sábado, 21 de novembro de 2020

O CLAMOR DO AMOR


Após cinquenta anos de convivência nem sempre pacífica, Gilda e Gilson Bittencourt resolveram comemorar as bodas de ouro. A família não era numerosa. Apenas dois filhos e quatro netos, mas o número de convidados superava duas centenas. Gostariam de compartilhar aquele rito de passagem com parentes, amigos e vizinhos em grande estilo.


Um de seus netos chamado Gil (homenagem aos avós), residente em outro Estado, se deslocou especialmente para o evento. Como chegou com alguns dias de antecedência, reservou o máximo de tempo para curtir a família. Gostava do “range rede” na ampla varanda da casa dos avós. Próximo à rede, ficava a cadeira de balanço onde o avô passava longas horas a ler, a esperar o passar do tempo e, sobretudo, a matutar. Gilson se dizia “um caboclo pensador”. Nunca dizia nada abertamente. Gostava de linguagem figurativa. Sempre lançava mão de paradoxos, analogias, metáforas, alegorias... tudo permeado de fina ironia.


Certo dia, estando avô e neto na varanda, engataram uma prosa sobre relacionamento amoroso e convivência familiar.


Gil perguntou a Gilson como havia conseguido conviver com a mesma pessoa durante 50 anos debaixo do mesmo teto, sendo que ele próprio já não suportava mais a convivência com sua mulher, com menos de um ano de casamento. 


─ O que há de errado na relação de vocês?  ─ perguntou o avô.

─ Na época do namoro, Kelly era uma. Após o casamento, é outra, bem menos interessante.

─ Meu querido neto! Você é muito jovem. Ainda há muito a aprender. Há vários tipos de amor, de diferentes intensidades.


─ Como assim?

─ No caldeirão amoroso há três ingredientes básicos e diversos condimentos. O tripé é formado pelo amor e pelos dois enamorados. Com o tempo, esses três elementos vão mudando e criando novos condimentos, novos sabores.

─ Desculpe-me vovô, não entendi muito bem.

─ Meu menino, vou lhe repetir uma frase que muito aprecio, de Riobaldo, o pensador do sertão.

─ Quem é ele?

─ O protagonista do romance Grande sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Segundo ele, as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas, Vão sempre mudando. Afinam ou desafinam.

─ Nunca ouvi falar em Riobaldo.

─ Pois não deixe de conhecê-lo. Você cavalgará com um jagunço pensador, compartilhando seus filosofemas através de dois sertões: o geográfico e o mítico.

─ Obrigado pela dica de leitura, vovô, mas isso não me interessa, no momento. Voltemos ao assunto.


─Ah! Sim, retomemos nosso caldeirão amoroso. No início, há muita efervescência, com grande dosagem de amor-paixão, hormônios em alta, muita vitalidade, mas não dura muito. Com o tempo, a fervura vai se abrandando e dá lugar ao amor-conjugal, mais sólido e duradouro. Ele envolve o compartilhamento de interesses, atividades e responsabilidades entre as partes envolvidas. Os objetivos convergem na criação dos filhos, na carreira profissional do casal, na construção do patrimônio familiar... Após algumas décadas de convivência, ele pode se transformar em amor-fraterno. À medida que a dosagem hormonal cai, surgem novos condimentos para temperar a relação.


─ Como assim?

─ O companheirismo, a camaradagem, a reciprocidade, o respeito mútuo, a amizade, a solidariedade... Quando chega a velhice, no meu caso, muitas vezes um serve de bengala ao outro. A gente vai se ajudando mutuamente até o fim da caminhada.

─ Está certo. As pessoas mudam, com o passar do tempo, mas o que me incomoda é que a pessoa com a qual compartilho meu dia a dia se transformou muito rapidamente. Ela anda apática, desleixada, impaciente, grosseira... totalmente diferente daquela exuberante garota que conheci tempos atrás, na faculdade.


─ Entendo perfeitamente, Gil. Você caiu na arapuca armada pelo próprio sentimento amoroso. É algo meio complicado. Ele se desenvolve, sobretudo por intermédio da imaginação, da idealização. A imagem vista ou criada da pessoa amada nem sempre condiz com a realidade. A meu ver, o amor não está no ser amado. Ele se encontra no ser enamorado. O objeto do desejo existe tal e qual é contemplado por aquele que o deseja. Entendeu?


