quinta-feira, 18 de agosto de 2016

DESTRONAMENTO RELÂMPAGO DA DITADURA BRASILEIRA

Faço questão de registrar um relato emocionado de uma moradora de Brasília, Raimunda Rodrigues, com mais de 90 anos, que presenciou o enterro de Juscelino Kubitschek e o traslado de seus restos mortais, décadas após, para o Memorial JK.

Segundo ela disse, nunca se viu tamanha comoção pública, durante o período ditatorial. O que mais me impressionou em seu relato, além da manifestação maciça, foi a explosão popular de amor à democracia e de solidariedade, num regime altamente repressivo, que se viu impotente diante da magnitude da manifestação brotada espontaneamente nos quatro cantos do Distrito Federal. Antes porém, de relatar o depoimento baseado em memória presencial de quem viu, ouviu e participou, faz-se mister contextualizar o fato.

A construção de Brasília não foi ideia de Juscelino. Na Constituição de 1891, já estava estabelecido o local onde deveria ser construída a chamada “Novacap” (Nova Capital). Nenhum governante antes dele ousou colocar em prática tão audacioso projeto. 

Brasília foi construída em apenas mil dias. O plano urbanístico ficou a cargo de Lúcio Costa; e o arquitetônico, a cargo de Niemeyer. Os militares, durante a ditadura, tinham sérias restrições ao ex-presidente devido aos gastos exorbitantes para a construção da capital e, sobretudo, devido à guarida que ele deu a um comunista declarado, Oscar Niemayer. 

Em 1964, Juscelino foi cassado pelo governo militar e teve seus direitos políticos suspensos por dez anos. Exilado, viveu em Nova Iorque e depois em Paris.

Vejamos informações extraídas da Internet, sobre o acontecimento:

Assim que recebeu a notícia da morte de Juscelino Kubistchek, na noite do dia 22 de agosto de 1976, a Globo colocou no ar um noticiário extra de três minutos, informando ao público os recentes acontecimentos. A matéria não agradou à Censura Federal, que enviou um recado à redação do Jornal Nacional pedindo que a morte fosse abordada com menos emoção. Além disso, estava proibida a menção ao fato de que JK tivera os direitos políticos cassados pelo governo militar, e também qualquer alusão aos anos de seu mandato presidencial (1956-1961).

Mesmo com as advertências, a TV Globo acompanhou o velório no dia seguinte, com imagens do cortejo, que seguiu para o aeroporto Santos Dumont, de onde o corpo partiria para Brasília. Emocionada, a multidão homenageou JK cantando a música Peixe Vivo, o hino Nacional, o da Independência e o à Bandeira. Mas as imagens não chegaram à emissora a tempo de entrar no JN, por conta do tumulto. Naquela época, a Globo ainda não tinha adotado a tecnologia Eletronic News Gathering (ENG), que permitia o envio de imagem e som direto do local do acontecimento para a emissora: o primeiro uso desse sistema no JN ocorreu apenas em 1977. (Grifo nosso.)

Juscelino Kubitschek de Oliveira morreu em acidente automobilístico, juntamente com seu motorista, perto de Resende, Rio de Janeiro, quando viajava de São Paulo para o Rio de Janeiro, no dia 22 de agosto de 1976.

Apesar do poderio bélico, o governo nada pôde fazer para impedir a força do povo, em acintosas atitudes contra o poder constituído. Foi um evento comandado espontaneamente pela população em massa, para prestar sua última homenagem ao ex-presidente. O regime militar, intimidado pela magnitude da manifestação, não ousou cerceá-la. Ateve-se à manutenção da ordem.

O caixão levado pelo povo
Funcionários públicos e de empresas particulares se autoliberaram para o enterro. Nenhuma chefia teve coragem de impedi-los, porque queria fazer coro aos subordinados, na mesma emoção. A bandeira do Brasil, no Congresso Nacional, foi hasteada, pelos manifestantes, a meio-pau, em sinal de luto. Os governantes ordenaram que fosse reerguida. Em vez de obedecer à ordem, os funcionários foram além: Colocaram todas as bandeiras dos ministérios também a meio-pau.

As escolas suspenderam as aulas; o comércio e as repartições públicas anteciparam o encerramento do expediente; motoristas de coletivos liberaram as catracas, tudo isso sem autorização alguma. Os taxistas transportavam passageiros gratuitamente, para o velório. Todos os automobilistas davam carona a quem quer que estivesse indo em direção à Catedral. Uma solidariedade jamais vista num grande centro urbano.

No Rio, um grande cortejo popular acompanhou o féretro da editora Bloch até o aeroporto Santos Dumont. Multidão ainda maior o aguardava no aeroporto de Brasília, cidade na qual ele queria ser enterrado. O poder público não se fez presente no aeroporto, para a recepção do corpo de JK. O povo se organizou rapidamente, não se sabe como, para recebê-lo com honrarias, em época em que não havia telefone celular, smartphone, nem internet . No traslado do aeroporto de Brasília até a Catedral, centenas de motociclistas, representando os candangos, fizeram a guarda de honra. Todos eles portavam sinal de luto no braço e na moto. Cinco mil veículos acompanharam também o cortejo até a catedral, onde seria celebrada a missa de corpo presente.

Na chegada à Catedral, comoção geral. Até então a esplanada dos Ministérios nunca tinha comportado tanta gente. O povo chorava e, ao mesmo tempo, cantava a música preferida de JK, “O peixe vivo”. Depois todos entoaram “Oh! Minas Gerais” e o Hino Nacional.
O Presidente Geisel não se manifestou. O Presidente do Senado, Petrônio Portela, ao perceber o vulto da comoção pública, sentiu-se no dever de fazer um pronunciamento oficial, no Senado, como representante do governo.

Após a missa, a multidão impediu que o caixão fosse levado para o cemitério em um caminhão do Corpo de Bombeiros. “O povo leva!” -- gritaram milhares de populares. O longo percurso foi feito a pé, com revezamento de ombros. O cortejo começou às 17h00 e terminou depois das 23h. Milhares de pessoas acompanharam o féretro até o cemitério Campo da Esperança, em Brasília. As floriculturas enviaram espontaneamente caminhões abarrotados de coroas de flores. O cruzeiro existente no centro do cemitério ficou repleto de flores.
Essa manifestação popular demonstrou não apenas o apreço ao ex-presidente democrata, mas sobretudo o descontentamento com a ditadura. O povo sentiu que o momento era propício para fazer ouvir sua voz, sem a temível repressão militar. Gritos de “Viva a Democracia!” eram eventualmente ouvidos durante o cortejo.

Raimunda Rodrigues, grande defensora da democracia, estava também presente no momento da exumação e traslado dos restos mortais de Juscelino para o memorial JK. Ela relatou-me pausadamente os fatos, emocionada, como se estivesse revivendo as cenas. Seus olhos se inundavam a cada instante. Para mim, foi uma verdadeira descoberta. Nunca tinha ouvido nada a respeito dessa manifestação popular. Decidi então registrar o fato para que aqueles que, como eu, não tiveram o privilégio de estar presentes, tomem conhecimento desse momento histórico de nosso país.

Viveiro do Silêncio,  11-08-2016

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGE


terça-feira, 26 de julho de 2016

A importância dos potes na civilização

Foto de Jô Drumond.
Veja a foto do meu pote
O Museu Mineiro dispôs de cerca de trinta potes antigos, feito por índios, alisados com sabugos de milho (vêem-se as marcas), para o projeto Potes do Sertão, cujo objetivo é mostrar às novas gerações, a importância cultural dos potes em nosso processo civilizatório, numa época em que não havia água canalizada. Tais potes foram distribuídos durante a Semana Roseana , em Cordisburgo, preferencialmente aos moradores de lá. Como havia mais gente de fora que nativos, acabei conseguindo ser a guardiã de um deles, com papel passado. Cada pote é catalogado e cada guardião é fichado e fotografado com seu pote, para o arquivo virtual do museu. Não pode ser comercializado. Em caso de morte do guardião, tem que haver um registro, deixado por ele, contendo os dados do novo responsável pela peça. Após a cerimônia, houve um cortejo, cada um carregando seu pote, do Museu Guimarães Rosa até à estação ferroviária, onde foi improvisada uma bica d'água. Outro cortejo similar acontecerá em BH, em setembro próximo. Vou deixar meu pote em BH até o próximo cortejo, que sairá do Museu Mineiro e irá até o Museu do Artesanato, passando pela Praça da Liberdade. 

terça-feira, 5 de julho de 2016

VIDAS FLUTUANTES

Jô Drumond

Na Amazônia, uma fração da comunidade manauara flutua em cais de devaneios, ancorada em sonhos de infinitude. Casas residenciais, postos de combustível, oficinas mecânicas, restaurantes, feiras de artesanato e barcos de toda sorte oscilam docemente, sob a inclemência abrasante do sol, sem ferir o espelho d’água.

Parte da população ribeirinha desconhece outro estilo de vida. Suas moradas, amarradas em troncos de árvores, flutuam sobre toras de madeira, ao sabor das cheias e das vazantes. Os moradores, presos a quase nada, mantêm os olhos sedentos de esperança nas lonjuras do horizonte aquoso, onde o sol se afoga a cada poente. No dia-a-dia, desfrutam a malemolência cotidiana sem se submeter aos ditames do relógio; sentem o roçagar da amena brisa local, em contraposição ao intenso calor da cidade de Manaus, às vezes insuportável aos turistas habituados a climas mais brandos.

Acabo de visitar esse universo aquoso, justamente nas cheias de julho, segundo dizem, a melhor época do ano para se deslizar selva adentro pelos meândricos igapós. Apesar da rápida convivência com os habitantes da ribeira, percebi que, malgrado as adversas condições de vida, eles dissipam a tristeza com o vento e se agarram à alegria de viver. Dei-me conta do bom humor contagiante, logo no primeiro contato com o timoneiro.

─Essa embarcação é segura? (perguntei-lhe)
─Claro que sim! (respondeu em tom de galhofa) Ela comporta 80 passageiros, mas está levando 200.

Nosso guia fluvial, de aspecto bonachão, gracejou sobre a ausência de problemas com relação à vizinhança da ribeira. Ao menor atrito, pode-se deslocar a casa de lugar. Mencionou a economia do cafezinho ali preparado com a água do rio Negro, portanto com menos pó. Gabou-se da ausência do IPTÁgua (corruptela de IPTU), e da segurança contra inundações, qualquer que seja o nível das águas.

Ao desembarcarmos no Parque Ecológico Janauary, fomos distribuídos em pequenos barcos para a incursão pela selva inundada. Pilotos-mirins, que deveriam estar distraindo sua meninice nos pátios escolares, eram os responsáveis pelo exótico passeio. Nossas vidas estavam nas mãos de um garoto de 13 anos, que enfrentava o barroquismo anárquico da floresta, brincando de se desviar dos troncos eretos, em águas repletas de piranhas. O barco se enveredava mata adentro, atropelando o silêncio das águas mansas, desbravando trilhas só conhecidas pelas sombras da selva. Nos lagos de vitória-régia1, onde havia congestionamento de barcos de turistas, o garoto deslocava a pequena embarcação com inimaginável destreza, sem colidir com nenhuma outra, e sem danificar as plantas aquáticas.

Durante a vagueação na selva, a cada instante deparávamos com uma surpresa: samaumeiras gigantes2, seringueiras, jacarés-açu3, tartarugas, pássaros, macacos, e o famoso boto cor-de-rosa4, capaz de se transformar num rapaz galanteador e sedutor. Segundo a lenda, ele deixa os rios, enfeitiça as garotas indefesas e volta às águas em forma de boto. Presume-se que tal crendice tenha sido inventada para remendar a honra de meninas púberes e adolescentes. Há quem acredite, na Amazônia, que, crianças oriundas do estupro, do incesto e do aliciamento sejam filhas do boto.

Os visitantes que se enveredam pelos igarapés e pelos igapós, em busca de emoções e de deslumbres, regozijam-se com as eventuais surpresas que a fauna e a flora lhes proporcionam: O turista mais sensível ao Belo, com olhar pesqueiro, busca em cada detalhe a indescritível poesia da vida. Ele se extasia diante da magnificência da flora e dos flamejantes reflexos na água, inebria-se com emanações aromáticas, e aquieta-se ao ouvir, pelas vozes da natureza, a canção do silêncio. A estesia, latente em seu âmago, emerge à flor da pele e, tal qual o poeta Baudelaire, embrenha-se numa floresta de símbolos, em que, ecos, sons e cores se mesclam formando um espaço sagrado.

“La nature est un temple où de vivants piliers
Laissent parfois sortir de confuses paroles;
L’homme y passe à travers des forêts de symboles
Qui l’observent avec des regards familiers»

(do soneto “Correspondances” extraído de As Flores do mal)

Baudelaire vê a natureza como concordia discors (unidade de elementos discordantes). Um belíssimo exemplo dessa harmonia de elementos díspares acontece na própria formação do rio Amazonas, a 18 km de Manaus. Ele se origina do encontro de dois rios com densidade, correnteza, temperatura e cores diferentes. Um curso de águas negras e outro de águas barrentas seguem pari passu, sem se misturar, por mais de 10 km. Trata-se de um fenômeno único no globo terrestre. A formação do rio Amazonas5, no encontro dos rios Solimões e Negro, tombado pelo Iphan, é um dos mais belos espetáculos da natureza.

No magnífico universo hídrico da bacia Amazônica, a densa floresta desvela sua exuberância tropical. Os ribeirinhos, a mercê da transitoriedade das águas e das oscilações climáticas, vivem às margens do nada (que é tudo), compartilhando a dança cíclica do tempo, na antecâmara do infinito.

NOTAS:
Vitória-Régia1: planta aquática típica da Amazônia, cujas folhas planas e arredondadas chegam a 2,5 metros de diâmetro e podem suportar até 40 quilos, desde que o peso seja bem distribuído. A flor da Vitória-régia é solitária e aromática. Só se abre à noite, durante três dias, apresentando uma diferente coloração a cada dia.
Samaumeira2:Trata-se da maior árvore nativa das Américas, que pode atingir 70 metros de altura
Jacaré-açu3: O maior jacaré brasileiro, de corpo negro e cabeça marrom, que pode chegar a 6 metros de  comprimento.
Boto4: o boto é parecido com o golfinho, mas vive em água  doce, tem o bico mais comprido sobre o qual há pelos (vibrissas) com função tátil e direcional. Os golfinhos são acinzentados e vivem em bandos; os botos (pretos, cinzas ou cor-de-rosa) são animais solitários. Devido ao formato fálico do bico e talvez devido à sua solidão, criou-se a lenda do boto cor-de-rosa.
Rio Amazonas5: O encontro das águas foi tombado pelo Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). A proposta de tombamento foi baseada no “caráter de excepcionalidade do fenômeno e em seu alto valor paisagístico”. Tal ato provocou a suspensão imediata do licenciamento ambiental para a construção de um terminal portuário em área próxima, que poderia causar danos ambientais e sociais irreversíveis.

Segundo informações do guia turístico, os dois rios demoram a se misturar devido às diferenças abaixo:

Diferenças
Rio Negro
Rio Solimões
cor
Negra, devido à decomposição vegetal
Barrenta devido a desbarrancamentos
correnteza
2 a 3 km/h
6 a 8 km/h
temperatura
22º
28º
densidade
menor densidade
maior densidade

Encontro das águas do Rio Negro e Solimões
A bacia Amazônica, maior bacia hidrográfica do mundo, tem suas origens nos Andes, com o nome de rio Marañón. Percorre o território brasileiro com o nome de Solimões, agregando uma grande quantidade de afluentes, muitos dos quais navegáveis, até se encontrar com o rio negro. A partir de então se chama rio Amazonas.
  


*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGE