Outro dia, conversando com a quase centenária Teodora, que viveu na zona rural, na primeira metade do século XX, tive ciência de como era desconfortável viver sem os hábitos atuais de higiene. Em sua morada não havia sala de banhos, nem ducha, nem WC. O banho de bacia era tomado em qualquer cômodo da casa. As necessidades fisiológicas eram feitas ao ar livre, aqui, ali, acolá, onde houvesse moita disponível. No entanto devia-se escolher uma moita que não tivesse sido usada recentemente, por motivos óbvios.
Quando criança, Teodora gostava da brincadeira de fazer cocô assentada em galho de árvore. Essa brincadeira acabou após um nefasto incidente. Aquilo que deveria cair no chão caiu na cabeça de seu pai, que casualmente passava por ali. Isso lhe valeu algumas chibatadas e muita bronca. Segundo ela, o que mais a aborrecia era encontrar o melhor meio de se limpar. Papel higiênico não existia. Jornais, nem pensar. Livros, somente os didáticos. Como sua mãe era costureira, ela guardava retalhos, para essa finalidade. Por precaução, mantinha um balde repleto de sabugos de milho na despensa. Quando se esquecia de pegar um sabugo, usava eventualmente alguma pedra roliça, gravetos ou folhas. Passou a evitar essa última opção desde o dia em que teve uma erupção nos “países baixos” causada por alergia ao tipo de folha. Como não sabia distinguir a folha má da boa, preferia outros procedimentos menos arriscados.
Esse relato me remeteu imediatamente a um livro de Rabelais (1494/1553), intitulado Gargantua. A temática escatológica era bastante insólita, pelo fato de ser oriunda da pena de um escritor sério. Rabelais era frade, médico e literato erudito, especialista em Direito romano e nas Literaturas grega e romana. O objetivo aparente do livro é fazer rir, mas o real objetivo ia muito além da derrisão e da sátira. O autor denuncia, por exemplo, os métodos de ensino da escolástica medieval. O pai de Gargantua o coloca nas mãos dos grandes doutores que incutem nele a sabedoria escolástica, o que o torna “idiota, palerma, distraído e bobo”. O pai percebe que o filho estava sendo prejudicado pela educação antiga e resolve que ele seria educado dentro dos preceitos modernos das nascentes ideias humanistas.
No prólogo, o autor adverte:
“É preciso abrir o livro e pesar cuidadosamente o que expõe. Certificar-vos-eis, então, de que a droga dentro contida é de valor bem diverso do que o promete o rótulo, isto é, de que as matérias tratadas não são tão néscias como o pretende o título [...] tomando a coisa à letra, encontrareis assuntos bem jocosos [...] mas é preciso interpretar em sentido mais elevado o que porventura julgardes dito com intenção de fazer pilhéria” (pp.42/43)
Vejamos uma passagem de Gargântua, na qual o autor critica a falta de brilhantismo escolar do filho:
“Só se limpa o cu quando ele está sujo; ora, ele só está sujo quando se caga; logo, para limpar o cu é preciso cagar.
− OH! Que lógica tem você, meu pimpolho! Juro que vou mandá-lo para Sorbonne, pois você tem mais raciocínio do que idade. E agora continue a descrição limpaculativa, vamos!” (p.95)
A mordaz admiração do pai pela grande lógica do filho é hílare, quando este apresenta seu silogismo científico, com premissas que não admitem refutação: O pai Grandgosier conheceu o espírito maravilhoso do filho Gargantua na descoberta, segundo ele, do “meio de limpar o cu, o mais real, mais senhoril, mais excelente e mais expediente que já se viu” (pg.92). Tentou variados tipos de tecido, folhas diversas, palha, feno, crina, lã, tripa de boi... todos apresentavam algum tipo de problema. Limpou-se também com galináceos, com pele de veado, com pássaros e outras opções estapafúrdias. Finalmente concluiu:
“Digo e afirmo que não há melhor limpa-cu do que um ganso com bastante pena, desde que se ponha a cabeça dele entre as pernas (...) devido à maciez da penugem e ao calor do ganso.” (pg. 96)
Gargantua decorava livros de trás pra frente, sem atentar para o conteúdo, assistia a trinta missas por dia sem prestar atenção em nenhuma, perdia tempo com jogos estúpidos e inúteis. Como se vê, aparentemente, o objetivo de Rabelais era fazer pilhéria, mas ia muito além. Criticava o ensino “emburrecedor” da escolástica, com assimilação meramente decorativa. Apesar de ser frade franciscano, criticava também o obscurantismo religioso e a ritualização do catolicismo dogmático. Por conseguinte, chegou a ser perseguido pelos intolerantes. Como médico, empenhou-se na terapia curativa por meio do riso. Escrevia seus livros para serem lidos ou ouvidos pelos pacientes, para tornar menos amarga a dor de existir, numa época em que a medicina dispunha de poucos recursos.
