segunda-feira, 9 de junho de 2014

O ESTOURO DA BOIADA

 *Jô Drumond
 
Tumultos envolvendo multidões, como a tragédia da boate Kiss (RS), causada por um incêndio, provocam alvoroço em grande escala, com resultados nefastos. O pânico instalado em aglomerações humanas pode provocar uma reação descontrolada, tal qual o “estouro da boiada”, tão bem descrito literariamente por Euclides da Cunha e Rui Barbosa: um alvoroço geral se instala por motivo real ou presumido, às vezes por coisa banal, como o ruflar de asas de um pássaro. Os bois desembestam em disparada sem saber que rumo tomar. Os que têm o infortúnio de cair são pisoteados pelo tropel em derribada.
O estouro da boiada é tema de dois textos, que valem a pena ser revistos. O que é belo deve ser apreciado e compartilhado. Destarte, compartilho excertos de Euclides da Cunha e de Rui Barbosa, que abordam tal fenômeno.
“Uma rês se espanta e o contágio, uma descarga nervosa subitânea, transfunde o espanto sobre o rebanho inteiro. É um solavanco único, assombroso, atirando, de pancada, por diante, revoltos, misturando-os embolados, em vertiginosos disparos, aqueles maciços corpos tão normalmente tardos e morosos.
E lá se vão: não há mais contê-los ou alcançá-los. Acamam-se as caatingas, árvores dobradas, partidas, estalando em lascas e gravetos; desbordam de repente as baixadas num marulho de chifres; estrepitam, britando e esfarelando as pedras, torrentes de cascos pelos tombadores; rola surdamente pelos tabuleiros ruído soturno e longo de trovão longínquo [...]
milhares de corpos que são um corpo único, monstruoso, informe, indescritível, de animal fantástico, precipitado na carreira doida. E sobre este tumulto, arrodeando-o, ou arremessando-se impetuoso na esteira de destroços, que deixa após si aquela avalancha viva, largado numa disparada estupenda sobre barrancas, e valos, e cerros, e galhadas [...] até que o boiadão, não já pelo trabalho dos que o encalçam e rebatem pelos flancos senão pelo cansaço, a pouco e pouco afrouxe e estaque, inteiramente abombado.”
(Euclides da Cunha)
Outro primoroso excerto, escrito posteriormente e amplamente conhecido, surgiu incrustado como pedra preciosa, numa conferência feita por Rui Barbosa, Em Juiz de Fora, em 1910.
"Vai o gado sua estrada mansamente, rota segura e limpa, chã e larga, batida e tranquila, ao tom monótono dos eias! dos vaqueiros. Caem as patas no chão em bulha compassada. Na vaga doçura dos olhos dilatados transluz a inconsciente resignação das alimárias, oscilantes as cabeças, pendente a magrém dos perigalhos, as aspas no ar em silva rasteira por sobre o dorso da manada. Dir-se-ia a paciência em marcha, abstrata de si mesma, ao tintinar dos chocalhos, em pachorrenta andadura, espertada automaticamente pela vara dos boiadeiros. Eis senão quando, não se atina por que, a um acidente mínimo, um bicho inofensivo que passa a fugir, o grito de um pássaro na capoeira, o estalido de uma rama no arvoredo, se sobressalta uma das reses, abala, desfecha a correr, e após ela se arremessa, em doida arrancada, atropeladamente, o gado todo. Nada mais o reprime. Nem brados, nem aguilhadas o detêm, nem tropeços, voltas ou barrancos por davante. E lá vai, incessantemente, o pânico em desfilada, como se os demônios o tangessem, léguas e léguas, até que, exausto o alento, esmorece e cessa, afinal, a carreira, como começou, pela cessação do seu impulso. Eis o estoiro da boiada."
(Rui Barbosa)
O belo texto de Rui Barbosa foi possivelmente inspirado na obra prima de Euclides da Cunha, publicada anteriormente. Euclides descreveu de forma magistral, em Os sertões (1902), um dos quadros mais épicos do sertão brasileiro, após ouvir o relato de um vaqueiro, sem nunca ter presenciado o estouro de uma boiada. Certo dia, ao ler seu texto para um pequeno grupo, um ouvinte boiadeiro, que já havia presenciado diversos estouros, ficou absolutamente perplexo. Segundo ele, para descrever tão bem o fato, Euclides deveria ter visto pelo menos uma centena de estouros de boiada.
O fato relativamente comum no sertão, narrado em ambas as citações, é de importância secundária. Relevante é o registro em prosa poética, a força estilística e a escolha lexical, enfim, a beleza textual que continua encantando diversas gerações de leitores.
 
*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES
 

quarta-feira, 14 de maio de 2014

terça-feira, 25 de março de 2014

O LORD DO SERTÃO



*Jô Drumond

 Nasci temporã, filha de pai aposentado, já vergado sob o peso da idade e com cabelos de algodão. A grande diferença de idade deu-me o privilégio de tê-lo como pai e avô, ao mesmo tempo. A defasagem de gerações era bem nítida em nosso registro lingüístico. Meu pai usava um vocabulário rico, porém arcaico e démodé. Por exemplo, dizia “mentecapto” em vez de “louco”; “estorvar” em vez de incomodar; “tutameia”, em vez de “quase nada”, e assim por diante.  Isso, às vezes, criava situações hilariantes.
Lembro-me que certo dia ele me pediu para ajudá-lo a escolher um par de sapatos, numa loja chamada Praça Sete Calçados, no centro de Belo Horizonte. Ao abordar uma jovem vendedora, ele lhe disse:
̶  Boas tardes, senhorita! Eu gostaria de adquirir um calçado singelo, porém de cabedal bom.
A vendedora lançou-me um olhar arregalado, como se estivesse pedindo socorro. Sem reparar o embaraço da garota ele acrescentou:
̶  Não carece ser coisa cara!
A vendedora fitou-me novamente, com olhar inquiridor. Deduzi que ela desconhecia os termos menos usuais. Tive então que traduzir o pedido usando um vocabulário do cotidiano, ou seja, troquei o filet mignon pelo feijão com arroz.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES