sábado, 2 de outubro de 2021

ESPECULAÇÕES “LIMPACULATIVAS”

Outro dia, conversando com a quase centenária Teodora, que viveu na zona rural, na primeira metade do século XX, tive ciência de como era desconfortável viver sem os hábitos atuais de higiene. Em sua morada não havia sala de banhos, nem ducha, nem WC. O banho de bacia era tomado em qualquer cômodo da casa. As necessidades fisiológicas eram feitas ao ar livre, aqui, ali, acolá, onde houvesse moita disponível. No entanto devia-se escolher uma moita que não tivesse sido usada recentemente, por motivos óbvios.

Quando criança, Teodora gostava da brincadeira de fazer cocô assentada em galho de árvore. Essa brincadeira acabou após um nefasto incidente. Aquilo que deveria cair no chão caiu na cabeça de seu pai, que casualmente passava por ali. Isso lhe valeu algumas chibatadas e muita bronca. Segundo ela, o que mais a aborrecia era encontrar o melhor meio de se limpar. Papel higiênico não existia. Jornais, nem pensar. Livros, somente os didáticos. Como sua mãe era costureira, ela guardava retalhos, para essa finalidade. Por precaução, mantinha um balde repleto de sabugos de milho na despensa. Quando se esquecia de pegar um sabugo, usava eventualmente alguma pedra roliça, gravetos ou folhas. Passou a evitar essa última opção desde o dia em que teve uma erupção nos “países baixos” causada por alergia ao tipo de folha. Como não sabia distinguir a folha má da boa, preferia outros procedimentos menos arriscados.

Esse relato me remeteu imediatamente a um livro de Rabelais (1494/1553), intitulado Gargantua. A temática escatológica era bastante insólita, pelo fato de ser oriunda da pena de um escritor sério. Rabelais era frade, médico e literato erudito, especialista em Direito romano e nas Literaturas grega e romana. O objetivo aparente do livro é fazer rir, mas o real objetivo ia muito além da derrisão e da sátira. O autor denuncia, por exemplo, os métodos de ensino da escolástica medieval. O pai de Gargantua o coloca nas mãos dos grandes doutores que incutem nele a sabedoria escolástica, o que o torna “idiota, palerma, distraído e bobo”. O pai percebe que o filho estava sendo prejudicado pela educação antiga e resolve que ele seria educado dentro dos preceitos modernos das nascentes ideias humanistas.

No prólogo, o autor adverte:

 

“É preciso abrir o livro e pesar cuidadosamente o que expõe. Certificar-vos-eis, então, de que a droga dentro contida é de valor bem diverso do que o promete o rótulo, isto é, de que as matérias tratadas não são tão néscias como o pretende o título [...] tomando a coisa à letra, encontrareis assuntos bem jocosos [...] mas é preciso interpretar em sentido mais elevado o que porventura julgardes dito com intenção de fazer pilhéria” (pp.42/43)

 

Vejamos uma passagem de Gargântua, na qual o autor critica a falta de brilhantismo escolar do filho:

 

 “Só se limpa o cu quando ele está sujo; ora, ele só está sujo quando se caga; logo, para limpar o cu é preciso cagar.

− OH! Que lógica tem você, meu pimpolho! Juro que vou mandá-lo para Sorbonne, pois você tem mais raciocínio do que idade. E agora continue a descrição limpaculativa, vamos!” (p.95)

 

A mordaz admiração do pai pela grande lógica do filho é hílare, quando este apresenta seu silogismo científico, com premissas que não admitem refutação: O pai Grandgosier conheceu o espírito maravilhoso do filho Gargantua na descoberta, segundo ele, do “meio de limpar o cu, o mais real, mais senhoril, mais excelente e mais expediente que já se viu” (pg.92). Tentou variados tipos de tecido, folhas diversas, palha, feno, crina, lã, tripa de boi... todos apresentavam algum tipo de problema. Limpou-se também com galináceos, com pele de veado, com pássaros e outras opções estapafúrdias. Finalmente concluiu:

 

“Digo e afirmo que não há melhor limpa-cu do que um ganso com bastante pena, desde que se ponha a cabeça dele entre as pernas (...) devido à maciez da penugem e ao calor do ganso.”  (pg. 96)

 

