*Jô Drumond |
Desde então, aquela imagem não lhe saía do pensamento.
Entrava ano, saía ano, em todas as férias escolares ele ia a Floriano, pegava o
álbum e contemplava aquele protótipo da beleza feminina. A quase obsessão pela
retratada pôs em cheque sua vocação sacerdotal. Mesmo sem conhecê-la
pessoalmente, passou a se inteirar de sua vida. Soube que ela havia ido estudar
em Teresina.
Na capital, certamente estaria rodeada de admiradores. Começou a
sentir ciúmes e a encarar o seminário como empecilho. Já não tinha mais certeza
da vocação pelo sacerdócio. Passou a amadurecer a ideia de timonear sua própria
vida. Nas férias seguintes, soube que ela havia prestado vestibular no Rio de
janeiro.
Aquela notícia ribombou como petardo em seus ouvidos. Rio era por
demais distante! Sentia-se prestes a perder para sempre aquela que, a seu ver,
era sua predestinada. Abandonou o seminário e voltou a Floriano para comunicar
sua decisão à família. Afanou a foto da moça bonita do álbum e seguiu para o
Rio, com o intuito de conhecê-la ao vivo e em cores. Num ensolarado domingo,
ele aterrissou na casa de tio Jeremias, irmão de seu pai, onde ela estava
provisoriamente hospedada. Alegou que tentaria ganhar a vida no Sudeste e pediu
acolhida por uns tempos, até se estabelecer definitivamente. Antes mesmo de se
instalar, percorreu os cômodos da casa em vão, na esperança de vê-la. Não ousou
perguntar nada aos tios. Talvez ela tivesse se mudado, ou voltado para o Piauí.
O melhor seria aguardar até que o assunto viesse à baila. Na manhã seguinte,
estava ele tomando seu desjejum, quando ela surgiu linda, faces rosadas, tez
quase translúcida... uma verdadeira fada.
O sobressalto foi recíproco. Ela se
assustou com aquela figura por demais sinistra, saída de alguma revista em
quadrinhos ou de algum filme de gângster. Tio Jeremias apressou-se em fazer as
apresentações. Ela, com uma pasta na mão, saudou-o apressadamente e dirigiu-se
à porta da rua, sem tomar seu desjejum, dizendo-se atrasada. Meio desapontado,
ele ficou no aguardo de outra oportunidade. Nos dias subsequentes, percebeu que
ela sempre se esquivava, talvez por timidez ─ pensava ele ─ talvez por repulsa.
Olhou-se no espelho. Sua aparência não era das mais agradáveis. Barba por
fazer, cabelos crescidos, calça boca de sino, certamente já fora de moda,
cinturão largo, possivelmente também démodé. Todas as tentativas de aproximação
falharam. Ela não demonstrava nenhum interesse por sua pessoa. Ao contrário,
evitava-o nitidamente.
Pensou no seminário e na insensatez do que havia feito.
Abominou sua ingenuidade e seu nefelibatismo, como diria seu professor de
literatura. Sentiu-se fora da realidade circundante. A vida fora do seminário
não era bem o que imaginava, mormente em cidade grande.
Observou-se longamente no espelho. Um sujeito mal-ajambrado
como ele jamais poderia despertar interesse em quem quer que fosse. Dirigiu-se
a uma barbearia e solicitou serviço completo: barba, bigode e cabelo. Ao
primeiro encontro após o desbaste capilar, percebeu a surpresa da donzela. Pela
primeira vez ela o observou e o olhou nos olhos. Aproveitando o ensejo, ele lhe
solicitou ajuda.
─ Em que posso ajudá-lo?
─ Passei longos anos no seminário. Estou completamente
desatualizado, deslocado...como se diz, um peixe fora dágua. Desconheço as
vestimentas e os calçados da moda, assim como os hábitos da juventude carioca.
Você me ajudaria a escolher algumas roupas?
─ Sim, claro que sim! Após um “banho de loja”, posso lhe
apresentar alguns amigos. Quando cheguei ao Rio, eu me senti também meio
deslocada.
─ Bola dentro, Miguelito! ─ pensou ele ─ o gelo já foi
quebrado! O estratagema funcionou.
No dia seguinte, Miguel e Angélica foram a um shopping
center. Ele deixou que ela escolhesse todo seu novo guarda-roupa e acessórios:
meias, cintos, carteira, calçados, óculos de sol, boné de praia...
A cada dia, maiores afinidades entre ambos, trocas de
olhares, sorrisos, passeios à beira-mar, visitas ao Corcovado, ao Pão de
Açúcar, ao Gabinete Real Português, à Biblioteca Nacional, aos museus...
Angélica acabou se esquecendo de apresentar seus amigos ao novo amigo. Ele, por
sua vez, não queria conhecer ninguém. Ao contrário, preferia que ficassem a sós
para desfrutar a maciez daquela voz, a doçura daquele sorriso, as flagrâncias
emanadas dos longos cabelos... Miguel, totalmente envolvido pelo charme e pela
meiguice de Angélica, acabou fazendo com que sua predestinada o seguisse vida
afora.
Conheci-os cerca de quarenta anos depois, no desjejum do
hotel Rio Parnaíba, em Floriano, no ensejo do aniversário de cem anos de Tia
Joaninha, irmã de minha sogra. Ao saber que eu era aprendiz de escritora,
Angélica apressou-se em me contar, em poucos minutos, sua história de amor, na
esperança de que um dia eu a colocasse no papel.
Já se passou algum tempo e,
evidentemente, devo ter-me esquecido de detalhes importantes, mas aí está o
arcabouço do que me foi relatado. Parabéns a ambos pela bela família que
constituíram, pelo companheirismo e pela eterna alegria de viver.
*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3
Academias de Letras
(AFEMIL, AEL,
AFESL) e do
Instituto Histórico
(IHGES)