segunda-feira, 20 de maio de 2019

CÃO QUE MUITO LADRA NÃO MORDE

O anseio pela demarcação do espaço privado é tão comum nos animais “ditos” irracionais, quanto nos seres humanos. Estes garantem seu território com papel passado em cartório, com “unhas e dentes”, e até mesmo com pistolas, se necessário for. Aqueles o defendem com garras, presas e chifres, sem contar eventuais coices, xixis fedorentos, disparos de pelos urticantes (taturanas ou lagartas de fogo) setas pontiagudas (porco-espinho), entre outros aparatos de defesa próprios de cada espécie.

Tive a oportunidade de assistir à luta inglória de um cão vira-latas que tentava, a todo custo, afugentar os invasores e impor-se como “dono do pedaço”. O pobre cão, desconhecedor da história pátria, não sabia que o local escolhido para delimitar seu território já era utilizado, havia séculos, por invasores fortes e temíveis.

Tratava-se nada menos que a Praça da Moeda, em Santiago do Chile, local onde acontece até os dias de hoje a tradicional cerimônia da troca da guarda do palácio do governo, com direito a desfile de pelotões engalanados, à guarda montada e à banda de música.

Uma infinidade de turistas cercava o evento, sob sol abrasador, armados de protetor solar, viseiras, bonés, óculos escuros e máquinas fotográficas.

O cão não se incomodava com os curiosos. Estes se mantinham afastados por cordões de isolamento. Ele não incomodava tampouco com a banda de música. Pelo contrário, parava de latir como se apreciasse cada música tocada. O que lhe exasperava era a cadência de pelotões armados até os dentes, marchando em passos firmes, como se tivessem tomando posse daquele espaço. Após cada música, tão logo a banda parava, começavam as evoluções dos pelotões. O pequeno cão se aproximava bravamente dos guardas, latindo e rosnando, na tentativa de afugentá-los. Alguns turistas riam da audácia daquele animalzinho insignificante diante de tantas armas; outros se sentiam irritados com sua latomia.

Enquadrado no preceito popular de que “cão que muito ladra não morte”, o vira-latas se esforçava ao máximo para proteger seu território dentro das normas sociais, apenas com seu habitual ladrido e eventuais rosnadelas. Os guardas, treinados para se postarem como estátuas e para se movimentarem como títeres, faziam ouvidos moucos.

No meio da multidão, eu torcia para que o cachorro abocanhasse as patas dos cavalos ou as botas dos guardas, enfim, algo que provocasse algum gesto extra, não ensaiado pelos pelotões.

Imaginava com que prazer aqueles guardas fuzilariam o importuno animal, se tivessem autorização
para fazê-lo. Tal fato daria uma boa manchete de primeira página nos jornais. “Cão indefeso fuzilado diante de turistas pela infantaria chilena durante a troca da guarda”. O fato suscitaria certamente uma onda internacional de indignação na mídia, promovida pela Sociedade Protetora dos Animais, e muito desconforto diplomático às autoridades locais. O impertinente e tenaz cãozinho tornar-se-ia quiçá, celebridade internacional, embora tivesse que pagar um preço alto demais pela aventura, ou melhor, pela desventura de ter escolhido aquela praça da “moneda” como moradia.

sexta-feira, 3 de maio de 2019

A GAMELEIRA AMALDIÇOADA




Como foi dito na crônica “O contador de causos”, publicada nesta coluna em 02 de abril de 2016, era usual, no sertão mineiro, a organização de reuniões para audição de literatura oral, principalmente nos finais de semana. Em meados do século passado, Xibiu, um famoso contador de causos, era sempre convidado pelos fazendeiros dos arredores a contar suas lorotas. Formava-se uma pequena plateia que, muitas vezes, atravessava horas sem perceber o fluir do tempo, presa ao fio narrativo.

Esse contador de histórias tinha o dom da eloquência. Associava intuitivamente o volume, a entonação da voz e a mímica à narrativa, de modo a causar comoção. Xibiu sentia-se poderoso ao ter diante de si uma plateia seleta, manipulada a seu bel-prazer. O público, já predisposto, extasiava-se com facilidade, ao sabor das aventuras e dos mistérios. É lamentável que a maioria dessas histórias se tenha dissipado na poeira do esquecimento.

Em minha última ida ao sertão, em 2019, tive o privilégio de ouvir um dos “causos” que ele contava, antes de sua única viagem sem volta, com destino provável, onde deve estar fazendo a alegria dos querubins, serafins e ofanins.

Era uma vez, em uma encruzilhada não muito distante, uma grande Gameleira, debaixo da qual, nenhuma erva brotava. Os habitantes da circunvizinhança diziam que a terra ali era estéril porque aquela árvore era amaldiçoada. Debaixo dela, à meia-noite, os demônios se reuniam para dançar e fazer festa. Diziam também que, se alguém quisesse fazer algum pedido à entidade demoníaca, naquele local e naquele horário, seria prontamente atendido. Ninguém nunca tinha tido o desplante de se aproximar do satânico festim.

Havia nas redondezas um velho apelidado de Papudo ou Zé do Papo, que carregava, com constrangimento, um grande bócio. Um aprendiz de doutor, vindo da cidade grande, disse-lhe que aquela protuberância nada mais era que o aumento da glândula tireoide, ocorrente em regiões montanhosas ou distantes do mar, devido a problemas de absorção e fixação de iodo no organismo. Acrescentou que, para evitar esse e outros tipos de anomalias congênitas, a vigilância sanitária exigia a adição de iodo ao nosso sal cotidiano. Mencionou a possibilidade de uma cirurgia. Isso seria quase impossível. Zé do Papo nunca tinha botado os pés fora do sertão. Desconhecia as gentes e os hábitos estranhos da cidade. Além disso não dispunha de meios pecuniários para tal façanha.

Desacreditava a história da Gameleira, mas, certo dia, cansado de ser motivo de deboches, resolveu tirar a história a limpo. O fato é que o peso das pilhérias pesava mais que o papo. Como se diz no sertão, ele “comprou coragem” durante um bom tempo e, mesmo assim, meio temeroso, lá se foi, em direção à gameleira, em noite de lua nova. De longe avistou claridade, debaixo da árvore e começou a ouvir os sons da noitada demoníaca. Aproximou-se com humildade e pediu, com grande modéstia, que o livrassem daquele incômodo que o acompanhava havia muito tempo. Os demônios se apiedaram do pobre coitado. Num passe de mágica, seu papo apareceu pregado no tronco da árvore. Papudo passou a mão pelo pescoço para se certificar. Mistério!!! Não era simples crendice. Voltou despapado para casa, para espanto geral. A notícia correu por trilhas e veredas, sertão afora. Outro papudo, sabedor do ocorrido, resolveu fazer o mesmo. Porém, diferentemente do primeiro, chegou pisando firme, de nariz em pé, com ares arrogantes, dizendo com altivez, que, como haviam tirado o papo do outro, que tirassem o seu também. Os capetas não gostaram de sua petulância e decidiram dar-lhe a merecida lição: tiraram o papo colado na árvore e o colocaram na cacunda do forasteiro, que voltou descabriado, com um papo na frente e outro atrás.

Moral da história: nem o capeta tolera petulância. Todos devem ser tratados com educação e delicadeza.

Disseram-me que Xibiu narrava a festa e a dança demoníaca com profusão de detalhes, prendendo a atenção de todos com mímica e impostação de voz. Nunca teve acessos a livros, nem ao saber convencional, mas carregava muita sabedoria nos bolsos da vida. Aplicava-se na arte de encantar e de conduzir os ouvintes a universos nunca dantes vislumbrados. Apesar de jamais ter-se deslocado do sertão, era o guia perfeito para grandes viagens míticas.

Nota: A gameleira é considerada sagrada na África, sobretudo em Angola, onde se cultua o orixá Irokô, também conhecido como Tempo. Nos recônditos do Brasil ainda há resquícios dessa crendice. Há rituais e diversos trabalhos de encantamentos feitos ao pé da gameleira branca ou fícus doliaria.

segunda-feira, 15 de abril de 2019

LABAREDAS VORAZES

A catedral de Notre Dame resistiu a batalhas e guerras, durante quase um milênio, mas não resistiu à voracidade das labararedas que abocanhavam tudo que encontravam pela frente. Fiquei em estado de choque ao ver, pela televisão, imagens das chamas. Era algo inimaginável. Já assisti a tantos concertos nessa catedral, já subi tantas vezes até o topo das torres, para apreciar a paisagem, já visitei o “tesouro” (parte reservada às relíquias) inúmeras vezes, já assisti a exames de futuros organistas, no enorme órgão de tubos, datado do século XVII. Quantas vezes apreciei aquelas rosáceas maravilhosas, as gárgulas feitas para o escoamento de água, porém com figuras medonhas e amedrontadoras, para espantar maus espíritos... Não! Não pode ser verdade! Deve ser montagem...pura ficção!

A imagem do monumento em chamas me remeteu ao primeiro e maior deslumbramento que tive diante de uma obra de arte: a fachada iluminada dessa mesma catedral. Em Teoria da Arte o efeito provocado pelo Belo absoluto no espectador se chama “estesia”. Trata-se de uma forte emoção, ou melhor, de uma comoção, acompanhada de tremor, frio na espinha e, às vezes, de vontade de chorar, diante de uma obra de arte: uma espécie de êxtase ou epifania.

Isso aconteceu comigo, na primeira vez que vi Paris, aos vinte anos, ao ser contemplada com uma bolsa
de estudos, pela Embaixada da França. Inexperiente e tímida, oriunda do sertão mineiro, nunca havia entrado em um avião. Não sabia como me comportar em situações desconhecidas, mas tampouco queria demonstrar ignorância. Já havia viajado muito em telas cinematográficas. Tentava então imitar os passageiros dos filmes, em aeroportos e viagens internacionais. Atravessei o oceano temerosa. Não tinha a mínima ideia do que ia encontrar pela frente. Eu falava francês. Menos mal. No aeroporto de Paris, peguei uma “navette”, pequeno ônibus que faz o longo trajeto até à cidade. Depois tomei um táxi e me dirigi ao Fiap (Foyer International d’Accueil de Paris) uma construção moderna, que recebia estudantes estrangeiros, a convite do governo francês. Eu não conhecia vivalma na cidade luz. Na recepção, disseram-me que eu dividiria um grande quarto com outras estudantes estrangeiras, que participariam do mesmo curso, na Universidade de Sorbonne Nouvelle. Excelente notícia. Não queria ficar sozinha. Ao entrar no quarto, percebi que eu era a última a chegar. As outras, já instaladas, estavam de saída. Assim que coloquei a bagagem no chão, minhas futuras colegas me disseram em francês. – “Vamos dar um passeio. Quer vir conosco?” Deixei a bagagem no meio do quarto e saí atrás delas. Estava anoitecendo. Tomamos o metrô na estação Glacière, e, após algumas baldeações, saímos em uma rua enxameada de transeuntes, todos muito apressados, como se estivessem correndo “para tirar o pai da forca”, como se diz no sertão. Fixei bem a fisionomia das companheiras e não desgrudei os olhos delas um segundo sequer. Eu não saberia voltar ao Fiap. Não saberia nem mesmo fazer sozinha as baldeações do metrô. O medo de me perder era tal, que as seguia, no meio da multidão, com os olhos fixos em suas silhuetas.

A um dado momento, ao virar uma esquina, percebi um clarão. Levantei os olhos e estremeci. Chorei
de emoção. Nunca havia visto nada tão esplendoroso, tão monumental. Até hoje, não me canso de apreciar a beleza e a grandiosidade da construção. Dizem que as catedrais góticas, todas elas altíssimas, com muita entrada de luz pelos vitrais, tinham como objetivo mostrar ao fiel sua pequenez diante da grandiosidade do Senhor. Esse estilo arquitetônico primava pela verticalidade da construção, com torres pontiagudas, janelas e imagens alongadas, tudo remetendo ao infinito. Ao se sentir diminuto, o espectador buscava, e ainda busca, uma âncora na fé, na religião.

Mais tarde, as catedrais barrocas tinham objetivo similar. Todos os elementos estéticos visavam a
provocar intensa emoção: volutas, flores, monstros, anjinhos, elementos contorcidos e espirais, jogo de claro-escuro, efeitos ilusórios e de perspectivas... A profusão de elementos decorativos era tamanha que o olhar do espectador se perdia na riqueza de detalhes, no exagero da decoração, e na magnificência do douramento. Tudo isso fazia com que o fiel se sentisse atordoado, sem chão. Naquele momento, onde buscaria um eixo que o sustentasse? Na religião, evidentemente. Assim, os cálculos dos templos não eram apenas matemáticos. Tinham objetivos mais abrangentes.

Lá se foram algumas décadas, e muita água correu no rio Sena, ao lado da Catedral. No entanto, sinto ainda a força do impacto da primeira mirada de Notre Dame. O impacto de hoje foi diferente. Fiquei atônita. Como muito bem se expressou o Presidente Emmanuel Macron, ao se aproximar do incêndio: “Uma parte de nós está queimando”. E digo mais: continuará queimando per omnia saecula saeculorum.