─ Acho que não. O senhor quer dizer que o objeto do desejo prescinde de existência própria?

─ Mais ou menos isso, mas tudo é muito subjetivo. Não se sabe por que se ama alguém. Não há base sólida na qual se possa apoiar. Sua frustração, Gil, se explica pelo fato de que grande parte do perfil de Kelly foi traçada por você. Mas diga-me! Por que tantas perguntas? Está pensando seriamente em separação?


─ Tenho pensado nisso. Diga-me uma coisa, vovô. Considerando que as pessoas mudam e que o amor pode acabar, por que o casamento é um sacramento indissolúvel?  Não é muita incoerência? Por que passar a vida toda ao lago de alguém cuja presença se torna insuportável? A bênção pode se transformar em castigo.  


─ Meu neto, “lógica” não combina muito com “religião”. Veja bem! Antes, os casamentos eram arranjados pelas famílias, com ou sem consentimento dos noivos. Alianças diplomáticas eram feitas com finalidade de conquistar aliados políticos ou de criar laços econômicos. A partir do século XII, a Igreja católica normatizou alguns costumes, entre eles, a manifestação voluntária como condição para a realização do casamento.


─ Mas, vovô, o que me interessa, no momento, é a manifestação voluntária para SAIR do casamento. Essa história de que “o que Deus uniu o homem não pode separar” ainda persiste?

─ Não sei lhe dizer como isso se passa nas demais religiões. Sou católico. Infelizmente minha Igreja nem sempre acompanha o desenvolvimento social, o que acaba provocando o afastamento de muitos fiéis.  Na minha opinião, o cidadão honesto, trabalhador, religioso, bom pai de família que porventura tenha um casamento infeliz, deve ter o direito de tentar nova vida, sem ter que abandonar sua Igreja. Concorda?


─  Claro! Pelo menos juridicamente o desenlace pode ser feito. Menos mal.

─ Sim, mas esteja certo de que o relacionamento amoroso não é o propalado “mar de rosas” dos romances açucarados. Ele perpassa alegrias e tristezas. Geralmente, brota do desejo ou da admiração. Na maioria das vezes, num “crescendo”, a pessoa se interessa por alguém, se encanta, se enamora, se enciúma, se apaixona, se inquieta, se angustia, e, muitas vezes, se frustra, se decepciona e sofre pela perda.

─ Cruzes! Termina sempre com a ansiedade dolorosa?

─ Estou generalizando. Desculpe-me pelo pessimismo.

─ Vou pensar seriamente em tudo o que o senhor me disse. É sempre bom ouvir a “voz da experiência”.

─ Meu neto querido, deixe-se levar pelo torvelinho da existência. Tudo isso faz parte da vida. Não pense muito. O dito popular afirma que “de pensar morreu um burro”. Lembre-se apenas de que a perda de um ser amado não corresponde à perda da capacidade de amar. Outras kellys surgirão para adoçar ou azedar sua vida. Todo recomeço brota de um fim.



COMENTÁRIOS


PENHA - MATHILDE -ES

Mais um delicioso conto.  Você é  demais,  Jô.  Interessante o diálogo do vô Gilson que soube sustentar seu relacionamento por tantas décadas com o neto Gil, já desiludido com sua parceira no primeiro ano de convivência. Identificado com a sabedoria do Riobaldo, nos fala das intensidades do amor com o passar do tempo, e que o amor encontra- se no ser enamorado.... lindo isso, Jô.  Ou do contrário " cai na arapuca armada pelo próprio  sentimento amoroso. Demais!!!!!

Gosto imensamente do q escreve, de seu estilo "leque aberto" de expor uma ideia, a gente viaja muito e se enriquece.

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REGINA MENEZES- VITÓRIA - ES

Muito interessante seu posicionamento com relação às facetas do amor.

Feliz abordagem.

Tranquila a leitura que nos leva a reflexões sobre a vida a dois.

Quer dizer que o perfil que faço do objeto de minha paixão, só a mim pertence? Eu idealizo uma imagem irreal da pessoa, muito além do que ela é.

Então é por isto que todo relacionamento enfrenta alegrias e tristezas, se frustra e se decepciona...

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ERNESTO – MONTANHAS FORMOSAS - ES

Jô querida, seu conto fala da realidade de um homem e de uma mulher na vida conjugal.