A derrisão rabelaisiana, vivificadora e salutar, marca o ápice da história do riso. O teórico Bakhtin, afirma que o apogeu da história do riso teve como ponto culminante, a obra de François Rabelais.
A escola de medicina de Montpellier, onde Rabelais estudou, empenhava-se na virtude curativa do riso. Faziam-se estudos sobre a importância do "médico alegre" no tratamento das doenças e sobre o relacionamento entre médicos e pacientes. Estudava-se a possibilidade de melhorar a qualidade de vida e de amenizar o sofrimento e a espera da morte. O riso era visto como um dom de Deus, concedido apenas aos seres humanos, uma espécie de privilégio espiritual inacessível às outras criaturas.
Retomando o fio da meada, partimos da primeira metade do século XX, retrocedemos até o final da Idade Média e percebemos que, durante séculos, quiçá milênios, as dificuldades “limpaculativas” sempre existiram, antes do advento do papel higiênico. Atualmente, rimos desses procederes citados porque eles não nos atingem. Vemos a situação friamente, imparcialmente. Para quem viveu a situação, ela certamente não é nada cômica. Trata-se daquela velha história: se alguém cai e não se machuca, todos riem; se alguém cai e se machuca, ninguém ri. O riso é incompatível com a emoção. Segundo o teórico do riso, Bergson, ele se encontra, grosso modo, no automatismo, na inflexibilidade, na distração e na insociabilidade do espectador. A velha máxima continua prevalecendo: “rir é o melhor remédio”.
Jô Drumond
Referências:
BACHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: Ed. Da Univ. de Brasília, 1987, 419 p.
BERGSON, Henri. Le rire. Paris : Quadrige/ Presse Univesitaire de France, 1991, 197 p.
DRUMOND, Josina Nunes. As trilhas da derrisão. Vila Velha: Editora Opção, 2012, 180 p.
RABELAIS, François, Gargantua. São Paulo: Editora Hucitec, 1986, 277 p.
RETORNO DOS LEITORES
ESPECULAÇÕES LIMPACULATIVAS
Já que você tocou no assunto, eu me atrevo dizer que a minha primeira escola foi na zona rural, e lá também era carente de tudo. Existia uma moita próxima chamada de CAGADOR. Era ali, o banheiro. E sempre a professora recomendava: - Na hora de se limpar tomem cuidado com às urtigas.
M.G.R.
Fiquei com dor de barriga de tanto rir. Dor de barriga? Chiii! ... Péraí que eu vou procurar uma moita ... e por falar em ‘moita’, tem aquela do vegetariano, tão vegetariano, tão vegetariano que levou a mulher pra trás da moita e... comeu a moita!
Credincruz! Isso é lá conversa pra elegantes damas acadêmicas????
Adorei, querida. Só uma perguntinha: não havia água? Ninguém pensou em ir para trás da bananeira levando uma latinha com água? Puxa vida... os ‘fiofós’ sofriam, hein?
Aqui, em minha cidade tem um doidinho – o Manél. No quintal do vizinho, tinha uma touceira de bananeiras. O Manel não faz distinção de propriedade; faz que nem cachorro quando vê a porta da Igreja aberta... vai entrando. Nós o vimos saindo da touceira no quintal do vizinho – perguntamos? Ô Manel, o que vc está fazendo aí?
E ele – Fui fazê cocô num lugar gostotooooso!.
Tenho dito!
M.S.B.
Soube, de uma amiga, que um tio seu guardava sabugos no banheiro e os lavava para serem reutilizados. É mole? Não. É duro!
Não me esqueço de lavar as toalhinhas higiênicas, antes da existência de absorvente higiênico. Era um suplício. As manchas não saíam. Tinham que ser quaradas ao sol, com sabão.
J.N.C.
Em uma cidade interiorana, onde moravam uns primos, tinha uma casinha no quintal com um ‘latrina’ e pedaços de jornais cortados em quadrados e pendurados num gancho de arame. Bem rústico. A porta da tal casinha era só meia porta, de modo que a cara da gente ficava olhando tudo. Quando uma criança ia fazer Ô Ô as outras eram convocadas. Sentavam-se em frente à tal portinhola e ficávamos conversando. Eu achava tudo isso uma barato. Inédito para mim. Os tempos mudaram de maneira vertiginosa, né? Mais de mil anos em 100. Já estamos visitando outras galáxias... cos de loco!
M.H.B.
Qdo li sua crônica intitulada " Especulações Limpaculativas" não tive mais dúvidas do qto você é incrívelmente culta, perceptiva por demais, e nos passa sua sabedoria de forma prazeroza aguçando nossa curiosidade e tbm sensibilidade ao olhar as cenas de cotidiano. Você, Jo, é mistura de simplicidade e grandeza
M.P.P.
Merci beaucoup pour cette vision scatoloqique très inattendue sous ta
plume qui est le plus souvent poétique et délicate.
En fait tu touches là un sujet sensible et en fouillant un peu au sein
des artistes les plus en vue on s'aperçoit qu'il y a un multiplicité
de cas une grande partie de la correspondance de Mozart, une autre
lecture du sonnet de Rimbaud les voyelles, et tant d'autres.
Chez Rabelais les cas est évident mais il arrive à en faire une alchimie
pour passer au sein de son œuvre de la "materia prima" la
plus ordinaire l’œuvre au noir, puis l’œuvre au blanc et enfin l’œuvre
au rouge. Car derrière tout cela, derrière (c'est le cas de dire!)
cette cocomanie on aboutit chez Rabelais à une pensée, une vision du
monde, une forme de quintessence, de philosophie.
Très amicalement
J.L.B
Na fazenda, usava-se sabugo. E o vaso era um buraco sobre o riacho. Em casa era jornal, cortado em 4 partes cada página preso num arame curvado preso na parede perto do vaso. Quando passeando ou viajando eram folhas de mamona, taioba em geral. Ruim quando por engano pegava urtiga. Varadas apanhei por ter feito as necessidades assentada num galho de biribá. O que estava preso caiu em cima da cabeça do meu irmão, que brincava num balanço. Eu lhe avisei que não estava aguentando e ele não acreditou. Eu ri e ele chorou.
E.A.V.
Jo, a sua capacidade para escrever textos é indescritível. Com muita classe, ao mesmo tempo que relata essa saga de uma época em que eu jamais gostaria de ter vivenciado.
D.M.
Ei Jô! Ri muito desse texto. Mas realmente é bom a gente parar pra pensar nesse passado, antes e depois do papel higiênico e do WC. Hoje vejo até vasos sanitários com jatos de água para lavar o fiofó. São caríssimos, rsrsrs. Quanto conforto! E pensar que ainda existem muitas famílias sem WC e sem rede de esgoto, como naquela época.
L.B.
Muito interessante. Surpreendente até também porque como você mesmo diz é iniciante no escatológico. E eu gostei porque sua escrita continua bela e correta.
R.M.
Um show de narrativa, algo insólita. Me peguei sorrindo à larga, por toda a leitura.
C.S.
Prática muito comum nas fazendas dos meus tios. Convivi, na infância com essa situação, nas férias. A pesquisa da Jô me remete aos hábitos de higiene praticados no interior. Era por isso que cada família tinha uma data para dar remédio de verme aos filhos.
T.B.
Na década de 80, vivendo em Londrina no interior do Paraná, encontrei em uma fazenda, uma "casinha" e lá estava uma cesta com muitas sabugos para uso de quem precisasse.
Z.M.
Remeti-me a minha infância quando na falta do papel higiênico limpávamos o fiofó com sabugo. E quando nos encontrávamos longe da casa, procurávamos uma moita para nos aliviarmos.
S.M.N.