* Jô Drumond
Nas décadas finais do segundo milênio, nas férias e feriados, eu frequentava Guimarânia (terra dos Guimarães), local escolhido por meus pais para viver seus últimos anos e para curtir a paz eterna. Trata-se de uma pacata cidadezinha interiorana, incrustrada na cratera de um vulcão há muito extinto, no Alto Paranaíba (MG). Até os dias atuais, de qualquer ponto da cidade, avista-se a vegetação que delimita o início e o fim de cada rua. O que sempre me atraia nessa cidade era a segurança de ir e vir, diferentemente dos grandes centros urbanos. Minha mãe jamais trancava a porta de entrada. Alegava que, se alguém da família passasse pela cidade, poderia entrar e dormir, sem acordar os demais. Devido à facilidade de acesso, sua casa era pouso frequente de jovens (netos, sobrinhos, primos, amigos) vindos de grandes noitadas das diversas cidades da região: Coromandel, Abadia dos Dourados, Carmo do Paranaíba, Patrocínio, Lagoa Formosa, Patos de Minas, entre outras. Alguns deles preferiam pernoitar em Guimarânia e saborear, ao amanhecer, o delicioso pão de queijo quentinho, de Dona Tunica, acompanhado de forte café antirressaca. A cada final de semana ela tinha novas surpresas. Ao se levantar, às vezes encontrava todos os quartos ocupados, assim como sofás e tudo que pudesse se oferecer como leito aos jovens passantes vindos de bailes, de festas de casamento ou de aniversário. A janela do quarto do casal, que dava para a rua, vivia escancarada, mesmo nas frias noites de inverno. Ela alegava gostar de casa arejada. Não havia grades, nem muro. Bastava subir num friso constante na parede externa e se firmar no parapeito para ver o interior da alcova. No entanto isso jamais acontecia. Tampouco nenhum estranho jamais entrara sem ser convidado. Nunca nada foi roubado, nem sequer uma flor. Minhas filhas, quando crianças, oriundas da capital, se regozijavam com a liberdade de brincar na rua sem a vigilância dos adultos.
Nas décadas finais do segundo milênio, nas férias e feriados, eu frequentava Guimarânia (terra dos Guimarães), local escolhido por meus pais para viver seus últimos anos e para curtir a paz eterna. Trata-se de uma pacata cidadezinha interiorana, incrustrada na cratera de um vulcão há muito extinto, no Alto Paranaíba (MG). Até os dias atuais, de qualquer ponto da cidade, avista-se a vegetação que delimita o início e o fim de cada rua. O que sempre me atraia nessa cidade era a segurança de ir e vir, diferentemente dos grandes centros urbanos. Minha mãe jamais trancava a porta de entrada. Alegava que, se alguém da família passasse pela cidade, poderia entrar e dormir, sem acordar os demais. Devido à facilidade de acesso, sua casa era pouso frequente de jovens (netos, sobrinhos, primos, amigos) vindos de grandes noitadas das diversas cidades da região: Coromandel, Abadia dos Dourados, Carmo do Paranaíba, Patrocínio, Lagoa Formosa, Patos de Minas, entre outras. Alguns deles preferiam pernoitar em Guimarânia e saborear, ao amanhecer, o delicioso pão de queijo quentinho, de Dona Tunica, acompanhado de forte café antirressaca. A cada final de semana ela tinha novas surpresas. Ao se levantar, às vezes encontrava todos os quartos ocupados, assim como sofás e tudo que pudesse se oferecer como leito aos jovens passantes vindos de bailes, de festas de casamento ou de aniversário. A janela do quarto do casal, que dava para a rua, vivia escancarada, mesmo nas frias noites de inverno. Ela alegava gostar de casa arejada. Não havia grades, nem muro. Bastava subir num friso constante na parede externa e se firmar no parapeito para ver o interior da alcova. No entanto isso jamais acontecia. Tampouco nenhum estranho jamais entrara sem ser convidado. Nunca nada foi roubado, nem sequer uma flor. Minhas filhas, quando crianças, oriundas da capital, se regozijavam com a liberdade de brincar na rua sem a vigilância dos adultos.
Nos dias de hoje, a cidade continua a mesma em
termos arquitetônicos. Para os forasteiros, aparentemente nada mudou, mas, para
os habitantes, a quietude de antes não existe mais. Há poucos dias, em abril de
2013, vi, no noticiário televisivo, filmagens de um confronto entre policiais e
bandidos, num assalto à única agência bancária da cidade. O tiroteio, com fuzis
e metralhadoras em pleno logradouro público, resultou na morte de um cliente do
bar, situado ao lado da agência bancária, assim como em ferimentos à bala no
proprietário do bar.
Por coincidência, na mesma semana, tive que
enfrentar mil quilômetros, para as exéquias de meu irmão Zezé, em Patos de
Minas. Aproveitei o ensejo para matar as saudades de
Guimarânia. Percebi então que a população local anda assustada com a
onda de crimes cometidos, na grande maioria, por forasteiros, que surgem do
nada e desaparecem deixando rastros de violência.
Hospedei-me na casa de minha irmã e madrinha
Anatildes, moradora local há mais de 50 anos. Demonstrei interesse em visitar
sua fazenda, situada a dez km da cidade, onde eu gostava de passar as férias
escolares, desde a infância. Tenho muita nostalgia das temporadas no cerrado do
Brasil central: banhos de rio, passeios a cavalo, caneca de leite ao pé da
vaca, o pingue-pongue diário, o pomar repleto de mangas, nas férias de verão, e
salpicado de goiabas, laranjas e mexericas, nas férias de inverno... Sugeri, em
vão, que restaurasse o lindo e centenário casarão, para que pudéssemos voltar a
usufruir daquele recanto. Ela alegou que atualmente a região está muito visada
por malfeitores. Nem mesmo os pobres colonos, que pouco têm a oferecer aos
larápios, querem residir na zona rural, devido à da onda de violência. Durante
o trajeto, relatou-me casos estarrecedores ocorridos nos últimos dias, após o
assalto ao banco.
Dentro da cidade, bandidos encapuzados invadiram
uma casa. Enquanto dois deles seguravam uma senhora, um terceiro, com uma
garrafa de álcool, ateava fogo em seu filho de 12 anos. A mãe, apavorada e
impotente, assistiu à cena e ouviu os gritos de pavor da criança.
Houve também um assalto, numa fazenda
próxima a Morro Feio, onde moram apenas um rapaz e seu pai, já idoso.
Segundo ela, os dois moradores estavam acabando o labor diário na feitura do
tradicional queijo de Minas. O filho, ao pegar um balde dágua para lavar o piso
da casinha de queijos deparou com três homens encapuzados e armados
(provavelmente os mesmos que atearam fogo ao menino). Sua primeira reação, ao
ver as armas apontadas contra si, foi de jogar a água do balde sobre os
bandidos. Imediatamente, como resposta, recebeu três tiros à queima-roupa.
Estendido no chão, foi chutado diversas vezes, à espera de alguma reação. O
corpo permanecia inerte. Com a certeza do serviço concluído, um dos malfeitores
perguntou ao chefe o que faria com o velho. Recebeu como resposta que o
deixasse em paz, pois o pobre diabo mal se equilibrava sobre as próprias
pernas. Em seguida, os três abandonaram o recinto e entraram na sede da fazenda
para escolher o butim daquela empreitada. Nisso, o filho, que se havia
fingido de morto, disse ao pai que se escondesse sob as palhas do paiol. O
rapaz, mesmo perdendo muito sangue, conseguiu se arrastar até uma casa de
colonos, próxima ao local, para pedir socorro. Os vizinhos levaram-no a um
hospital e acionaram a polícia, enquanto o pai permanecia sob monturos de palha
que lhe pinicavam todo o corpo.
Numa outra fazenda próxima, três idosos foram
cruelmente judiados por larápios, pelo fato de não disporem de nada de grande
valia para lhes oferecer.
Os relatos foram interrompidos ao chegarmos à sede
da fazenda. Encontramos a casa arrombada. Nada fora roubado porque, como
prevenção, só restam ali antigos móveis, por demais pesados. Desolada,
constatei que jamais poderei passar férias na fazenda Morro Feio. Como dormir
em paz, sem proteção policial, sem aparato eletrônico de segurança, sem cercas
elétricas ou armas?
Na volta à cidade, consternada pelo que vi e ouvi,
tive subitamente a alegria de presenciar algo lindo de se ver e de se ouvir: o
canto de três seriemas que se postavam ao lado da estrada de terra. Paramos o
carro e desligamos o motor para melhor apreciar. Alternadamente, como se
estivessem se comunicando, elas cantavam diferentemente umas das outras. Talvez
fosse o ritual de sedução para o acasalamento. Eu não me lembrava mais do
melancólico canto da seriema. Aquela melodiosa cadência, associada ao suave
roçagar da brisa seca do planalto central e o cheiro de mato verde
arrebataram-me.
Fechei os olhos e viajei no tempo.
Transportei-me à época em que catava gabirobas, apanhava mangabas e jatobás no
campo; em que conhecia as vacas pelos nomes e brincava com seus bezerrinhos; em
que cavalgava no lombo de Baim, em que apreciava os banhos de rio, com direito
a saltos em poços fundos e deslizamentos corredeiras abaixo. Mantinha-me atenta
aos cacarejos de galinhas poedeiras. Ao primeiro alarde, enveredava mato
adentro à procura de novas ninhadas, guiada pelo som alvissareiro que soava aos
meus ouvidos como se a ave estivesse anunciando: “botei, botei, botei um ovo!!!
botei, botei, botei, um ovo!!! Eu tinha que ser ágil para encontrar o ninho
antes do término da cacarejança.
Minhas filhas, criadas em grandes centros urbanos,
não usufruíram da magia do universo campestre. Meus descendentes, filhos da era
digital, navegarão por universos não menos interessantes. As mudanças,
salutares ou não, se fazem necessárias em sintonia com o momento e com as
circunstâncias. O importante é desfrutar da magia do viver. Os
alemães usam o termo Zeitgeist, e os
franceses a locução air du temps,
para expressar o modus vivendi em
determinado tempo e espaço. Ainda não se encontrou, em português, uma tradução
ideal, que abarque todo o significado de tal expressão. A tradução mais usual é
“espírito do tempo”. Tal “espírito” abrange os novos ares espaciotemporais da
civilização, nos quais se incluem as concepções estéticas, políticas, sociais,
morais, filosóficas, econômicas e científicas, entre outras. Os conceitos,
seja estéticos, seja morais ou
religiosos, vão mudando com o passar do tempo. Por
conseguinte, algo relevante numa determinada
época torna-se irrelevante em outras, e vice-versa.
Voltando às reminiscências iniciais: Guimarânia, a
cidadezinha interiorana gravada em minha memória, continua ocupando o mesmo
espaço geográfico, mas o Zeitgeist a
distingue totalmente do que foi em décadas passadas e do que será em décadas
futuras. Todavia o canto da seriema continua o mesmo.
*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
(AFEMIL, AEL, AFESL) e do
Instituto Histórico (IHGES)