Bonito conto e você destaca que uma união conjugal não pode nem deve ser "soldada" a ferro e fogo, principal e unicamente quando uma das partes procedia de maneira que ocultasse a realidade pessoal. Quantas revelações depois de o padre dizer: O que o Deus uniu o homem não separa, dando à parte negligente a ideia de posse.

É um bonito, como já disse, e que merece ser divulgado, até para orientar e confortar partes prejudicadas por um ato desonesto, na maioria das vezes para se livrar de situações indesejadas, e outras para levar alguma ou algumas vantagens.

Amanhã, publico seu conto na minha página e divulgo entre meus amigos.

Obrigado pela lembrança.

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FLÁVIA MACHADO- CAMPO GRANDE - MT

Lindo! E com muita sabedoria e reflexões 🥰 Não achei o lugar para comentários. Adoro ler suas crônicas ️ continue sempre tornando nossa vida mais prazerosa com sua arte 💕

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CHICO BRANT- BELO HORIZONTE - MG

Legal, Jô! Gostei dos "filosofemas" - palavra que nunca tinha lido -, e mais da "sacada" da diferença entre o ser amado e o ser enamorado. Ela explica todos encontros e desencontros, não? Não estou certo, mas é só perguntar ao "seu" Gilson Riobaldo...

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OSCAR GAMA FILHO – VITÓRIA - ES

Bela crônica, Jô. Se o amor pelo outro residir no ser amado, nada o destruirá. Pound dizia que "aquilo que tu amas de verdade jamais te será arrancado".

Parabéns

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PEDRO DE SEVYLHA-ESPANHA

Obrigado Jô, gostei muito do artigo. Há nele grande sabedoria.

Abraço

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MARIA DO CARMO – BELO HORIZONTE – MG

Bom dia, Jô

Seu texto nos leva à reflexão, pois todos nós, quer queiramos, quer não, passamos pelas etapas do relacionamento amoroso. Concordo com você. Acho que o amor ou a paixão se encontra na pessoa que desenvolve esse sentimento e não necessariamente no objeto da paixão. Por exemplo, há os amores platônicos, os não correspondidos e impossíveis...

O prosaísmo do cotidiano, como no aso de Gil,  pode ser fatal para um amor que foi idealizado antes do casamento, da convivência ou da coabitação.

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ROGÉRIO FARIAS – BELO HORIZONTE - MG

Ei, Jô!

Acabo agora de ler o seu lindo texto "O clamor do amor"

Parabéns!

Vou compartilhar com meus amigos

Com  um abraço,

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LÍLIA DANTAS– VITÓRIA - ES

Jô querida simplesmente maravilhoso. Adorei!!! Vou até imprimir. Posso?  Bjs saudosos.  😘

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MARCOS TAVARES – VITÓRIA - ES

Grandes lições há nesse conto dialógico. Corro já: adquirir uma bengala.

O título é ótimo

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MARIA INEZ NASCIMENTO AMORIM – LAGOA SANTA - MG

Li sua crônica,  e não pude deixar de lembrar, de 3 casos recentes de pessoas conhecidas, bem novas. O marido se apaixonou por outra, assim do nada, e terminou o casamento, que estava até ali, bem afinado.

Me parece uma banalização dos relacionamentos, um total descompromisso com o outro. Enfim, novos tempos, novas eras 😫

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SÔNIA-BARRAS - PIAUÍ

Que belo texto mostrando, com experiência própria a vida real...Parabéns!

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FRANCISCA – BELO HORIZONTE - MG

Ficou ótimo, Jô! Você aborda uma questão que é ao mesmo tempo comum e muito complexa, com um rico diálogo. Parabéns!

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REGINA – GOIÂNIA- GO

Que delícia de leitura! A gente sempre aprendendo e aproveitando pra nossa vida  novas mensagens

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MATTEDI -VITÓRIA - ES

Bom dia!

Interessante crônica. Mas queria "ouvir" tb dona Gilda,  talvez ela entrando na conversa...

Mas gostei dos "aconselhamentos". Um dia li: "Qdo for buscar alguém p conviver, procure alguém com quem vc goste de conversar". Tb um bom ingrediente... rs

Abraço e bom domingo.

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ELIZAIDA – RIO DE JANEIRO - RJ

Parabéns  querida Jô. Obrigada por nos enviar mais essa.

Zé Carlos ama suas crônicas e seus livros.

Gde abraço,  muita luz sempre. Bom domingo, Bjnhos .

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VALCI – GUIMARÂNIA - MG

Linda crônica, bem reflexiva...pura verdade!!👍🏻👏👏

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GISLENE TEIXEIRA – PATOS DE MINAS - MG

Muito interessante, como sempre!!

Gostei muito!

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MARIA LÚCIA – VITÓRIA - ES

👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻 adorei. Parabéns querida amiga. Você é espetacular. Beijos 😗

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MARIA JOSÉ GUIMARÃES – PATOS DE MINAS - MG

Olá Jô. Sempre envolvente tudo o que vc escreve. Não dá pra parar de ler. Parabéns e sucesso sempre. 😘

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SÔNIA ROSSETO – VITÓRIA - ES

Amiga gostei, do seu escrito. Só não concordei com as duas últimas fala do vovô... a igreja católica na atualidade não exclui. O Papa Francisco está revendo muitas regras impostas na nossa igreja.

Essa sua história dá um grande debate

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CIBELE – PARIS - FR

Bom e profundo artigo. Bravo amiga capixaba!👩🎨😊🥂🍾

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JAÇANAN – VITÓRIA - ES

Gostei do seu artigo, bem elaborado. Não tinha pensado sobre o tripé, interessante  ponto de vista, verdadeiro!

Um abraço e continue escrevendo sempre.

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MARLISE CONRAD – VITÓRIA - ES

Ótima reflexão! Meus Parabéns!!!!

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ANA NARIA -BELÉM DO PARÁ

Oi Jô, gosto muito de ler seus artigos, há verdades contadas com humor, muito bom!

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ACCHIAMÉ – VITÓRIA - ES

Muito bom, Jô.

A trajetória do relacionamento amoroso, na nossa época e classe social é por aí mesmo.

Parabéns e um abração.

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DENISE – VITÓRIA - ES

Excelente texto sobre a vida conjugal.   É bem complicado manter um casamento.   Gil reclama do desleixo da esposa.  Será que ela não está desiludida com ele também?    Mal ou nem amada, já não se importa em chamar a atenção.  A culpa recai sobre a mulher.

Não aprovo o Gil.

Talvez a separação seja a saída para que ela encontre quem a valorize.

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terça-feira, 13 de outubro de 2020

SÚPLICA ESCULPIDA

 


Essa interessante imagem, recebida pela Internet, poderia servir de ícone para o ano de 2020. Ela pode nos remeter a um pedido de socorro de Gaia (Mãe-Terra) e de seus viventes, que enfrentam dois grandes problemas mundiais na atual conjuntura: pandemia e incêndios florestais. O mundo se encontra devastado por queimadas de toda sorte e pelo flagelo do vírus corona. Desconheço a autoria do escultor do tronco falido, assim como a do fotógrafo. Ambos estão de parabéns. Essa imagem realmente “vale mais que mil palavras”*. Sua alta densidade sígnica suscita uma inesgotável polissemia que se desdobra infinitamente.

No primeiro plano, vê-se nitidamente um corpo feminino esculpido num tronco morto. As raízes se abrem formando uma cauda de vestimenta feminina, em verde musgo. É como se a mulher estivesse brotando do solo, seminua, braços erguidos aos céus, cabeça jogada para trás, num gesto de súplica, pedindo socorro. Os dois galhos correspondentes aos braços têm bifurcações que se multiplicam indefinidamente nas extremidades, ou seja, o pedido de proteção não é apenas para si. É para bilhões de braços erguidos aos céus, implorando clemência.

Em segundo plano, há uma floresta seca, sem nitidez, em tons sombrios. A antropomorfização do tronco, em corpo feminino, contrasta com as formas aleatórias das árvores secas, ao fundo; a suavidade das linhas femininas contrasta com a aspereza do entorno; a claridade do primeiro plano contrasta com o cinza esfumado do segundo, zona de indefinição, com a profusão de elementos. O obscurecimento da imagem pode transmitir tristeza e inquietação diante do indefinido e do inexplicável.

O tronco/corpo esculpido pode corresponder à dobra deleuziana, ou seja, à transição entre dois polos, onde se dá a tensão da fricção dos opostos. Ele pode simbolizar também a efemeridade da vida, período transitório entre brotamento e fenecimento / nascimento e morte.

Vejamos alguns dados estatísticos do que nos aflige no mundo de hoje. Desde o início da pandemia, há dez meses na China e há sete meses no Brasil, computam-se cerca de trinta e sete milhões de casos da doença, com mais de um milhão de mortes. No Brasil, pouco mais de cinco milhões de casos com cerca de cento e cinquenta mil mortes.

Quanto aos incêndios deste ano, no Brasil, o número triplicou em relação ao mesmo período de 2019. Em outras partes do mundo, como Austrália, Ártico Siberiano, Estados Unidos, entre outros, os incêndios florestais deste ano foram os maiores de todos os tempos, segundo dados compilados pelas organizações especializadas.


Alguns estudos em desenvolvimento têm relacionado, ainda sem comprovação, possíveis casos graves de covid-19 com a poluição do ar causada pelos incêndios. Isso porque, em reservas indígenas, próximas aos incêndios florestais, a infecção pandêmica tem sido mais de 150% maior que no restante do país. Considera-se que, em todo o mundo, os incêndios sejam os maiores das duas últimas décadas, sendo que os da Amazônia, do Pantanal e do cerrado brasileiro são considerados sem precedentes. Isso é preocupante, pois sabe-se que o dióxido de carbono e outros gases liberados nas queimadas tornam a terra mais quente (efeito estufa) e as florestas mais secas, o que engendra mais e mais incêndios, num ciclo de retroalimentação.

O mundo parou em 2020 devido a um vírus até então desconhecido e letal. Ao relacionar essa imagem à atual circunstância, podemos detectar ícones que transmitem a inconclusa dialética barroca de tese / antítese, na qual não pode haver síntese para que se mantenha a tensão das dubiedades: vida/morte, início/fim, alto/baixo, primavera/inverno, terra/céu, reino animal/vegetal… Tal tensão pode gerar ambiguidade, dúvida, imprecisão, imprevisão, incerteza, inconstância, indefinição, insegurança, instabilidade, medo, morte, ofuscamento, transformação…

Na história da humanidade, há períodos em que prevalece a racionalidade, a exatidão, e  há períodos em que prevalece o gosto pela imprecisão. Em época de paz e tranquilidade, há uma preferência pela estética clássica centralizada, harmoniosa, equilibrada, com cores suaves… ; em tempos conflituosos, a preferência preponderante recai justamente sobre a estética contrária: a barroca.

O mundo contemporâneo, apesar de ser detentor de instrumentos de alta precisão e de avançada tecnologia, entrega-se ao prazer da imprecisão. Talvez, justamente a sensação de insegurança, gerada pela dubiedade, interligada ao prazer estético tenha atraído meu olhar para essa floresta de símbolos.

NOTA: *“Uma imagem vale mais que mil palavras”: assertiva de antanho que se popularizou e que é muito utilizada em campanhas publicitárias. Considera-se que a comunicação imagética é mais apelativa, mais explicativa e, portanto, mais entendível que a comunicação verbal. Essa frase, muito comum hoje em dia, foi um legado de Confúcio, filósofo chinês que viveu entre 552 e 479 a.C.

Jô Drumond –  outubro de 2020


RETORNO DOS LEITORES – CRÔNICA “SÚPLICA ESCULPIDA”


CHICO BRANT – BELO HORIZONTE - MG

Seu texto, Jô, é primoroso. Só mesmo uma sensibilidade aguda e fina pode expressar o momento de tantos males que afligem toda a humanidade. Claro que deve haver uma explicação para o atual pandemônio mundial. Mas por ora a palavra é da sensibilidade, como você expressou.

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LOLA – VITÓRIA - ES

Boa noite, Jô.

Estou encantada com o seu texto.

Exatamente o que temos vivido nesse ano de 2020.

A imagem choca o nosso olhar e mexe com os nossos sentimentos.

Sem a natureza viva, nada seremos!

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MARIA HELENA ARNIZAUT – VITÓRIA - ES

Excelente reflexão sobre essa imagem tão forte, Jô! Neste momento delicado que estamos atravessando, até a figura esculpida deve estar suplicando pela volta da "estética clássica centralizada, harmoniosa, equilibrada, com cores suaves…", como você disse.

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MARIA DA PENHA – MATHILDE - ES

Jô, que seus textos são bem articulados e bem escritos, não há dúvida. Mas há que se falar de sua aguçada percepção, percepção apuradíssima, na análise da imagem que te encantou, com razão. Sempre bem informada, você faz um paralelo entre conhecimentos filosóficos, estéticos, sociais, históricos... Você é fora de série, Jô. A gente frui a beleza do texto, se informa e aprende. Parabéns, amiga.

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NEUSA SERRANO – FAZENDA DOS LAGOS - ES

Enquanto a natureza suplica por socorro, a ganância sem limites do homem destrói a vida do planeta!!! 🦥🐿🕊🦜🦩🐂🐆🐅🦍🐗🦅🐢🐒🦉🐺🌳🌴🌵🌹🌸🔥🔥😞😔😞😩

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TETÊ – VITÓRIA - ES

A imagem é potente e nos faz refletir bastante!!!

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NONA – VITÓRIA - ES

Muito tocante, súplica da natureza, fiz um comentário no jornal acontecendoonline, mas não foi publicado!😍😍👍🌱🌿🍃🎋

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MARIA JOSÉ NUNES – PATOS DE MINAS - ES

Li e reli. A deusa das palavras. Parabéns!

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MARIA LÚCIA – VITÓRIA - ES

É verdade. “ Uma imagem vale mais que mil palavras “. Lindíssima. Beijos 😘

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MARLISE CORRADI – VITÓRIA - ES

Incrível! A natureza gritando!

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CLEONICE – CAMPO GRANDE - MS

Tão bela comparação me mostra a sensibilidade de sua alma que juntamente com seu contínuo esforço culminaram em tamanha sabedoria e capacidade de expressão, capazes de alcançar nossos sentimentos e chamar a atenção para existências imensamente preciosas que temos na natureza. Fiquei emocionada. Não contive o choro.  Muito obrigada. Beijos.

..................................................................................................................................................... MARIA BEATRIZ NADER – VITÓRIA - ES

Muito triste, mas muito bonito. Realmente, a mãe terra pede socorro em forma de mulher que clama aos céus o conforto para si e para todos e todas filhas que estão secando ao fundo da imagem e do planeta. Está na hora de fazermos alguma coisa...mas, o que poderemos fazer? somos mulheres neste mundo de homens machistas, misóginos, classistas e racistas. O planeta está se consumindo e nós com ele ... ou ela.

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ADRIANA  - VITÓRIA - ES

Excelente texto, Jô!

Vc conseguiu unir todas as artes com seu texto lindo e tristemente real!!!! Parabéns !!! 👏🏼👏🏼🌻🌻🥰🥰

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MARIA DA CONSOLAÇÃO – PATOS DE MINAS - MG

Mais um belo texto da minha atual escritora predileta!!! Parabéns,Tia Jô!!!

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ANDRÉIA MICHELUCCI – VITÓRIA - ES

Muito legal! Realmente a imagem transmite uma profusão de elementos que dão margem a diversas interpretações.  Gostei da análise da “floresta de símbolos” interligando os dois flagelos da humanidade em 2020. Texto muito coerente e muito atual.

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VÂNIA – BELO HORIZONTE - MG

Impressionante, mesmo! Que análise mais detalhada, essa sua; uma descrição belíssima! Muito obrigada por compartilhar. 😘

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ANA ROSÁRIA CAIXETA – UBERABA - MG

Perfeita a imagem, de arrepiar! Muito bom o texto, acho que diz tudo!!! Obrigada querida! Beijos

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JAÇANAN – VITÓRIA -ES

Você definiu muito bem essa imagem e o que ela significa nesse ano 2020! Muita sensibilidade de sua parte. Um abraço.

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ÍTALO CAMPOS – VITÓRIA - ES

Texto denso, cheio de referência. Tenho que continuar lendo com a cabeça mais fresca.

Mas desde já, parabéns!

