segunda-feira, 26 de agosto de 2013

O CANTO DA SERIEMA

* Jô Drumond

Nas décadas finais do segundo milênio, nas férias e feriados, eu frequentava Guimarânia (terra dos Guimarães), local escolhido por meus pais para viver seus últimos anos e para curtir a paz eterna. Trata-se de uma pacata cidadezinha interiorana, incrustrada na cratera de um vulcão há muito extinto, no Alto Paranaíba (MG). Até os dias atuais, de qualquer ponto da cidade, avista-se a vegetação que delimita o início e o fim de cada rua. O que sempre me atraia nessa cidade era a segurança de ir e vir, diferentemente dos grandes centros urbanos. Minha mãe jamais trancava a porta de entrada. Alegava que, se alguém da família passasse pela cidade, poderia entrar e dormir, sem acordar os demais. Devido à facilidade de acesso, sua casa era pouso frequente de jovens (netos, sobrinhos, primos, amigos) vindos de grandes noitadas das diversas cidades da região: Coromandel, Abadia dos Dourados, Carmo do Paranaíba, Patrocínio, Lagoa Formosa, Patos de Minas, entre outras. Alguns deles preferiam pernoitar em Guimarânia e saborear, ao amanhecer, o delicioso pão de queijo quentinho, de Dona Tunica, acompanhado de forte café antirressaca. A cada final de semana ela tinha novas surpresas. Ao se levantar, às vezes encontrava todos os quartos ocupados, assim como sofás e tudo que pudesse se oferecer como leito aos jovens passantes vindos de bailes, de festas de casamento ou de aniversário. A janela do quarto do casal, que dava para a rua, vivia escancarada, mesmo nas frias noites de inverno. Ela alegava gostar de casa arejada. Não havia grades, nem muro. Bastava subir num friso constante na parede externa e se firmar no parapeito para  ver o interior da alcova. No entanto isso jamais acontecia. Tampouco nenhum estranho jamais entrara sem ser convidado. Nunca nada foi roubado, nem sequer uma flor. Minhas filhas, quando crianças, oriundas da capital, se regozijavam com a liberdade de brincar na rua sem a vigilância dos adultos.
Nos dias de hoje, a cidade continua a mesma em termos arquitetônicos. Para os forasteiros, aparentemente nada mudou, mas, para os habitantes, a quietude de antes não existe mais. Há poucos dias, em abril de 2013, vi, no noticiário televisivo, filmagens de um confronto entre policiais e bandidos, num assalto à única agência bancária da cidade. O tiroteio, com fuzis e metralhadoras em pleno logradouro público, resultou na morte de um cliente do bar, situado ao lado da agência bancária, assim como em ferimentos à bala no proprietário do bar.
Por coincidência, na mesma semana, tive que enfrentar mil quilômetros, para as exéquias de meu irmão Zezé, em Patos de Minas. Aproveitei o ensejo para matar as saudades de Guimarânia.  Percebi então que a população local anda assustada com a onda de crimes cometidos, na grande maioria, por forasteiros, que surgem do nada e desaparecem deixando rastros de violência.
Hospedei-me na casa de minha irmã e madrinha Anatildes, moradora local há mais de 50 anos. Demonstrei interesse em visitar sua fazenda, situada a dez km da cidade, onde eu gostava de passar as férias escolares, desde a infância. Tenho muita nostalgia das temporadas no cerrado do Brasil central: banhos de rio, passeios a cavalo, caneca de leite ao pé da vaca, o pingue-pongue diário, o pomar repleto de mangas, nas férias de verão, e salpicado de goiabas, laranjas e mexericas, nas férias de inverno... Sugeri, em vão, que restaurasse o lindo e centenário casarão, para que pudéssemos voltar a usufruir daquele recanto. Ela alegou que atualmente a região está muito visada por malfeitores. Nem mesmo os pobres colonos, que pouco têm a oferecer aos larápios, querem residir na zona rural, devido à da onda de violência. Durante o trajeto, relatou-me casos estarrecedores ocorridos nos últimos dias, após o assalto ao banco.
Dentro da cidade, bandidos encapuzados invadiram uma casa. Enquanto dois deles seguravam uma senhora, um terceiro, com uma garrafa de álcool, ateava fogo em seu filho de 12 anos. A mãe, apavorada e impotente, assistiu à cena e ouviu os gritos de pavor da criança.
Houve também um assalto, numa fazenda próxima a Morro Feio, onde moram apenas um rapaz e seu pai, já idoso. Segundo ela, os dois moradores estavam acabando o labor diário na feitura do tradicional queijo de Minas. O filho, ao pegar um balde dágua para lavar o piso da casinha de queijos deparou com três homens encapuzados e armados (provavelmente os mesmos que atearam fogo ao menino). Sua primeira reação, ao ver as armas apontadas contra si, foi de jogar a água do balde sobre os bandidos. Imediatamente, como resposta, recebeu três tiros à queima-roupa. Estendido no chão, foi chutado diversas vezes, à espera de alguma reação. O corpo permanecia inerte. Com a certeza do serviço concluído, um dos malfeitores perguntou ao chefe o que faria com o velho. Recebeu como resposta que o deixasse em paz, pois o pobre diabo mal se equilibrava sobre as próprias pernas. Em seguida, os três abandonaram o recinto e entraram na sede da fazenda para escolher o butim daquela empreitada. Nisso, o filho, que se havia fingido de morto, disse ao pai que se escondesse sob as palhas do paiol. O rapaz, mesmo perdendo muito sangue, conseguiu se arrastar até uma casa de colonos, próxima ao local, para pedir socorro. Os vizinhos levaram-no a um hospital e acionaram a polícia, enquanto o pai permanecia sob monturos de palha que lhe pinicavam todo o corpo.
Numa outra fazenda próxima, três idosos foram cruelmente judiados por larápios, pelo fato de não disporem de nada de grande valia para lhes oferecer.
Os relatos foram interrompidos ao chegarmos à sede da fazenda. Encontramos a casa arrombada. Nada fora roubado porque, como prevenção, só restam ali antigos móveis, por demais pesados. Desolada, constatei que jamais poderei passar férias na fazenda Morro Feio. Como dormir em paz, sem proteção policial, sem aparato eletrônico de segurança, sem cercas elétricas ou armas?
Na volta à cidade, consternada pelo que vi e ouvi, tive subitamente a alegria de presenciar algo lindo de se ver e de se ouvir: o canto de três seriemas que se postavam ao lado da estrada de terra. Paramos o carro e desligamos o motor para melhor apreciar. Alternadamente, como se estivessem se comunicando, elas cantavam diferentemente umas das outras. Talvez fosse o ritual de sedução para o acasalamento. Eu não me lembrava mais do melancólico canto da seriema. Aquela melodiosa cadência, associada ao suave roçagar da brisa seca do planalto central e o cheiro de mato verde arrebataram-me.
  Fechei os olhos e viajei no tempo. Transportei-me à época em que catava gabirobas, apanhava mangabas e jatobás no campo; em que conhecia as vacas pelos nomes e brincava com seus bezerrinhos; em que cavalgava no lombo de Baim, em que apreciava os banhos de rio, com direito a saltos em poços fundos e deslizamentos corredeiras abaixo. Mantinha-me atenta aos cacarejos de galinhas poedeiras. Ao primeiro alarde, enveredava mato adentro à procura de novas ninhadas, guiada pelo som alvissareiro que soava aos meus ouvidos como se a ave estivesse anunciando: “botei, botei, botei um ovo!!! botei, botei, botei, um ovo!!! Eu tinha que ser ágil para encontrar o ninho antes do término da cacarejança.
Minhas filhas, criadas em grandes centros urbanos, não usufruíram da magia do universo campestre. Meus descendentes, filhos da era digital, navegarão por universos não menos interessantes. As mudanças, salutares ou não, se fazem necessárias em sintonia com o momento e com as circunstâncias. O importante é desfrutar da magia do viver.  Os alemães usam o termo Zeitgeist, e os franceses a locução air du temps, para expressar o modus vivendi em determinado tempo e espaço. Ainda não se encontrou, em português, uma tradução ideal, que abarque todo o significado de tal expressão. A tradução mais usual é “espírito do tempo”. Tal “espírito” abrange os novos ares espaciotemporais da civilização, nos quais se incluem as concepções estéticas, políticas, sociais, morais, filosóficas, econômicas e científicas, entre outras. Os conceitos, seja  estéticos, seja morais ou religiosos, vão mudando com o passar do tempo. Por
  conseguinte, algo relevante numa determinada época torna-se irrelevante em outras, e vice-versa.
Voltando às reminiscências iniciais: Guimarânia, a cidadezinha interiorana gravada em minha memória, continua ocupando o mesmo espaço geográfico, mas o Zeitgeist  a distingue totalmente do que foi em décadas passadas e do que será em décadas futuras. Todavia o canto da seriema continua o mesmo.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do 
Instituto Histórico (IHGES)