Gargantua decorava livros de trás pra frente, sem atentar para o conteúdo, assistia a trinta missas por dia sem prestar atenção em nenhuma, perdia tempo com jogos estúpidos e inúteis.  Como se vê, aparentemente, o objetivo de Rabelais era fazer pilhéria, mas ia muito além. Criticava o ensino “emburrecedor” da escolástica, com assimilação meramente decorativa. Apesar de ser frade franciscano, criticava também o obscurantismo religioso e a ritualização do catolicismo dogmático. Por conseguinte, chegou a ser perseguido pelos intolerantes. Como médico, empenhou-se na terapia curativa por meio do riso. Escrevia seus livros para serem lidos ou ouvidos pelos pacientes, para tornar menos amarga a dor de existir, numa época em que a medicina dispunha de poucos recursos.

A derrisão rabelaisiana, vivificadora e salutar, marca o ápice da história do riso. O teórico Bakhtin, afirma que o apogeu da história do riso teve como ponto culminante, a obra de François Rabelais.

A escola de medicina de Montpellier, onde Rabelais estudou, empenhava-se na virtude curativa do riso. Faziam-se estudos sobre a importância do "médico alegre" no tratamento das doenças e sobre o relacionamento entre médicos e pacientes.  Estudava-se a possibilidade de melhorar a qualidade de vida e de amenizar o sofrimento e a espera da morte. O riso era visto como um dom de Deus, concedido apenas aos seres humanos, uma espécie de privilégio espiritual inacessível às outras criaturas.

Retomando o fio da meada, partimos da primeira metade do século XX, retrocedemos até o final da Idade Média e percebemos que, durante séculos, quiçá milênios, as dificuldades “limpaculativas” sempre existiram, antes do advento do papel higiênico. Atualmente, rimos desses procederes citados porque eles não nos atingem. Vemos a situação friamente, imparcialmente. Para quem viveu a situação, ela certamente não é nada cômica. Trata-se daquela velha história: se alguém cai e não se machuca, todos riem; se alguém cai e se machuca, ninguém ri. O riso é incompatível com a emoção. Segundo o teórico do riso, Bergson, ele se encontra, grosso modo, no automatismo, na inflexibilidade, na distração e na insociabilidade do espectador. A velha máxima continua prevalecendo: “rir é o melhor remédio”.

Jô Drumond

 

Referências:

BACHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: Ed. Da Univ. de Brasília, 1987, 419 p.

BERGSON, Henri. Le rire. Paris : Quadrige/ Presse Univesitaire de France, 1991, 197 p.

DRUMOND, Josina Nunes. As trilhas da derrisão. Vila Velha: Editora Opção, 2012, 180 p.

RABELAIS, François, Gargantua. São Paulo: Editora Hucitec, 1986, 277 p.


RETORNO DOS LEITORES

ESPECULAÇÕES LIMPACULATIVAS

Já que você tocou no assunto, eu me atrevo dizer que a minha primeira escola foi na zona rural, e lá também era carente de tudo. Existia uma moita próxima chamada de CAGADOR. Era ali, o banheiro. E sempre a professora recomendava: - Na hora de se limpar tomem cuidado com às urtigas.

M.G.R.

 

Fiquei com dor de barriga de tanto rir. Dor de barriga? Chiii! ... Péraí que eu vou procurar uma moita ... e por falar em ‘moita’, tem aquela do vegetariano, tão vegetariano, tão vegetariano que levou a mulher pra trás da moita e... comeu a moita!

Credincruz! Isso é lá conversa pra elegantes damas acadêmicas????

Adorei, querida. Só uma perguntinha: não havia água? Ninguém pensou em ir para trás da bananeira levando uma latinha com água? Puxa vida... os ‘fiofós’ sofriam, hein?

Aqui, em minha cidade tem um doidinho – o Manél. No quintal do vizinho, tinha uma touceira de bananeiras.  O Manel não faz distinção de propriedade; faz que nem cachorro quando vê a porta da Igreja aberta... vai entrando. Nós o vimos saindo da touceira no quintal do vizinho – perguntamos? Ô Manel, o que vc está fazendo aí?

E ele – Fui fazê cocô num lugar gostotooooso!.

Tenho dito!

M.S.B.