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DARCÍLIA MOYSÉS – VITÓRIA - ES

Chère Jô, sua análise está -- hélas -- tristemente muito, muito bem feita! Coesão e coerência em perfeita simbiose... Parabéns ! 🌻🌻🌻🌻🌻🌻

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DULCE – PATOS DE MINAS

Parabéns Jô. Vc expressou, em seu texto, a realidade que estamos vivendo. Incertezas, dúvidas, medo, confusão etc..... A imagem relata tudo. Quem a esculpiu definiu nitidamente a humanidade do século XXI – PATOS DE MINAS - MG

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ZEZÉ  - RIBEIRÃO DO CRISTO - ES

Perfeito seu texto. Nos transmite, exatamente, sua sensação

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ZEZÉ GUIMARÃES  - PATOS DE MINAS - MG

Muito interessante, instrutivo e reflexivo.

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segunda-feira, 14 de setembro de 2020

O FRUTO PROIBIDO

 


Há poucos dias, soube de uma história um tanto inverossímil, em que a pessoa envolvida passou a acreditar piamente no acontecido, após uma coincidência aleatória. Há mais de meio século, certa mãe, tendo uma criança enferma, já desenganada pelos médicos, apegou-se ao poder curativo da maçã. Disseram-lhe que essa fruta milagrosa curaria seu filho. Como ele teve uma cura inexplicada, o mito se transformou em verdade para ela. Essa história remeteu-me à infância. Lembro-me de que, quando criança, não se cultivava maçã no Brasil. Era uma fruta rara e cara, mas era de praxe levar maçã na visita a um enfermo no hospital. Por que maçã? Por que não laranja? Eu não conseguia entender. Ninguém da família sabia me explicar a razão da escolha. Tal fruta, importada, era por demais onerosa para o cardápio de famílias numerosas como a minha. Eu tinha vontade de ficar doente, de ir para o hospital, só para comer maçãs.

Não há dúvidas quanto às qualidades nutricionais1 dessa fruta. Bastam alguns cliques e o internauta terá, diante de si, um enorme leque de seus poderes curativos. O ditado inglês “uma única maçã por dia mantém o médico longe” tem respaldo científico. Pesquisas comprovam que seu consumo diário reduz o risco de diversas doenças.

Surge então uma pergunta que não quer calar: se a maçã é uma fruta tão benéfica, tão salutar, por que foi escolhida como fruto proibido, na mitologia religiosa? A tradição popular a considera fruto do pecado, embora não haja especificação do tipo do fruto da Árvore do conhecimento no Livro do Gênesis. De qualquer forma não poderia ter sido maçã, pois tal fruta inexistia na época da criação do mundo. Ela surgiu bem depois de Adão e Eva, no Cazaquistão e na Turquia. Seus frutos foram melhorados com técnicas de cultivo ao longo dos tempos. A mitologia diz que o diabo, em forma de serpente, induziu Adão e Eva a comerem do único fruto proibido. Por isso foram expulsos do paraíso. Os humoristas de plantão dizem que um pedaço de maçã ficou entalado na garganta de Adão. Por isso os homens têm uma proeminência laríngea, logo abaixo da garganta, o popular gogó, que se chama “pomo de Adão”.

O interessante é que a maçã pode simbolizar, por um lado, o mal, o pecado, a escolha errada, e, por outro lado, a escolha certa, a liberdade, a sabedoria. Ao ingerir o fruto da árvore proibida, Adão e Eva perderam as facilidades do paraíso, mas ganharam a busca do conhecimento do bem e do mal. Perderam o farto e gratuito cardápio edênico e, como castigo, tiveram que trabalhar para ganhar “o pão cotidiano”. Donde se conclui que o trabalho não é uma oração, como se ensina no catecismo: é um castigo. Conclui-se também que a serpente não prestou nenhum desserviço à humanidade. Pelo contrário, abriu-lhe os horizontes do conhecimento.

Eu sempre me perguntei por que o imaginário humano teria configurado a maçã como fruta do mal? Encontrei duas explicações plausíveis: segundo pesquisadores, os tradutores da Bíblia podem ter optado por “pomum”  (no francês pomme = maçã) talvez por influência das línguas modernas, mas poderiam ter  traduzido por pera, figo ou qualquer fruta com formato semelhante ao da maçã. Uma outra versão, teria advindo também de um problema de tradução: um quiproquó entre as palavras malus - do latim  (mal)  e malum - do grego antigo (maçã). Nunca saberemos ao certo, mas mito que se preze prescinde de comprovação.

