bem ficariam presos, em casa, e os bandidos soltos, na rua. Pois bem. Esse dia chegou em Vitória. Hoje, dia seis de fevereiro de 2017, a cidade, apavorada, foi totalmente parada por contraventores de toda espécie. Sem policiamento algum, desde o dia 4, devido a uma manifestação que mantém os policiais aquartelados, a população está entregue de bandeja aos marginais, sem ter a quem recorrer.  O morro desceu e se espraiou pelos quatro cantos da ilha e adjacências.

 Quando digo “o morro”, estou me referindo apenas à parte podre da maçã! No morro há muita gente de bem, correta, honesta e trabalhadora, mas acaba levando a má fama, devido à aglomeração de malfeitores. Agora, é a vez do “morro” tomar conta da cidade. Sem policiamento, os bandidos assaltam, roubam, arrombam, saqueiam, incendeiam, ferem, matam.  Arrastões em grande escala, a pé e de moto, pipocam por todo lado.

O crime talvez seja mais organizado do que se imagina. Das janelas dos edifícios, os moradores filmam, pelos celulares, cenas assustadoras de tiroteios e de todo tipo de violência. A visualização de tais vídeos postadas nas redes sociais aumentam a tensão dos habitantes. Cidade parada, ruas desertas, necrotério e hospitais lotados.

Somos todos reféns da violência urbana. Supermercados e padarias que ousaram abrir as portas na manhã de hoje, foram depredados. Quem não tiver comida em casa, não terá onde comprar. Somos atores involuntários de um filme policial, à mercê do banditismo, enquanto não chega Reforço policial de outros Estados da Federação.

Balanço dos 9 dias de paralização

(Informações obtidas no dia 12 de fevereiro de 2017)
*Sete mil pedidos de socorro, por telefone (nº 190), não foram atendidos pela polícia
*144 assassinatos
*Prejuízo de 50 milhões de reais por dia, no comércio e na indústria
*3130 homens vindos da força nacional e do exército para resgatar a segurança da população

*Expectativa da volta às aulas, da volta do transporte urbano, enfim, da volta à normalidade, nesta segunda-feira, dia 10 de fevereiro.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias. de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)

terça-feira, 31 de janeiro de 2017

BRASINHA, O EMBAIXADOR CULTURAL DO SERTÃO

*Jô  Drumond
  
José Oswaldo dos Santos, vulgo Brasinha, conhecido também como Embaixador Cultural do Sertão, é membro da Academia Cordisburguense de Letras e grande conhecedor da obra de Guimarães Rosa. O apelido Brasinha se deve a estripulias de infância. Estando sempre irrequieto na carteira escolar, os colegas diziam que havia uma brasinha sobre seu assento.

Trata-se de um senhor de meia-idade, falante, sorridente, comunicativo, com belíssimos olhos azuis, cujo brilho se torna mais intenso se o assunto for a obra de Guimarães Rosa. É parente do escritor, pelo lado da família Rosa. Dedica-se à literatura, mas garante seu “ganha pão” com o comércio.
É proprietário de dois estabelecimentos comerciais, sendo um deles singular, talvez único no gênero, chamado Ave Palavra. Ali há “de um tudo”, mas não se vende quase nada. Sem pretensão comercial, a loja Ave Palavra, título de uma obra póstuma de GR, é a menina dos olhos do proprietário. Sempre em seu estabelecimento predileto, Brasinha recebe todos os aficionados da obra Roseana, com largo sorriso e muita simpatia. 
Tal loja é um verdadeiro bric-à-brac, como dizem os franceses, ou seja, um amontoado das mais variadas coisas, sejam elas antigas, novas ou usadas. Nas prateleiras, há diversas coleções de objetos antigos. É impossível abarcar tudo com o olhar. O cliente se surpreende a cada momento. Para um forasteiro desavisado, aquilo não passa de quinquilharias, mas para Brasinha são objetos muito importantes, de grande valor afetivo. Cada um tem sua história. Apesar de não estarem à venda, há alguns souvenirs à disposição dos turistas, como camisetas e bordados típicos da região.
Entrei casualmente em sua loja, com algumas colegas, e acabamos ficando por lá uma tarde toda a ouvir os “causos” de Brasinha. Ele é uma pessoa incrivelmente ligada não apenas à literatura Roseana, mas à história de Cordisburgo.

Numa parede lateral interna, há um grande banner colorido, de cerca de 3 metros de comprimento por um metro de altura, contendo a foto de uma vereda, ou seja, de um lugar embrejado, pantanoso, cheio de palmeiras buritis. No fundo da loja, vê-se uma porta, com uma cortina bizarra, de plástico branco e grosso, bem resistente, com dizeres enormes “SÃO JOSÉ, LEVAI NOSSOS PEDIDOS AO PAI”. Pensei que o proprietário fosse muito religioso. Qual nada! Brasinha contou-me a história da pretensa cortina.

Segundo ele, certo dia, um vaqueiro saiu à procura de uma vaca desgarrada e avistou, no alto de uma serra, um vulto branco. Aproximou-se pensando que se tratava da vaca e encontrou, caída sobre a relva e presa a um monte de balões, a faixa dirigida a São José. O autor de tal façanha decidira enviar uma mensagem visual diretamente aos céus. Pode-se inferir que, no seu entender, o céu apregoado pela religião cristã, se encontra realmente sobre nossas cabeças, e que, São José, mesmo sem nunca ter aprendido a língua portuguesa, consiga ler sua mensagem. Causos como esse, só mesmo na terra de Rosa.

Na parede lateral de Ave Palavra, que dá para a esquina, lêem-se duas frases roseanas:

“Cordisburgo é o lugar mais formoso devido ao ar e ao céu, e pelo arranjo que Deus caprichou em seus morros e suas vargens. Por isso mesmo, lá, de primeiro, se chamou visa alegre”.

“...quando escrevo sempre me sinto transportado para este mundo. Cordisburgo”

No alto da fachada lê-se, em letras garrafais: AQUI JÁ É O SERTÃO. Logo abaixo, vê-se o nome da loja em grandes letras: AVE PALAVRA. As duas portas de entrada são ladeadas por uma série de transcrições de neologismos roseanos, a saber;


Seguem abaixo, a quem interessar possa, alguns itens dos quais me lembro, vistos nas prateleiras de Brasinha, em 2010:

Comprei alguns souvenirs contendo citações Roseanas, entre eles uma plaquinha de madeira, que diz: “ser mineiro é mudar por fora e ficar o mesmo por dentro”; um pequeno painel para dependurar, no qual há a figura de um ursinho depressivo, tapando a carinha com as patinhas e a frase de Rosa: “Inútil fugir, inútil resistir, inútil tudo”. Comprei também camisetas com motivos da obra Grande sertão: veredas e um caminho de mesa bordado, no qual se lê: “um bom amigo é melhor do que uma boa carabina”.

Além de Brasinha, tive o privilégio de conhecer outras pessoas singulares, que certamente fariam parte do grande elenco de personagens do autor de Grande sertão: veredas, se este ainda estivesse entre nós.


Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias. de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)