segunda-feira, 19 de agosto de 2013

CANTORIA DE REIS

*Jô Drumond

Todo início de janeiro há apresentações de folias de Reis, na zona rural do Alto Paranaíba. Os foliões vão de fazenda em fazenda, angariando prendas para a festa do dia seis. Certo dia, no percurso entre uma e outra fazenda, eles encostaram o mastro da bandeira numa árvore e se distanciaram, em respeito ao santo, para beber uma cachacinha. Ao voltarem, perceberam que um boi havia mascado a bandeira. Já meio ébrios, desnorteados, não sabiam o que fazer. Não podiam voltar ao povoado sem bandeira, muito menos sem prendas. Sugestões desencontradas de cada um não apontavam para consenso algum. Zé Mané, mais despachado, disse aos demais:
─ Deixem comigo. Vou resolver essa pendenga!
Ao se aproximarem da fazenda seguinte, ele desandou uma inusitada cantoria, em ritmo de folia: Oh senhor dono da casa / veja só o que aconteceu (bis) / dê esmola pra esse pau / a bandeira o boi comeu (bis).
O fazendeiro achou graça, convidou-os para um “cafezim quentim”, ouviu o causo do mastro desbandeirado, gostou da iniciativa do caboclo, e acabou dando um bom adjutório para a feitura de várias bandeiras.
*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do 
Instituto Histórico (IHGES)

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Roda de Bar

 Na cidade de Santa Teresa (ES), numa mesa de bar, uma alegre roda de amigos bebericava para espantar as tristezas. Depois de algumas biritas, a conversa se animava proporcionalmente ao aumento do teor etílico no sangue. Alguns deles, que caçavam por diletantismo nos finais de semana, começaram a trocar ideias sobre os locais de caça abundante na região, sobre os últimos butins, sobre os melhores cães de caça e sobre suas aventuras reais ou fictícias mata adentro.
Um deles, muito falante, conhecido como Zé da Onça pelo fato de ter enfrentado uma delas, segundo ele, sozinho e desarmado, disse:
─ Minha gente! Cá pra nós, vou lhes dizer uma coisa. Prestem atenção! Não há nenhum lugar melhor para se caçar do que a reserva florestal daqui de Santa Teresa.
─ Tá louco, homem! ─ Exclamou um deles ─ É proibido caçar na reserva! É crime inafiançável! Você pode ser preso!
─ Eu sei. Tô cansado de saber! Mas a reserva é grande, e a fiscalização é precária. Nunca vi um fiscal do Ibama  por lá.
Um senhor reservado, novato no grupo, que até então não se tinha manifestado, lhe perguntou.
─ Como o senhor se chama?
─ Eu não me chamo nunca! Meus amigos me chamam por Zé da Onça.
─ Seu Zé, o senhor caça sempre, dentro da reserva?
─ Claro que sim!
─ O senhor sabe com quem está falando?
─ Não. É a primeira vez que o vejo por essas bandas.
*Jô Drumond
(Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do 
Instituto Histórico (IHGES)
─ Eu me chamo João Pedro. Sou chefe da fiscalização do Ibama.
Mais que depressa Zé da Onça lhe fez a mesma pergunta, já com a resposta engatilhada.
─  Muito prazer! E o senhor? Sabe com quem está falando? Com o maior mentiroso da região!
Todos caíram na gargalhada. Ficou o dito pelo não dito e mudaram o rumo da prosa.

O fato virou caso anedótico na cidade, mas surtiu dois efeitos, para a tranquilidade dos animais silvestres: Amedrontado, Zé da Onça nunca mais caçou na reserva; alertado, o fiscal passou a atuar com muito mais rigor junto à sua equipe.




segunda-feira, 5 de agosto de 2013

PÉROLAS AOS PORCOS

Jô Drumond

Grande apreciador de vinhos raros, o francês François de la Cancoillote, colecionava milhares de litros de vinho em sua extensa adega, no subsolo do palacete onde residia. Algumas garrafas, alvo da cobiça de enólogos, eram verdadeiras preciosidades. 

Durante a ocupação nazista, na segunda Grande Guerra, na iminência de ter sua residência invadida e tomada por soldados alemães, ele providenciou a inundação da adega. Todas as garrafas garimpadas durante décadas em vinícolas e no comércio especializado ficaram submersas. Não permitiria que os tradicionais beberrões de cerveja profanassem suas raridades de estimação, guardadas com tanto desvelo. Se quisessem beber, que tomassem água, de preferência envenenada. Seu vinho não se prestaria ao desfrute de soldados incapazes de degustá-los. Não daria pérolas aos porcos.

A temida previsão aconteceu. O palacete foi confiscado. Sua família, habituada à amplidão dos cômodos, ao requinte da decoração e à mesa farta, teve que se aboletar juntamente com famílias desconhecidas, em exíguos espaços, e que se alimentar com parca ração nauseabunda. Os belicosos ocupantes da mansão não deram atenção à inundação do porão. Tinham questões mais importantes a tratar.

Ao final da guerra, a família Cancoillote recuperou seu palacete e, juntamente com ele, sua dignidade. Todos os cômodos encontravam-se em estado lastimável. Enquanto mulher e filhos vistoriavam os estragos e lamentavam a imundície, François desceu mais que depressa ao subsolo. Seu tesouro continuava resguardado sob milhares de litros cúbicos de água. O escoamento foi providenciado. As rolhas pareciam intactas. François abriu uma garrafa e teve a hedonística sensação de degustar o néctar dos deuses. Que ideia magnífica, a minha ─ pensou ele ─ nada melhor do que água para manter a temperatura e conservar o vinho. Após o momento de euforia, uma desolação. Todas as garrafas haviam perdido os rótulos. Como identificar a safra e a procedência de cada uma? Pas possible! Jamais conseguiria comercializar seu produto, se o quisesse. Pas de problème! O destino do precioso líquido já estava definido. 

Regaria os repastos dos Cancoillotte,  enquanto vida tivessem. Como bom francês, François não concebia refeição sem vinho. Pouco a pouco, de taça em taça, foi dilapidando seu tesouro. A cada garrafa aberta, a renovada alegria de estar em seus domínios, cercado pela família, e o regozijo de se sentir, de certa forma, vingado dos indesejáveis intrusos.

                                                                                                      

*Jô Drumond
(Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)