Além de vasta simbologia,2 há diversas curiosidades a respeito dessa fruta. Vejamos algumas delas: consta, embora sem comprovação, que Newton, sentado sob uma macieira, descobriu a lei da gravidade, quando uma das maçãs lhe caiu sobre a cabeça.

Dizem que a mordida da maçã foi acrescentada no design da marca Apple para que  não fosse confundida com uma cereja. Dizem também que o nome Macintosh é inspirado no tipo de maçã McIntosk Red, variedade comum nos Estados Unidos.

A banda The Beatles escolheu a maçã como o ícone de seu selo discográfico. Muitos anos depois, um relançamento da discografia da banda foi colocado em um pen drive em forma de maçã.

Na mitologia, Hércules colhe três maçãs de ouro na Árvore da Vida, no jardim das Hespérides, após ter matado o dragão de cem cabeças que o guardava.

Na história de Robin Hood, uma pequena maçã é colocada sobre a cabeça de um amigo fiel de Robin. Com os olhos vendados, o arqueiro a divide ao meio com uma flechada.

Na obra do pintor Magritte, intitulada “O Filho do Homem”, considerada uma das obras mais importantes do surrealismo, o elemento principal é a maçã, posta na frente do rosto de um homem pintado em óleo sobre tela.

Na Literatura infantil, ela surge como fruto enfeitiçado pela bruxa, que faz com que Branca de Neve adormeça até ser despertada pelo beijo de um príncipe.

Há um romance de meu conterrâneo e contemporâneo, José Roberto Amorim,  intitulado “O vermelho da maçã”. No prólogo ele diz o seguinte: “O prazer é vermelho [... como a maçã...] mas ao cortá-lo em partes, descobrimos que, ao contrário da fruta de Adão e Eva, as metades são diferentes: uma metade é o amor e a outra é o desejo.”

Na contemporaneidade, surgiu também um livro intitulado “Minha pátria era um caroço de maçã” da romena Herta Müller, prêmio Nobel de Literatura (2009). Título deveras estranho, considerando que a autora aborda a destruição de vidas e de sonhos pela ditadura comunista romena. Ela registra lembranças dos sucessivos interrogatórios a que foi submetida, dos desaparecimentos de estudantes, dos suicídios forjados dos opositores ao regime... enfim, o caroço da maçã simbolizaria algo nefasto. Isso aguçou minha curiosidade. Por que teria ela usado, com conotação negativa, o caroço de uma fruta tão saudável e tão apreciada? Soube que as sementes dessa fruta devem ser descartadas, pois contêm cianeto e podem causar mal-estar e, em casos mais raros, até a morte por envenenamento. Em pequena quantidade não causa problema aos humanos, mas pode matar pássaros. Talvez isso explique o motivo (que desconheço) da escolha do insólito título da obra.

Como vimos, a maçã tem, em si, o dom de vida e morte, assim como a mandioca, alimento bem popular no Brasil. Apesar de ser mansa e saudável, pode se transformar em mandioca brava e matar. O fato é que o bem e o mal coexistem pacificamente (ou não), em tudo e em todos.

“Somos a vida e a morte. O tudo e também o nada [..] Maldosos ou bondosos - no tempo exato [...] O ponto de encontro está em cada um de nós. Encontrar-se é o desafio.” (Santo Agostinho)

PÉ DE PÁGINA

Qualidades nutricionais:1 Sabe-se que a maçã regula os níveis de colesterol, previne problemas cardíacos, intestinais, obesidade, reumatismo, gota, diabetes, arteriosclerose, enfermidades da pele, do sistema nervoso e possui muitos outros poderes curativos. É provado cientificamente que seu consumo reduz o risco do câncer de cólon, de próstata e de pulmão. Pouca gente sabe que a casca também deve ser ingerida, pelo fato de conter vitamina C, cálcio, fósforo, potássio, além de fibras e de ser poderoso antioxidante.

Simbologia:² A maçã simboliza a vida, o amor, a imortalidade, a fecundidade, a juventude, a sedução, a liberdade, a magia, a paz, o conhecimento, o desejo, a amizade. Seu formato esférico representa o símbolo do mundo. Para os celtas, a maçã é um símbolo da magia, da ciência, da revelação, do além e da espiritualidade. Para os gregos, a maçã representa o símbolo do amor (associada à Afrodite, deusa do amor, da beleza e da sexualidade).