terça-feira, 2 de junho de 2020

DESEJO DE MORTE, ÂNSIA DE VIDA


Baseando-nos na mediania aristotélica, que consiste na busca do equilíbrio, poderíamos traçar um paralelo entre o atual momento caótico da pandemia causada pelo coronavírus e o momento caótico criado por José Saramago em As intermitências da morte.  Realidade e ficção, de mãos dadas, contemplam juntas o caos dos extremos: no caso da pandemia, causado pelo excesso de mortes; no segundo caso, ao contrário, por sua ausência.

Segundo Aristóteles “a virtude está no meio”. A seu ver, em todas as circunstâncias, devem-se evitar os vícios (os extremos) decorrentes do excesso ou da deficiência, e buscar a virtude (o comedimento, o meio-termo). Pode-se partir desse conceito de vício e virtude, para buscar, na obra de Saramago, um contraponto para o momento atual de pandemia covídica, vivido em todo o mundo.   

Na obra As intermitências da morte, em um país fictício, a partir da meia-noite do último dia do ano,  
a morte suspendeu seus trabalhos por prazo indeterminado. Ninguém mais morria. O ideal de vida eterna foi festejado por milhões de habitantes. Finalmente, não temeriam mais a terrível “dama da foice” que a todos persegue. Após a euforia da boa nova, começaram a surgir, aos poucos, inúmeros questionamentos dela decorrentes. As pessoas envelheceriam, mas não morreriam. Os moribundos ocupariam os leitos dos pacientes que precisassem de tratamento. O sistema de saúde entraria em colapso. Caso a morte não voltasse a prestar seus serviços, a seguridade social se tornaria inviável. Os idosos continuariam a receber os benefícios ad aeternum. Os jovens envelheceriam e passariam também a recebê-los. As empresas funerárias e as seguradoras decretariam falência. As famílias não conseguiriam mais cuidar de seus inúmeros idosos. Os hospitais e asilos ficariam saturados...

Um clima de tensão, de insegurança e de medo se instalou por toda a parte. Certo dia, alguém teve a ideia de cruzar a fronteira, levando um vovozinho moribundo, para fazer uma espécie de teste mortífero. Tão logo passaram a fronteira, o idoso “abotoou o paletó”.  A iniciativa teve repercussão e foi inicialmente condenada por todos, mas a cada dia mais e mais famílias seguiam o exemplo da primeira. O poder público chegou a colocar fiscalização nas fronteiras para impedir tal insanidade. Como os problemas se multiplicavam, o governo passou a fazer vistas grossas. Quanto mais mortes, menos custos públicos e menos transtornos para as famílias. Com o tempo, o ato de atravessar a fronteira, moralmente condenado, passou a ser louvado e incentivado.

No desenrolar dos fatos, o autor mostra que a morte, sempre malvista por todos, é um mal necessário. Saramago demonstra que a ausência dela não significa uma benesse para os vivos.  Pelo contrário, as estruturas políticas, religiosas, sociais, familiares... entram em colapso

O autor lança mão de um país fictício, que poderia corresponder a qualquer país ocidental, para fazer sua crítica social. A ironia perpassa toda a obra. Ele critica a classe política, a imprensa, a família, a Igreja, a máfia, os filósofos, o sistema de saúde, enfim, não poupa instituições econômicas, políticas e sociais.

Tanto no país fictício onde não se morre quanto num país onde morrem milhares a cada dia, há superlotação em hospitais e sérios problemas econômicos. A indefinição do futuro gera ansiedade e transtornos emocionais. No primeiro caso, os coveiros ficam desempregados; no segundo, não há mais espaço nos cemitérios. Caixões enfileirados aguardam valas comuns. Os que permanecem vivos não terão um local preciso para cultuar seus mortos queridos. Aguarda-se ansiosamente a descoberta da cura ou de uma vacina contra a Covid 19. Os óbitos se multiplicam dia após dia, e a tensão aumenta.

Enfim, ambos os casos se situam nos extremos aristotélicos. Geram desequilíbrio, insegurança, inadequação social e toda sorte de transtornos. É mister passar do “vício à virtude”, voltar do desequilíbrio à normalidade. No caso de Saramago, após sete meses de caos, a morte, bem-vinda, anunciou sua volta. No caso atual, espera-se que a morte dê uma trégua ou que, pelo menos, saia de férias, por uns tempos, para que este festival mortífero tenha um ponto final.


Jô Drumond 01-06-2020

sábado, 30 de maio de 2020

MIGRAÇÃO INVOLUNTÁRIA

corujas buraqueiras
Moradores da Mata da Praia, em Vitória (ES), conviveram algumas décadas com uma família nada usual. Severino, Carolina e seus pimpolhos são da família Speotytocunicularia, conhecida popularmente como coruja buraqueira, espécie terrícola de hábitos diurnos. Não se sabe ao certo em que época escolheram sua morada. Um vizinho das locas disse-me que as via por ali havia cerca de 45 anos. Como a expectativa de vida delas é de nove anos, mantinham fidelidade ao torrão natal por várias gerações.

A Praça Márcio Sarmento faz parte de meu percurso habitual de caminhadas matutinas há mais de duas décadas. Devido a um projeto de urbanismo da Prefeitura de Vitória, tal praça se transformou em canteiro de obras. Senti um misto de contentamento e tristeza. Vislumbrava o embelezamento da quadra, mas consternava-me o iminente deslocamento das corujinhas de estimação, sempre revisitadas durante minhas caminhadas diárias. Tratores, betoneiras, escavadeiras, serras, falatórios, cantorias, radinhos de pilha... ruídos de toda sorte deixavam-me apreensiva com relação às aves. Tirei férias. Ausentei-me de Vitória por longo tempo. Ao retomar as caminhadas matinais, encontrei a praça já quase pronta, com calçadas, canteiros, plantas, bancos, ginastas, crianças, babás, bolas, velocípedes... e as lindas corujinhas. De longe avistei um canteiro redondo, com uma placa, na qual se lia: “Lar das corujas Severino e Carolina. Não perturbem.” Procurei a administração do parque, para congratulá-la pela preservação da área das locas. Soube que as obras haviam sido acompanhadas de perto pelos responsáveis, com o intuito de minimizar os ruídos e evitar maiores transtornos àquelas aves.

FOTO DO FINAL DAS OBRAS
Soube também que elas se sentiram incomodadas, mas não se intimidaram. Tendo apurada audição e visão cem vezes mais aguçada do que a do ser humano, instalavam-se, durante o dia, em cumieiras ou postes, para se afastar do barulho, espreitar o movimento e, sobretudo, para manter a guarda dos filhotes, aninhados no fundo das locas. À noite, voltavam ao lar, nos buracos do banco de areia. Em momento algum abandonaram o local. Sua persistência sensibilizou os moradores, que chegaram a fazer um abaixo-assinado, para que não fossem elas despejadas pela Prefeitura durante as obras. Daí a razão da existência do canteiro a elas reservado.

Acabei me interessando pelos seus hábitos, pesquisando-os. Aprendi que aquele local prestava-se sobremaneira para o habitat da família. Seus ninhos favoritos situam-se normalmente em locais relativamente arenosos, com baixa vegetação. Aninham-se entre março e abril em suas escavações meticulosamente forradas de materiais os mais diversos, inclusive aqueles que favorecem a manutenção da temperatura ideal. Alí põem de seis a doze ovos. Nessa época, os pais tornam-se agressivos. Atacam qualquer vivente que se aproxime das locas. Durante as quatro semanas de incubação, a fêmea cobre os ovos com o próprio corpo, para que se mantenham aquecidos. O macho encarrega-se de lhe trazer comida. Depois da eclosão dos ovinhos, durante os primeiros meses, tanto o pai quanto a mãe trazem alimentos para os pequerruchos.

A coruja buraqueira é relativamente pequena. Quando adulta, chega a medir de 23 cm a 27 cm. Das 34 espécies e subespécies de corujas existentes no Brasil, a maior delas chega a medir 52 cm; e a menor mede apenas 14 cm. O Brasil é o país de maior biodiversidade do mundo e um dos maiores em quantidade de espécies de aves. As de rapina, tais como corujas, mochos, urutaus, curiangos e noitibós, são grandes caçadoras: visão aguçada, movimentos rápidos, giro da cabeça em até 270°, e voo silencioso para não afugentar a presa, graças a penas especiais, macias e numerosas.

Soube também que essa variedade de corujas radicadas na praça é ligeiramente tolerante à presença humana e que, diferentemente das demais, tem hábitos diurnos. Caça insetos durante o dia, mas prefere a caça ‘‘crepuscular’’ de pequenos roedores. Sua dieta é bem variada. Além de insetos, alimenta-se de ratos, pequenos pássaros, serpentes, lagartos, rãs, peixes, escorpiões... Os frequentadores noturnos das quadras de tênis ou de bocha presenciam frequentemente seus voos em direção às tocas, com ratos presos ao bicos. Esses vizinhos alados fazem o controle ambiental ecologicamente correto da densidade populacional dos roedores, nas adjacências.

Moradores de boa fé, porém desinformados, prestavam um desserviço à comunidade local, ao depositar alimentos próximo às locas. Como as corujas não apreciam esses alimentos, eles apodreciam, causavam mau cheiro e atraíam moscas.

Depois de pronta, a praça tornou-se local ideal para passeios matinais e vespertinos da vizinhança, acompanhada de seus pimpolhos, para entretenimento, assim como dos cães, para seus cotidianos passeios defecatórios. As crianças corriam, gritavam e chutavam bolas ameaçadoras, próximo ao local. Os latidos dos cães, no entorno, amedrontavam as corujas. Estas, vigilantes e ansiosas por causa dos filhotes, postavam-se em árvores ou em postes. Atendendo a pedidos dos moradores, a prefeitura mandou instalar uma cerca de proteção no local reservado à família Speotytocunicularia. Mesmo assim elas se sentiam vulneráveis. Por fim, acabaram desaparecendo. Certamente encontraram outro local menos inóspito para criar família.

Atualmente, no canteiro a elas reservado, não há mais locas, tocos de árvores, nem corujas. Seu antigo lar está sombreado por uma frondosa árvore. Até os dias de hoje, uma década após a migração, durante minhas caminhadas matinais, ainda paro para verificar se, por acaso, os descendentes de Severino e Carolina resolveram voltar à antiga morada.

FOTO 10 ANOS DEPOIS.


sexta-feira, 22 de maio de 2020

BOLA DE NEVE COVÍDICA

Nesta manhã, ao abrir os olhos, recebi a triste notícia de que meu amigo Gabriel havia fechado os dele para sempre. Foi levado pela mão da Covid 19, na viagem sem volta, para a qual somos todos candidatos involuntários.
Outras epidemias existiram, ao longo dos séculos, mas, na época em que os transportes eram movidos a capim, não se disseminavam com tanta rapidez. Na virada deste decênio, a Covid 19  (Corona Virus Disease 2019) poderia ter ficado restrita à cidade de Wuhan, na China, mas obteve o efeito  metafórico de “bola de neve”, avolumando-se numa velocidade vertiginosa, e tornando-se potencialmente desastrosa para a saúde pública e para a economia do mundo todo. De janeiro a abril de 2020 infectou mais de cinco milhões e matou cerca de trezentas mil pessoas em todo o mundo. O vírus viaja clandestinamente de um continente a outro, de avião ou de navio, sem pagar passagem e sem pedir licença. A pandemia veio para “balançar o galho”, como se diz no interior de Minas. Seria como se estivéssemos todos sobre um mesmo galho, balançado freneticamente por ela, com o sadismo de se deleitar com o “despencamento”. Nessa brincadeira, os frutos mais maduros (acima de 60 anos) caem com maior facilidade.
Dizem que para toda doença há uma cura, no entanto há que encontrá-la. Como ainda não existe vacina, nem tratamento para essa pandemia, o melhor que se faz é o isolamento social, sobretudo dos idosos e de pessoas vulneráveis (com doenças pré-existentes). Apesar do confinamento, para se contagiar basta que um intermediário transporte, em si ou nas compras de víveres, o maldito vírus para um grupo de risco. Caso um confinado se infecte, todos se infectarão, não por solidariedade, evidentemente. Acontece o que se chama “efeito curral”. Por infelicidade, isso tem ocorrido em asilos.
O chamado lockdown não pode ser duradouro. Seus efeitos são também devastadores. A classe rica se “desenrica”; a média se empobrece; a pobre se “miserabiliza” e morre de inanição.
Em pouco tempo, a Covid ganhou todos os continentes, todas as metrópoles, disseminou-se invisível e silenciosamente até chegar aos nossos vizinhos, aos nossos amigos, à nossa família.
Certa mãe, inconsolável pela morte de uma filha de 15 anos, declarou nas redes sociais ter perdido o fervor religioso que a havia acompanhado desde sempre. Não foi por falta de oração, disse ela. Centenas de joelhos se calejaram, de tanto orar por seu restabelecimento, em vão. Revoltada, a mãe declarou: “Se Deus existe, deve estar de férias ou está de sacanagem conosco.”
Outro internauta respondeu jocosamente que talvez ele tenha se cansado de esperar pela Terceira Guerra Mundial e tenha resolvido criar o coronavírus para diminuir o índice populacional do planeta, que ultrapassa os sete bilhões.
Uma terceira pessoa pegou o bonde andando e questionou: “Mas e o ‘crescei-vos e multiplicai-vos’ da Bíblia?”
A segunda retrucou: “Isso é conversa mole! Ordena a multiplicação e, ao mesmo tempo, cria o pecado original? Onde já se viu? kkkkkkkkkk”
Não entrei na conversa. Evito temas polêmicos. Sabe-se que desde a antiguidade, o Ser humano sente necessidade de crer em alguma divindade. Talvez sua pequenez, sua vulnerabilidade diante da morte e a incompreensão do sentido de existir tenham engendrado um sem-número de religiões e de seitas, todas elas com o afã de ajudar o Ser a ser feliz, ou, pelo menos, a aceitar o inexplicável com tranquilidade e resignação. A pessoa crê ou não crê. Ponto final. Os politeístas acreditam em vários deuses; os monoteístas em um só; os ateus em nenhum. Deus criou a criatura ou foi por ela criado? Que diferença faz? Para alguns, faz toda a diferença; para outros, nenhuma. É inútil discutir tema tão polêmico.
Voltemos ao que desencadeou tudo isso: a morte de meu amigo Gabriel. Ele era um dos leitores mais assíduos de minha coluna do jornal virtual www.acontecendoonline.com.br. Pedia-me que lhe enviasse todos os meus escritos, pela internet. Sempre me dava um retorno carinhoso, a cada nova leitura. Perdi um amigo e um grande incentivador.
Estou abalada e triste com a perda. Há quem acredite em vida após a morte e/ou em outras vidas. Quem sabe, mais dia, menos dia, reencontremos em outra dimensão as pessoas queridas que partiram antes de nós?  Na impossibilidade disso, há, pelo menos, o consolo de se ter essa esperança. Ela não “é a última que morre”? Filosofia e metafísica andam de mãos dadas sobre um precipício de profundezas abissais.
Jô Drumond  – 21-05-2020