 

Soube, de uma amiga, que um tio seu guardava sabugos no banheiro e os lavava para serem reutilizados. É mole? Não. É duro!

Não me esqueço de lavar as toalhinhas higiênicas, antes da existência de absorvente higiênico. Era um suplício. As manchas não saíam. Tinham que ser quaradas ao sol, com sabão.

J.N.C.

 

Em uma cidade interiorana, onde moravam uns primos, tinha uma casinha no quintal com um ‘latrina’ e pedaços de jornais cortados em quadrados e pendurados num gancho de arame. Bem rústico. A porta da tal casinha era só meia porta, de modo que a cara da gente ficava olhando tudo. Quando uma criança ia fazer Ô Ô as outras eram convocadas. Sentavam-se em frente à tal portinhola e ficávamos conversando. Eu achava tudo isso uma barato. Inédito para mim. Os tempos mudaram de maneira vertiginosa, né? Mais de mil anos em 100. Já estamos visitando outras galáxias... cos de loco!

M.H.B.

 

Qdo li sua crônica intitulada " Especulações Limpaculativas" não tive mais dúvidas do qto você é  incrívelmente culta, perceptiva por demais, e nos passa sua sabedoria de forma prazeroza aguçando nossa curiosidade e tbm sensibilidade ao olhar as cenas de cotidiano. Você, Jo, é mistura de simplicidade e grandeza

M.P.P.

 

Merci beaucoup pour cette vision scatoloqique très inattendue sous ta

plume qui est le plus souvent poétique et délicate.

En fait tu touches là un sujet sensible et en fouillant un peu au sein

des artistes les plus en vue on s'aperçoit qu'il y a un multiplicité

de cas une grande partie de la correspondance de Mozart, une autre

lecture du sonnet de Rimbaud les voyelles, et tant d'autres.

Chez Rabelais les cas est évident mais il arrive à en faire une alchimie

pour passer au sein de son œuvre de la "materia prima" la

plus ordinaire  l’œuvre au noir, puis l’œuvre au blanc et enfin l’œuvre

au rouge.  Car derrière tout cela, derrière (c'est le cas de dire!)

cette cocomanie on aboutit chez Rabelais à une pensée, une vision du

monde, une forme de quintessence, de philosophie.

Très amicalement

J.L.B

 

 

Na fazenda, usava-se sabugo. E o vaso era um buraco sobre o riacho. Em casa era jornal, cortado em 4 partes cada página preso num arame curvado preso na parede perto do vaso. Quando passeando ou viajando eram folhas de mamona, taioba em geral. Ruim quando por engano pegava urtiga. Varadas apanhei por ter feito as necessidades assentada num galho de biribá. O que estava preso caiu em cima da cabeça do meu irmão, que brincava num balanço. Eu lhe avisei que não estava aguentando e ele não acreditou. Eu ri e ele chorou.

E.A.V.

 

Jo, a sua  capacidade para escrever textos é indescritível.  Com muita  classe,  ao mesmo tempo que relata  essa saga de uma época em que eu jamais gostaria de ter vivenciado.

D.M.

 

Ei Jô! Ri muito desse texto. Mas realmente é bom a gente parar pra pensar nesse passado, antes e depois do papel higiênico e do WC. Hoje vejo até vasos sanitários com jatos de água para lavar o fiofó. São caríssimos, rsrsrs. Quanto conforto! E pensar que ainda existem muitas famílias sem WC e sem rede de esgoto, como naquela época.

L.B.

 

Muito interessante.  Surpreendente até também porque como você mesmo diz é iniciante no escatológico.  E eu gostei porque sua escrita continua bela e correta.

R.M.

 

Um show de narrativa, algo insólita. Me peguei sorrindo à larga, por toda a leitura.

C.S.

 

Prática  muito comum nas fazendas dos meus  tios. Convivi, na infância com essa  situação, nas férias. A pesquisa da Jô me remete aos hábitos de higiene   praticados no interior. Era por isso que cada família tinha uma data para dar remédio de verme aos filhos.

T.B.

 

Na década de 80, vivendo em Londrina no interior do Paraná, encontrei em uma fazenda, uma "casinha" e lá estava uma cesta com  muitas sabugos para uso de quem precisasse. 

Z.M.

 

Remeti-me a minha infância quando na falta do papel higiênico limpávamos o fiofó com sabugo. E quando nos encontrávamos longe da casa, procurávamos uma moita para nos aliviarmos.

S.M.N.

sexta-feira, 30 de julho de 2021

A poética de Jô Drumond

Ester Abreu Vieira de Oliveira

(Presidente da Academia Espírito-santense de Letras)

    


  Há muitos poetas no Espírito Santo. Para esta afirmação atestam diversas obras individuais e antológicas nas várias academias do ES, como a Academia Feminina Espírito-santense de Letras e a Academia Espírito-santense de Letras.

                Dessas duas instituições relatarei em uma síntese a poética de Josina Nunes Drumond (Jô Drumond), Vice Presidente da Academia Feminina Espírito-santense de Letras, 3ª. Vice-Presidente da Diretoria 2019-2021 da AEL, ocupante da cadeira 32, que tem como patrona a poetisa citada na obra de 1934, de José Vitorino, Maria Antonieta Tatagiba, a primeira mulher capixaba a publicar um livro de poema, no RJ.

                Jô Drumond, além de ensaísta e contista, é uma poeta nata. Em 2005, em Charneca, conheci sua arte poética nos 57 poemas de temas diversos, sejam os relacionados com a sua infância, ou os pertinentes à vida familiar na fazenda, ou na região mineira de sua origem.

                O poema “CAPÃO CHATO” (p. 15) dá abertura à Charneca.  Nele renascem: casa, família e entorno, num arquétipo adormecido no fundo do inconsciente: “Com memória lacunar,/ ressuscito tempos idos/[...]”. Em DIVAGAÇÕES (p. 280) o eu poético dirá na introdução do poema “Mergulho em infindos devaneios/ Palmilho do tempo a vastidão/ Àvida por novas sensações”.  Nesse mundo onírico, Jô relembra pessoas e situações e obras literárias. Mas, como vem se dedicando a estudos críticos, ela se preocupa com o fazer poético e, no metapoema AGRURAS DA POESIA (p. 31), questiona em um jogo do não saber: “Por onde começar?/ Como se expressar?/ Lápis em riste/ papel em branco/ Grafite em franco ataque/ Amargura do poeta/ Risca e rabisca o papel/ [...]”. E em ALEGORIA DA CAVERNA (p.71), presta um tributo a Platão: “A caverna é meu mundo/ O prisioneiro sou eu [...] ”.

 Em 2009, Jô publicou Filigranas poéticas/ Filigranes poétique, com 66 poemas de pensamentos filosóficos poéticos, em português e francês. Em curtos poemas a poeta refletirá sobre a dor, o absoluto, as lembranças, o sonho, enfim sobre vários sentimentos humanos. Cito O avarento II, (L´avare II) (“Com manias  de avareza/ chora/ uma lágrima de cada vez/ por precaução/”/ “Ayant des manies d`avarice/ Il pleure/ Une larme à chaque fois/ par précaution”) e “Dédalo (Dédale)” (“No labirinto da vida/ Em cada caminho,/ Um minotauro nos espreita./ Em qualquer direção/ [...]”//  «  Dans le labyrinthe de la vie,/ à chaque chemin,/ un mionotaure nous guête./ dans toutes les directions,/[...] » (pp. 14 e 15). Esses poemas nos oferecem, com uma intertextualidade com o avarento, da obra teatral L`Avaré, de, Jean-Baptiste Poquelin (Molière), a mácula da usura humana, e com Dédalo, o arquiteto do labirinto, o mito do minotauro, acentuado na obra poética de Ovídio, as perigosas surpresas em nosso trilhar. 

                Jô Drumond é Graduada em Letras e Artes Plásticas e Doutora em Comunicação e Semiótica. Em 2021, em plena pandemia, nos presenteia com o livro POÉMÁQUA Poemas e Aquarelas, dividido em três partes: Diversos, Reflexões e Amores. Nessa obra, trinta aquarelas acompanham trinta poemas em português//francês reforçando a mensagem lírica na contemplação da natureza e da vida. Há nos poemas uma estrutura espiritual sem um arcabouço lógico.

                O poema VentaniaLa bourrasque (p. 59-60), que vem depois de uma aquarela, numa paisagem onde se movimentam as palmas de sete palmeiras, predominando o verde, é um exemplo de pulsão poética de Jô. “Observo a ventania/ recriando nuvens em céu varrido/ espalhando incertezas vida adentro/ tecendo dores em meu peito [...]”/  “J´observe la bourrasque/ qui récrée des nuages dans un ciel balayé/ qui répand des incertitudes dans ma vie/ et tisse des douleurs dans ma poitrine [...]”.  As firmes palmeiras com suas palmas balançantes são como nuvens em movimento. Esta comparação leva o eu poético a se descobrir, a ter coragem para enfrentar um oculto temor. “É preciso apagar a luz/ para enxergar as trevas”//Il faut éteindre la lumière/ pour voir les ténèbres”. E no metapoema Caminho literário Chémin littéraire (p. 22-23), antecedido pela aquarela de uma paisagem, cortada por um caminho sinuoso entre árvores, os versos tecem uma biografia poética da autora. As três estrofes são tituladas em negritos pelos versos 1- “Meu caminho é heterodoxo”, 2- “Meu caminho é poético”, 3- “Meu caminho é literário”. A conclusão do poema está nos versos em negrito: “No desvão das entrelinhas/ encontro o sentido da vida”


                 Em POÉMÁQUA... sentimos o escritor diante da realização de sua obra, compartilhamos seus anseios e observamos seus objetivos, enriquecemo-nos com o saber que transmite nas imagens verbais e visuais. Muitos poemas trazem dedicatórias, afirmando a afetividade, a admiração ou o reconhecimento de Jô a poetas franceses, como Rimbaud, ou a escritores brasileiros, como Guimarães Rosa, a obras brasileiras ou estrangeiras como Dom Quixote, e Grande sertão, a amigos como o seu cardiologista, Jorge Elias e, gentilmente, me inclui nas dedicatórias com ERRÂNCIA/ ERRANCE (p. 28-31)depois de uma aquarela, em homenagem a Cervantes com a figura de dois cavaleiros, alegoricamente representando Sancho Panza e Dom Quixote, um no seu burrinho e o outro no seu cavalo o Rocinante, numa paisagem onde se encontram moinhos de vento.

                Heidegger, em a Arte e poesia, afirma que a essência da arte é colocar a verdade do ser e esta é o belo. E em POÉMÁQUA..., a verdade da arte poética de Jô está em ilustrar a mensagem de dois aspectos: o poético da pintura e o do poema. Em cada aquarela encontra-se a essência poética e, nesse jogo, entre a palavra e a imagem, Jô brinca com as letras, colore um mundo de formas e técnicas.  Ler os poemas contidos nessa obra é viajar por um campo cultural rico e sensível.

                Enfim, a arte poética não é só confissão do artista. É onde ele encontra ecos de sinceridade de todos os homens, onde se torna, com sua arte, o porta voz da humanidade nos destaque que dá aos arquétipos humanos. Como o intérprete de cada um de nós, Jô Drumond diz, de uma maneira admirável e autêntica, o que nos falta para a manifestação de nossa emoção, não porque nos quer ensinar nada, mas porque procura apresentar-nos o objeto de sua revelação.

 


segunda-feira, 5 de julho de 2021

RELICÁRIO MUSICAL



É incrível como a música nos faz flutuar no tempo e no espaço.
 Recebi hoje, pelo WhatsApp, um vídeo sobre os bailes dos anos dourados, época em que os enamorados não podiam se tocar. No entanto, socialmente, podiam dançar de rosto colado, sussurrando-se deleitosas juras. Além das imagens dos bailes de outrora, o vídeo tráz legendas explicativas e, o mais importante, um fundo musical impecável para a ocasião: La Mer,1 com Ray Conniff.

Isso remeteu-me aos bailes de minha juventude, nos anos 60, em Patos de Minas. Eu gostava de rodopiar nas pistas de dança, ao som da canção La Mer, tanto nas horas dançantes domingueiras quanto nos frequentes bailes da Sociedade Recreativa Patense e do Patos Social Clube.

Na década de 70, quando eu morava em Ouro Preto, havia (ainda há) a famosa “Festa do Doze”, em que se comemora o aniversário da Escola de Minas,2 da Universidade Federal de Ouro Preto.

Naquela época, eram programados bailes, em três dias consecutivos. A cada dia, duas orquestras tocavam simultaneamente em dois grandes salões, na Praça Tiradentes. Uma no térreo, no espaço comumente reservado ao Remop (Restaurante Escola de Minas de Ouro Preto), onde eu fazia minhas refeições diárias; e a outra tocava no piso superior, onde funcionava a Semop (Sociedade dos ex-alunos da Escola de Minas de Ouro Preto).

Durante décadas, mesmo morando fora do Estado, todos os anos eu participava dos três bailes. O 12 de Outubro era sagrado, sobretudo para meu ex-marido, ex-aluno daquela instituição e veterano da república de estudantes chamada Poleiro dos Anjos. Para mim, baile sem La Mer não era baile. Minha preferência por essa canção ainda perdura nos dias de hoje.

Certa vez, quando morávamos no Estado do Rio, deslocamo-nos para tal evento. Pela primeira vez, essa música não fez parte da seleção musical. Saí do baile às quatro horas da manhã, contrariada por não terem tocado minha canção preferida. Ao sairmos do salão de festa, percebemos que o restaurante O Relicário, situado do outro lado da praça, ainda estava aberto. O Relicário, na época, era o restaurante ouro-pretano mais procurado por turistas estrangeiros. Funcionava no local de uma antiga senzala, nos porões de um casarão: local histórico, rústico, acolhedor e gastronômico.  O atendimento era excepcional. O proprietário, Senhor Valdemar, já idoso, tinha que se virar em diversas línguas, para agradar aos fregueses. Durante algum tempo eu lhe ensinei a língua francesa, para que ele se comunicasse melhor com a grande maioria dos turistas, originários de países francófonos. Ao final da aula, ele sempre me oferecia um prato especial, por conta da casa. 

Pois bem, voltemos à madrugada do baile. Ao perceber que o restaurante ainda estava aberto, decidimos comer algo antes voltar ao Poleiro dos Anjos. Passamos pela portinha estreita, quase imperceptível, do restaurante, descemos uma rampa também estreita, até chegarmos à sala de jantar: piso rústico, em pedras; paredes em pedras sobrepostas; porão sombrio, sem arejamento. Imagine-se a situação calamitosa desse local como dormitório de escravos, amontoados no chão, sem conforto algum e sem higiene (não havia WC, nem possibilidade de banhos). Vencidos pelo cansaço da labuta nas minas, certamente dormiam o sono dos extenuados e sonhavam: sonhos, sonhos e mais sonhos. Isso não lhes podia ser negado, nem subtraído.  Era o que lhes restava de bom.

 Naquela noite do baile, excepcionalmente, havia música ao vivo para os comensais. Seu Valdemar nos recebeu, todo solícito, alojou-nos na melhor mesa disponível, afastou-se por alguns segundos, disse algo aos músicos e voltou dizendo que a música seguinte seria oferecida a mim. Por incrível que pareça, tocaram La Mer. Ele não sabia que eu gostava da música, muito menos que eu lastimava o fato de não a ter ouvido naquela noite. Uma feliz coincidência.

Com o tempo, parei de frequentar os bailes do Doze, mas continuei gostando de dançar a mesma música ao som dos bolachões de vinil, com orquestra e coro sob a batuta de Ray Conniff. Decidi que ela seria tocada durante meu funeral. Já que um dia serei obrigada a passar por isso, que seja com música e poesia. “Não quero choro nem vela”, como diz uma canção popular, tampouco tristeza e “rezação”. Escolhi duas músicas para a ocasião: a maviosa Sonata ao Luar de Bethoven, para entrar em sintonia com o cosmos, e La Mer, com Ray Conniff, música apropriada para rodopiar de estrela em estrela, até o infinito. Destarte, essa música que me acompanhou vida adentro, me acompanhará vida afora, além do ponto final.

 

NOTAS

La mer1 :  Música de Charles Trenet, datada de 1943. Reza a lenda que, em 20  minutos, foi composta e registrada em um pedaço de papel higiênico, durante uma viagem de trem feita pelo compositor.

 

Escola de Minas2, da UFOP. Fundada pelo cientista francês Claude Henri Gorceix no dia 12 de outubro de 1876, a Escola de Minas é considerada pioneira em estudos mineralógicos, geológicos e metalúrgicos.

 

Jô Drumond