Jô Drumond
Algodão |
Na década de sessenta, do século passado, ainda criança,
presenciei alguns mutirões, nas fazendas da região da Charneca (MG). Naquela
época, a lavoura ainda não era mecanizada. O mutirão era uma força cooperativa
entre vizinhos, de modo a evitar que se perdesse alguma colheita ou que a erva
daninha invadisse os pastos. Algumas vezes os mutirantes preparavam a terra
para o plantio: roçavam, capinavam, aravam e plantavam.
O mutirão, também chamado de “treição” (corruptela de
traição), era um dos eventos sociais mais apreciados da zona rural; um misto de
lazer e cooperativismo. Mantinha-se grande mistério e também certo charme em
torno do evento.
O proprietário da fazenda tinha de ser pego de surpresa.
Sabia-se, por exemplo, que um deles estava precisando de mão de obra para uma
colheita. Caso não a conseguisse, perderia grande parte da safra. Em mutirão, o
trabalho que levaria meses a ser realizado, seria concluído em um só dia.
Combinada a data, alguém da família do “traído” ficava de sobreaviso, para
evitar transtornos de última hora. Um
grande grupo de famílias reunia-se bem cedo, num local previamente combinado, e
chegava de surpresa à fazenda onde haveria o mutirão. Os homens aproximavam-se
carregando seus instrumentos de trabalho, de acordo com a tarefa a ser
executada: enxadas, enxadões, foices, arados, jacás, matracas, entre outros.
Quando não havia serviço externo para as mulheres, ficavam todas encarregadas
do copioso almoço, das guloseimas para a merenda e da preparação dos quitutes
para o pagode noturno. Dependendo do número de participantes, frangos, porcos e
garrotes eram abatidos. A comida era preparada na área externa, em grandes
tachos sobre improvisados fogões a lenha.
Certa vez, minha mãe foi secretamente avisada de que haveria
uma “treição” para meu pai. Ela deveria providenciar provisões, recipientes
adequados, enfim, preparar a infra-estrutura doméstica, para que não houvesse
nenhum contratempo. O que ela não sabia é que, naquele mesmo dia, haveria
também uma “treição” para ela.
Num domingo, acordamos, ao raiar do dia, com a cantoria dos
mutirantes. Os homens se aproximavam da sede da fazenda empunhando suas
ferramentas de trabalho e cantando. As mulheres, por sua vez, os acompanhavam
cantando e erguendo nos braços rocas, cardas, descaroçadores, sarilhos ou
meadeiras, dobadouras, balaios e outros apetrechos para a manufatura do
algodão. As mais prendadas para a culinária dirigiram-se à cozinha. A maior
parte ficou na lida do algodão. Após a panha, feita em equipe, as crianças
catavam os ciscos misturados aos chumaços. Em seguida passavam os tufos brancos
pelo descaroçador. As mães cardavam e fiavam enquanto as meninas-moças dobavam
os novelos e os acomodavam em grandes balaios, sempre rindo, cantarolando ou
contando causos. Era grande a descontração. Às onze horas, o berrante ecoou,
chamando para o almoço. Foi um momento de confraternização e alegria. No final
do dia, finda a tarefa, os homens voltaram do campo em pelotão, empunhando
enxadas para o alto, batendo umas contra as outras em ritmo de marcha e
cantando repetidamente a estrofe:
Fui passar na ponte
A ponte tremeu
Debaixo da ponte
Jacaré gemeu
Abrindo o pelotão, um deles erguia um tipo de estandarte: um
grande pé de milho, com raízes, folhas e espigas, simbolizando o final da
tarefa cumprida.
A cachacinha começou a rolar solta antes do jantar, como
aperitivo. Após um banho revigorante, todos se prepararam para o pagode
noturno. Os que não participaram do mutirão, se quisessem dançar, teriam que
pagar, pela entrada, o equivalente a um dia de serviço. Como instrumentos
musicais havia: sanfona, reco-reco, viola e outras percussões improvisadas com
utensílios domésticos. Muita dança, alegria e comilança. Era a típica festa
familiar. Velhos, adultos, adolescentes e crianças, todos dançando a não mais
poder: adultos com crianças, mulheres com mulheres, mães com bebês nos braços,
e assim por diante. Só não se via homem com homem. Isso, jamais!
Dos flertes e namoricos desses pagodes germinavam os futuros
enlaces matrimoniais. Nos mutirões, a alegria de ajudar o próximo era somada à
alegria de se fazer amigos. Estreitavam-se os laços de amizade. Tanto na
chegada quanto no término do serviço, os donos da casa eram erguidos nos braços
dos mutirantes, entre vivas e aclamações. Com muita honra e satisfação, cada
traído recebia sua “treição”.
*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias
de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGE)
de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGE)