* Jô Drumond
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Dona Olympia fotografada com os filósofos e escritores franceses, Sartre e Simone de Beauvoir. |
Remonto ao início da década de 70, do
século XX, período em que tive o privilégio de residir numa das mais
encantadoras e envolventes cidades que conheci, elevada hoje a patrimônio
histórico da humanidade. Deixei-me cativar pelo bruxuleio das brumas nos campanários,
pelos fantasmas históricos que ainda povoam os tortuosos becos, pelos rangentes
degraus das sombrias moradas, pelas pedras escorregadias das ladeiras, pelo
nevoento lusco-fusco, pelo frio enriquecedor das invernadas, enfim, pela
atmosfera singular impregnada de mistérios de antanho.

Naquela época, uma figura emblemática,
atualmente engavetada sob alguma lápide barroca, perambulava pelos becos de
Ouro Preto. Vívida na memória popular, como patrimônio folclórico ouro-pretano,
Dona Olympia, ou Sinhá Olympia, presença festiva e colorida, enfeitava as
ruelas da cidade, com longas saias rodadas, recheadas de anáguas engomadas,
cores vivas, grandes chapéus floridos, rendas, colares, pulseiras, brincos e o
inseparável batom carmim, para realçar a alvura de sua tez.
Habituada a uma
vida pendular, vivia ora “aqui-agora”, ora na Corte lusitana, ou
simultaneamente nas duas épocas. Louquejava pelas ladeiras suas histórias
mirabolantes, fruto de sandice ou de esperteza – talvez de ambas ao mesmo tempo
-, para subtrair alguns tostões dos turistas. Fazia-se fotografar ao lado deles
- com a indumentária do Império - como descendente direta da antiga nobreza.
Enfatizava suas origens, listando nomes de ilustres ancestrais; criava
histórias ao sabor do momento. Destarte, angariava de turista em turista seu
ganha-pão cotidiano. Residia cerca de 50 metros da Matriz
Nossa Senhora do Pilar, uma das mais requintadas igrejas do barroco brasileiro, cujo interior ostenta mais
de quatrocentos anjos esculpidos em talhas de madeira cobertas por 400 quilos
de outro e 400 quilos de prata.
Todas as manhãs, Dona
Olympia escalava a íngreme rua da escadinha, apoiada num cajado enfeitado
com flores, penas, broches, fotografias e tiras de papel colorido (seu cetro).
Percorria a tortuosa rua São José e subia a rua Direita até a Praça Tiradentes,
onde se situava a antiga rodoviária, seu “point” preferido, local de
grande afluência turística. Nos percursos de ida e volta, fazia paradas
estratégicas para descansar ou prosear com forasteiros. Depois de idosa, sem
condições de flanar pelas ladeiras, postava-se no largo da Matriz do Pilar, a
mais visitada pelos forasteiros.
Eu me comprazia a ouvir seus “causos”.
Às vezes, matava o tempo ao seu lado, embarcando em seus devaneios de nobreza.
A garbosa anciã, sem se desviar do intento monetário, não se esquecia de cobrar
pelo entretenimento que sua presença me propiciava, ao que eu retrucava:
– Mas, Dona Olympia, eu não sou
turista!
Ela voltava então a seu reino
encantado, rodeada por curiosa plateia itinerante. Ao perceber minha
permanência no local, retomava o objetivo proposto.
– Moça, só mil cruzeiros, por uma foto
ao meu lado!
Segundo seus biógrafos, foi uma jovem
de rara beleza. Estudou no Colégio das freiras Vicentinas, em Mariana. Falava
latim, gostava de ler, escrever poesias e tocar piano. Foi professora até cerca
de 22 anos de idade. Não se sabe ao certo o que desencadeou a sandice, aos 29
anos.
A singularidade dessa figura acabou
levando sua fama muito além das fronteiras. Chegou a ser capa da revista Times
e participou de programa televisivo. Foi retratada por pintores, fotógrafos e
compositores. Teve contatos com celebridades políticas e artísticas, como
Juscelino Kubitscheck, Tancredo Neves, Sartre, Simone de Beauvoir, Vinícius de
Moraes, entre outros. Foi musa inspiradora do poeta Carlos Drummond de Andrade
e do compositor Milton Nascimento. Foi tema de samba enredo da Mangueira, na
década de 90. Em 1975, criou-se, em Ouro Preto, a Escola de Samba Sinhá
Olympia, que sempre aborda temas relacionados à história e à cultura
ouro-pretanas.
Sinhá Olympia recebia chapéus, medalhas
e diversos presentes de várias partes do mundo. Nunca perdia o hábito da
desnecessária mendicância. Os proventos da célebre esmoler eram divididos com
os menos favorecidos.
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Dona Olympia pelas ruas de Ouro Preto |
Os moleques de rua se divertiam com sua
reação ao ser chamada de “homem” (devido à voz grave). Para provar sua
feminilidade, levantava as saias rodadas, sob as quais não nada usava.
Não é fácil delimitar os lindes entre
lucidez e loucura em uma mente nebulosa. Mais difícil ainda, quando se cria um alter
ego com o qual se deve atuar para sobreviver. Os dois perfis, por
vezes, se mesclam. Nunca terei ciência do grau de matreirice e de insanidade
que coabitavam naquela cabeça adornada de bizarros chapéus. Dona Olympia viveu
suas vidas e se foi, levando consigo um lampejo do Império.
No entanto, ela
permanece incólume na memória da cidade. Ouro Preto, a antiga Vila Rica das
minas, hoje sem ouro, continua sob a vigilância do Pico Itacolomi, embalada
pelos sonhos dos Inconfidentes, pelos recônditos tesouros de outras eras, pela
esperança de reaver a cabeça de Tiradentes - desaparecida do pedestal na calada
da noite - e pelas quimeras do escravo Chico Rei sem reino.
Nas fantasmagóricas
noites ouro-pretanas, há quem ouça, ainda hoje, o arrasto das correntes e a
plangência de seus súditos que, marcados a ferro e fogo, banharam de suor as
minas e de sangue o pelourinho. Dona Olympia era o outro lado da moeda: a face
da nobreza, da beleza, da alegria, do glamour e dos sonhos de
tempos idos. A exímia contadora de histórias Olympia Angélica de
Almeida Cotta (1889/1990) viveu a realidade do século XX, mas soube viver,
oniricamente, todo o esplendor dos séculos XVIII e XIX.
*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias
de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)