segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

ASAS QUEBRADAS

Por Jô Drumond

A ampulheta se esvazia
a certeza se enche de dúvidas
meus versos se descompassam
na arritmia do coração
Quanto tempo me resta, doutor?
Como dissipar meu desassossego?
Tenho pressa em descobrir o mundo
prenderei meus anseios dentro do espelho
viajarei na linha sinuosa do horizonte
atravessarei os lindes do imponderável
largarei as amarras do viver
antes que o nada se apodere de meu ser

ARRITMIA

Equilibro-me na fronteira
Entre o tudo e o nada
Agarrada ao corrimão do tempo
Meu coração anda trôpego
Sem ritmo, sem compasso
Minha vida também anda trôpega
Cambaleando entre porquês
Não busco definições nem soluções
Tento apenas prolongar os dias

VENTANIA

Observo a ventania
Recriando nuvens em céu varrido
Espalhando incertezas vida adentro
Tecendo dores em meu peito
Penduro os anseios
Na grimpa do ingazeiro
Encerro os medos
No oco da coragem
Sinto-me forte
Para enfrentar a morte
Nos enleios do agora
Parto mundo afora
Pintando as cores do infinito
E os contornos do nada
É preciso apagar a luz
Para enxergar as trevas



*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) 
Membro de 3 Academias de Letras 
AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

PRECONCEITO

Por Jô Drumond

(Baseado em fato ocorrido no maranhão)
Alba se interessou por um belo rapaz afro-descendente e engatou com ele um namoro sem grandes pretensões. A cada dia descobria novas qualidades no pretendente e cada vez mais se interessava por ele. Sua mãe, bastante preconceituosa, não via aquilo com bons olhos, mas não fazia nenhuma oposição, certa de que se tratava de um namorico passageiro.
Ao perceber que o relacionamento estava ficando sério, com possibilidades de futuros desdobramentos, começou a fazer críticas veladas. Como tempo essas críticas foram se desvelando. No dia em que Alba lhe disse que pretendia se casar, a máscara da futura sogra caiu por terra.
Sem pestanejar, deu-lhe a seguinte resposta:
─ Minha filha, veja bem! Se algum dia eu estiver com um lindo netinho loiro de olhos azuis no colo, e se você chegar com um mulatinho com cabelo pimenta do reino, não pense que vou preterir o filho de sua irmã, pelo seu. Depois não diga que eu não lhe avisei.
Alba decepcionou-se com o preconceito da mãe. Bateu pé, investiu ainda mais no relacionamento e acabou se casando. Os filhos da irmã nasceram loiros de olhos claros, porém desprovidos de beleza, ariscos e chorões. Já seus filhos híbridos, com pele cor de jambo, tinham uma beleza singular, além de grande simpatia, afetividade e muita vivacidade. A avó acabou se apaixonando pelos filhos de Alba. Descobriu que café com leite dá boa mistura. Desde então, aboliu todo e qualquer resquício preconceituoso que algum dia povoara sua mente. Além do mais, tornou-se ardente defensora do hibridismo étnico.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
(AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES

domingo, 28 de setembro de 2014

ESTELIONATO CLERICAL

*Jô Drumond

Há algum tempo, nas pequenas aglomerações e vilarejos espalhados pelo coração do Brasil havia pouca circulação de dinheiro vivo. Parte do comércio funcionava na base da troca de mercadorias. Serviços prestados eram quitados pelo que se tinha para pagar: cachos de bananas, sacos de mantimentos (polvilho, farinha, feijão, arroz, entre outros), galináceos, suínos, bovinos ou terrenos, dependendo da vultuosidade do negócio.
Jesuíno Badão, morador da zona rural, deslocou-se até o lugarejo mais próximo, para contrair núpcias com sua amada Filomena, bem mais velha que ele, mas ainda bem “sacudida”. Levou consigo uma pequena manada vacas leiteiras, para oferecer à paróquia, em troca do ministério sacramental. O pároco não poderia recusar tão vultosa doação, bem acima dos honorários normais dos ministros de Deus. Daria para cobrir a tão desejada reforma da igrejinha, já quase ruindo pela mão do tempo.
A primeira providência do pároco foi o preenchimento de uma ficha com os dados dos nubentes: ambos lavradores, brasileiros, domiciliados na Fazenda do Angico, perto da encruzilhada da Tronqueira.
̶  Nome completo, por favor!
̶  Jesuíno Badão dos Reis.
̶  Idade?
̶  23 anos
̶  O nome da noiva, por favor!
̶  Jesuína Badão dos Reis
̶   Idade?
̶  40 anos
̶   Vocês são parentes?
̶   Sim sinhô, seu padre, ela é minha mãe.
̶   O quê? Sua mãe? Você está louco? Isso é um sacrilégio!
̶   O que é sacrilégio?
̶   É um pecado muito grave! Gravíssimo! Não haverá casamento algum. Podem voltar pra casa.
Cabisbaixo, Jesuíno coçou a cabeça timidamente e disse:
̶  Oh Mãe! Vamo tê que levá de vorta a manada de vaca que nois trouxe pra igreja.
Ao ouvir o “abre-te sésamo”, o pároco decidiu voltar atrás. Porém, não ficaria bem aceitar a doação em troca de um sacrilégio. Pediu aos noivos que pacientassem um pouco. Foi à sacristia e voltou com um livro grosso e pesado. Colocou-o sobre a mesa, folheou-o atentamente, como se estivesse procurando algo. Os dois analfabetos, recolhidos à ignorância, só faziam observar. Nunca haviam imaginado um livro com tantas letras. Dentro de uma batina preta, grande crucifixo no peito, o entendido em letradices parecia-lhes o dono da verdade. A palavra escrita era lei. Após meio quarto de hora, o veredicto final:
̶  Ah! Finalmente, achei o que estava procurando. Jesuíno, aqui diz o seguinte: pelas leis naturais, você não pode se casar com outro homem. Portanto, você não pode ser casar com seu pai, mas com sua mãe, tudo indica que sim! E não carece de testemunhas.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
(AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES