quinta-feira, 19 de maio de 2016

PROCISSÃO DAS ALMAS

Jô Drumond (abril 2016)

Em abril de 2016, fui a Minas com o intuito de assistir à Procissão das Almas, em Mariana.  Por coincidência, a procissão sai de um ponto próximo ao hotel reservado, na Rua das Mercês, próximo à Igreja Nossa Senhora das Mercês. A saída não se dá à meia-noite, como todos dizem, mas pontualmente aos cinco minutos do Sábado de Aleluia. Antes da saída, há uma concentração para o preparo psicológico dos participantes.  Dona Hebe,¹ uma das organizadoras, no centro da aglomeração, falava em voz alta a respeito das lendas da Procissão do Miserere, na época do padroado2  português (a partir de 1456), em que a atual se inspira. Seu objetivo era relembrar a origem e as simbologias da procissão aos veteranos, e ensiná-las aos novatos. Contou as duas  lendas, em que se baseia o cortejo. Falou também sobre a marcha fúnebre, “Um lamento”, de autoria de Aníbal Walter, tocada pela banda durante o cortejo, sobre as cantorias repetitivas, em português, e sobre o Agnus Dei, em latim.
A procissão desceu uma ladeira íngreme, em direção ao centro histórico e percorreu a cidade, parando diante dos diversos cemitérios da cidade, para reverenciar os mortos. Abrindo o cortejo, um tipo de estandarte composto por uma grande cruz, da qual pendia um longo tecido preto, cujas  pontas eram seguradas, nas laterais, por dois participantes. As primeiras “almas” seguravam caveiras  humanas. As demais tinham uma vela acesa na mão esquerda, e um osso humano (fêmur) na direita. Todos usavam túnicas e capuzes brancos, exceto a figura da negra morte, esguia e macérrima, que circulava vestida de preto entre as almas, empunhando sua foice fatal. A organizadora era a única que não usava capuz, mas uma mantilha branca rendada, cobrindo o rosto e os cabelos. Carregava uma espécie de cesto coberto de branco, de onde tirava penas brancas que iam sendo jogadas para o alto e espalhadas pelo caminho. Ouviam-se os sons das matracas3 e as lamúrias das almas penadas, em tons plangentes, como se estivessem sofrendo. Um bumbo compassado dava um ar mais lúgubre. De vez em quando a banda  tocava a Marcha Fúnebre (Requiem Aeternam), em homenagem aos mortos. Tudo muito lúgubre, tétrico, mas interessantíssimo.
As ruas de Mariana estavam apinhadas de gente naquela madrugada. O horário tardio é explicado diferentemente. Há os que dizem que, na Sexta-Feira da Paixão, a partir da meia-noite, as almas pagam suas penas.

...muito se falava sobre seres horrendos a vagar pelas ruas da cidade após a meia-noite da Sexta-Feira da Paixão. Ninguém saía  com medo do que poderia encontrar. Procissões eram realizadas de madrugada. Penitentes se supliciavam, fazendo seus gemidos ecoarem nas noites escuras. Tochas acesas iluminavam as ruas. Havia batida de bastões nas calçadas, correntes eram arrastadas, e os participantes usavam roupas medievais compridas e esvoaçantes. Impressionavam e provocavam medo, regando muitas lendas. Era perigoso não só sair às ruas, mas postar-se à janela (XAVIER, Angela. Tesouros, fantasmas e lendas de Ouro Preto. Ouro Preto: Ed. do autor, 2007, p.209)

Recomendava-se portanto, em tempos idos, não sair de casa, para evitar surpresas desagradáveis. Outros justificam a escolha do horário tardio, dizendo que teria como objetivo não causar conflitos com a Igreja Católica.
            Quanto à razão das fantasmagóricas túnicas, o branco pode simbolizar tanto o absoluto quanto a morte. Sabe-se que tal cor era associada ao luto nos países eslavos,  na Ásia, assim como na corte francesa. Há quem diga que,  devido à precariedade da iluminação pública, o branco destacaria mais o cortejo à luz de archotes e velas.
O interessante é que a cada relato das lendas, algo se modifica, com discretas variantes. As lendas a que tive acesso, sobre a origem desse cortejo (que remonta, salvo engano, ao século XVIII), são variadas. A cada relato elas se modificam. É a velha história de que “quem conta um conto aumenta um ponto”.
Segundo dizem, a Procissão do Miserere não podia ser vista pelos viventes. Todos deviam manter-se recolhidos e de janelas fechadas. Quem a visse morreria.
Vejamos pois, em linhas gerais, as duas lendas em que se baseia a atual procissão de Mariana:

Era uma vez uma senhora muito maledicente chamada Maricota de Todos os Santos, que vivia à janela de sua casa vigiando a vida alheia, para trançar mexericos. Depois de aprontar muita confusão, devido às suas maledicências, no bairro São Gonçalo, mudou-se para a Rua Dom Silvério. Receosa de ser novamente expulsa, só vigiava a rua depois que o sino da Casa da Câmara tocava às 21h, sugerindo que todos se recolhessem. Com calos nos cotovelos, de tanto se debruçar no parapeito da janela, observava o ir e vir dos transeuntes. Em uma Sexta-Feira Santa, depois da meia-noite, percebeu a aproximação de uma procissão. Como era frequentadora assídua da igreja, e como participava de todas as procissões, estranhou o fato de não ter sido informada antecipadamente daquele evento. Observou o cortejo. Todos, de velas na mão,  usavam túnicas bracapuzes. O primeiro da fila segurava uma enorme cruz preta. Ouvia-se o som pausado e fúnebre de um bumbo, matracas, gemidos, gritos lancinantes e a cantoria:
“Reza mais, reza mais, reza mais uma oração; Reza mais, reza mais pra alma que morreu sem confissão”
“Reza mais, reza mais, reza novena e trezena; Reza mais, reza mais pra alma que morreu sem cumprir pena”.
Assustada com a estranheza do evento continuou na janela a observar. Um passante aproximou-se dela, com a vela acesa e pediu-lhe que a guardasse até sua volta. Maricota colocou a vela sobre seu criado mudo e voltou ao posto de observação. Na volta, o participante parou para pegar a vela, mas antes lhe  disse:
“Mulher, amanhã estaremos juntos em outras paragens. Guarde sua língua. A noite é dos mortos”.
Ao entrar em seu quarto, sobre o criado-mudo, ela deparou com um osso humano, mais ou menos com as mesmas dimensões da vela. Temerosa, ao entregar o osso, ouviu do encapuzado, cujo rosto não se via:
“Que isto te sirva de lição. A Procissão das Almas não é para ser vista pelos viventes”.
Maricota  sentiu-se mal e veio a falecer naquele dia.

A outra lenda, que se mescla à primeira, veio à luz por meio de Hebe Maria Rôla Santos,  preservadora do patrimônio cultural de Mariana.

Era uma vez uma senhora que ajudava o padre nos serviços paroquiais. Com a contratação de uma moça recém-formada, para ajudar nas escrituras da paróquia, ela sentiu-se enciumada e começou a espalhar boatos a respeito da novata, dizendo que ela era mulher do padre (mula sem cabeça). Como ninguém acreditava em tal disparate, ela arquitetou um falso flagrante. Pegou os sapatos do padre e colocou-os sob a cama da moça, indiciando que ele os teria esquecido ali após ter dormido com sua auxiliar. Foi um escândalo, na pequena cidade. A moça foi expulsa da casa dos pais, abandonada pelo noivo e foi-se embora, como andarilha. Anos depois retornou maltrapilha, faminta, e acabou morrendo na calçada, sem ter sido socorrida por viva alma. Durante o velório, quando a senhora maledicente se adentrou no recinto, a defunta se sentou no caixão e disse:
“Está aqui entre nós quem me levantou um falso.”
Todos saíram correndo, apavorados. Tal senhora, sentindo-se culpada, procurou então o padre para confessar seu malfeito e recebeu uma penitência inusitada: Ela teria que recolher todas as penas dos quintais de Mariana. Como não havia abatedouro municipal, as pessoas abatiam suas aves em casa. Depois de longo tempo recolhendo-as de casa em casa, a duras penas, pensou ter pago a penitência. No entanto, era apenas o início de sua pena. Agora – disse-lhe o padre - leve todas as penas até o alto do morro do Galego, espere que um vento forte as espalhe. O dia em que você catar a última delas, estará remida de seus pecados.

Em outras palavras: pecado sem remissão. Dizem que até hoje seu fantasma anda por aí, catando as penas espalhadas pelo vento. A cada relato das lendas comporta  discretas variantes. Verdades ou inverdades, o importante é que esse culto aos mortos  mescla folclore, lendas, religião e fé, mantendo viva uma das tradições da mais antiga cidade de Minas Gerais, sua primeira capital.
Vale a “pena” conferir.

NOTAS :

¹ HEBE RÔLA - Hebe Maria Rôla dos Santos, nascida em 1932 (84 anos), professora emérita do Departamento de Letras da UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto)  e preservadora do patrimônio cultural. Faz parte dacoordenação da Procissão das Almas, em Mariana (MG).
² PADROADO - O padroado foi uma negociação da Santa Sé, firmada por  meio de bulas pontifícias, com o objetivo de delegar poderes aos monarcas de Portugal e Espanha no que se refere à administração e organização da Igreja Católica. O rei “padroeiro” arrecadava e geria os proventos oriundos dos dízimos eclesiásticos. Tinha também o dever de construir igrejas, o poder de nomear os párocos  e propor nomes de bispos. Dessa forma, ambos os reinos tinham, ao mesmo tempo, dimensão política, administrativa e religiosa. A Inquisição, por exemplo, funcionava mais como entidade policial que religiosa. No Brasil  o padroado durou até a Proclamação da República.
³ MATRACA - A matraca é um instrumento de percussão constituído por tabuinhas móveis  contendo  um pedaço de ferro. Quando agitadas, produzem uma série de estalidos secos, parecidos  com o disparo de uma metralhadora. É usada na Igreja Católica, na Semana Santa, quando não é permitido o toque de sinos das igrejas, nem de campainha durante atos litúrgicos.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)

Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGE

domingo, 8 de maio de 2016

13º livro de Jô Drumond será lançado dia 11



Dia 11 de maio, de 18:00 às 20:00 horas, na Feira Literária Capixaba.
Local: Fábrica de Ideias, na Av. Vitória 747, em Jucutuquara, Vitória – ES

quinta-feira, 28 de abril de 2016

ATOLEIRO

Jô Drumond

No meu recanto da mata, situado no  Viveiro do Silêncio, ao entardecer de um chuvoso domingo, propício à malemolência, eu lia um bom livro de Joël Dicker, intitulado La vérité sur l’affaire Harry Quebert , ouvindo o ruído da chuva no telhado e o cicios da Mata Atlântica. Enquanto isso, meu marido tirava uma soneca sob um espesso edredom. Aquela noite seria propícia para assistir a um bom filme, no sítio, enrolado num aconchegante cobertor

Surpreendi-me com um chamado pelo walk talkie. Como o serviço de telefonia rural não é muito confiável na região, propusemos esse meio de comunicação aos sitiantes vizinhos, para situações emergenciais ou corriqueiras. Para tal usam-se codinomes: Leão da Montanha, Urso Pardo, Águia Ligeira e Jacaré do Brejo.  Um dos vizinhos (Leão da Montanha), já com a lareira acesa, nos convidava (Águia Ligeira) para uma soirée de queijos e vinhos, em sua mansão, no alto da serra. Evidentemente, o convite foi aceito de bom grado.

Acordei meu marido e, em poucos minutos, estávamos enfrentando a borrasca e uma estrada barrenta, em busca dos prazeres da mesa e de um bom bate-papo com amigos. No meio do caminho, uma árvore caída bloqueava totalmente a passagem. Tínhamos que voltar de ré, numa estrada muito estreita, com espaço para um só veículo, tendo de um lado um barranco e de outro, um lago. A visibilidade, na boca da noite, tornava-se quase nula devido ao temporal. O carro entrou num atoleiro, de onde se recusava a sair, apesar de inúmeras tentativas. Estávamos literalmente “no mato e sem cachorro”, como se diz na roça. Não havia como pedir ajuda. Celular ali, nem pensar! Sempre fora de área. O walk talkie havia ficado em casa. Meu marido me disse para aguardar no carro enquanto ele buscaria ajuda, antes que o breu da noite abocanhasse as réstias de luz no cimo das árvores. Meu pobre herói, saiu a pé, no barro, sob chuva gelada, sem proteção alguma e sem lanterna, sem enxergar onde pisava.

Que situação! E pensar que poucos minutos antes, ele estava a sonhar no embalo da chuva, sob um aconchegante edredom, ao abrigo das intempéries e de cobras peçonhentas. Desliguei o carro e apaguei os faróis para poupar bateria. Enquanto esperava, não havia nada a fazer. Tentei pensar em coisas alegres.  Lembrei-me da piadinha do carro atolado:

Um amigo cruzou com outro, cujo carro estava atolado.

̶  O que houve, perguntou o primeiro?
̶  Meu carro atolou-se, respondeu o segundo.
̶ Não é assim que se diz. O certo é “meu carro se atolou”
̶  Nada disso, você está errado. O certo é “meu carro atolou-se”.
̶  Não meu amigo! Na escola, sempre fui melhor que você em gramática.

O entrevero da colocação pronominal parecia não ter fim. Um passante aparentemente bêbado foi chamado para dar termo à discussão.
.̶  Os dois podem estar certos, disse o terceiro. Se o carro tiver as rodas dianteiras atoladas, ele se atolou; se tiver as traseiras, atolou-se.
̶ As quatro rodas estão atoladas, responderam os querelantes.
̶  Então, meus senhores, ele se atolou-se.

Devia ser noite de lua nova. Não enxergava um palmo diante de meu nariz. Fiquei atenta aos ruídos do entorno.  Depois de algum tempo, comecei a cismar. E se acontecer algum incidente com meu marido no caminho? E se ele não voltar? Se, por exemplo, escorregar, quebrar uma perna e ficar impossibilitado de pedir socorro? Tomei uma resolução: se ele demorasse mais de quarenta minutos, teria que procurá-lo. Que transtorno! Trocar o aconchego do veículo pela caminhada no barro, em noite escura, sob chuva fria, e, o que seria pior, sozinha!  Melhor nem pensar nisso, mas seria inevitável.

Após trinta minutos de espera, avistei uma luzinha tremeluzente vindo em minha direção. Era o Leão da Montanha, a pé, segurando numa das mãos um lampião a gás, e na outra, um guarda-chuva. Pouco depois um carro se aproximou, por trás, trazendo três ajudantes. Como não havia cordas, eles empurravam enquanto eu acelerava. O “desatolamento” foi mais fácil que o previsto. Melhor seria voltar pra casa. A árvore caída poderia ser serrada na manhã seguinte, caso a chuva desse trégua.

O inesperado pode nos pregar uma peça a qualquer momento. Caso pudesse ser previsto, perderia a graça. Deixaria de ser imprevisto. Adeus noitada de queijos e vinhos!

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGE