quinta-feira, 14 de novembro de 2013

OROZIMBO, O GUARDIÃO PRESTIMOSO

Por: Jô Drumond
Quando vou a Belo Horizonte, hospedo-me ao lado do Palácio da Liberdade, com direito ao desfrute das sinuosidades arquitetônicas de Niemeyer, no edifício que leva seu nome. Plantado num local privilegiado das alterosas, o edifício de acentuada leveza e rara beleza foi construído pelo famoso arquiteto logo após o complexo arquitetônico da Pampulha. Suas arrojadas linhas modernas contrastam fortemente com o estilo eclético dos antigos edifícios do entorno, que dão ares parisienses à Praça da Liberdade. Imponente, repleto de curvas e contracurvas, belo em todos os ângulos, o edifício não tem fachada definida. Sua presença é constante nos manuais internacionais de arquitetura moderna. As vidraças, de parede inteira, são protegidas por marquises estreitas e próximas umas das outras, de modo a impedir o acesso direto do sol, e a proporcionar claridade e ventilação adequadas a todos os apartamentos.
Foi dentro dessa obra de arte que Tancredo Neves, falecido entre a eleição e a posse à presidência da República, havia plantado seu domicílio. Foi também dentro dessa mesma obra que minha irmã Francisca, minha anfitriã habitual, amarrou seu viver.
Há mais de duas décadas, transferi meu domicílio de Belo Horizonte para Vitória (ES), cidade linda e acolhedora, onde fui muito bem recebida. Desde então continuo frequentando as alterosas para rever parentes e amigos.
Até pouco tempo, sempre que eu me aproximava da entrada do edifício Niemeyer, um porteiro ancião, arqueado pelo peso da idade, tão logo me avistava pela porta envidraçada, levantava-se com solicitude, ajudava-me a carregar a bagagem e fazia questão absoluta de abrir a porta do elevador e de apertar o botão do andar ao qual eu me dirigia. Alegre e prestativo, mantinha um dedinho de prosa com todos os que chegavam ou saiam. Nunca me esquecerei de seu nome, nada usual: Orozimbo. Perguntei-lhe um dia por que não se aposentava. Disse-me que já era aposentado havia tempos, mas que só pararia de trabalhar depois de morto. O vai e vem da portaria era sua energia vital. Não abria mão daquele posto para ninguém, a não ser que fosse demitido. Esse risco não existia.  Todos os moradores tinham por ele grande apreço e afeição. Além da indubitável competência e solicitude no trabalho, ocupava o posto de guardião da entrada, desde a inauguração do prédio, em meados do século XX. Era como se ele fizesse parte integrante do patrimônio do edifício Niemeyer.
Responsável por numerosa prole, trabalhava inicialmente doze horas por dia, das seis da noite às seis da manhã, a fim de avolumar o vencimento, no final do mês. Depois de idoso, passou a trabalhar no turno da tarde, das 14h00 às 22h00. Sacolejava num lotação por cerca de sessenta minutos em direção ao bairro Palmares.
Certo dia, chegando a minha hospedagem habitual, um novo porteiro me recebeu. Não abriu a porta do elevador, não apertou o botão, nem se ofereceu para aliviar o peso da bagagem. Aliás, nem se deu o trabalho de se levantar. Apenas apertou um botão, diante de si, para meu acesso ao hall de entrada. Tomei o elevador, apreensiva pelo mau presságio. O que teria acontecido com o Sr. Orozimbo?
Lamentavelmente, aconteceu o inevitável. Fiquei pesarosa como se tivesse perdido alguém da família. Dei-me conta de que não sabia quase nada sobre ele. Lastimei a perda, assim como o fato de não lhe ter dado a devida atenção. A má notícia suscitou questionamentos existenciais e revisão de valores. Para que tanta correria?  Para chegar aonde? Mais cedo ou mais tarde, os ponteiros de cada um param no quadrante da existência, sem delongas. Consternada, e com a consciência um tanto pesada pela omissão, quis saber mais sobre aquela figura que, de certa forma, fez parte de minha história de vida. Obtive seu número de telefone e disquei. Uma voz feminina respondeu. Identifiquei-me, indaguei a respeito de seu passamento... conversa vai, conversa vem, acabei me inteirando de seus passatempos favoritos e das minúcias do cotidiano. Adorava ser chamado de vovô por todas as crianças do bairro. Plantava cana para ter a satisfação de distribuí-la à criançada da rua. Aproveitava caixas de fósforos vazias para fazer carrinhos, e usava palhas de milho para fazer bonequinhas. Não aprendeu a ler, mas fez questão de que seus sete filhos frequentassem a escola. Estes, em idade escolar, usavam tamancos e pastas de madeira, feitos artesanalmente pelas hábeis mãos de Orozimbo (medida de economia, considerando-se o parco salário de porteiro). Depois de velho, ocupava seus momentos ociosos fazendo móveis em miniatura para as crianças, assim como peneiras e balaios de bambu para os adultos.
A casa onde sua família ainda reside foi erguida em adobe, por suas próprias mãos, aos domingos, únicos dias de folga. Sempre gostou de cultivar o pomar e a horta, de tocar violão e de aquietar o espírito tragando um cheiroso pito de palha. Não era religioso. Fez do trabalho sua oração. Segundo sua filha, ele se pôs a chorar, tão logo foi informado, pouco antes de morrer, aos oitenta anos, que não tinha condições físicas de continuar trabalhando. Corroído pelo câncer, teve que abandonar a carcaça e partir para outra dimensão. Deve estar hoje lá no alto, fazendo brinquedinhos para legiões de querubins.
Pessoas simples, como Sr. Orozimbo, às vezes tecem uma rica história de vida, que pode passar despercebida pelos que o cercam, todos muito apressados, correndo inutilmente atrás dos ponteiros dos relógios.

 *Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do 
Instituto Histórico (IHGES)

domingo, 3 de novembro de 2013

O CAMINHO SE FAZ AO CAMINHAR

Por: Jô Drummond

(Texto feito no dia de finados, em homenagem aos vivos)

(Texto inspirado na imagem de Luiz Clementino,
publicada no livro de fotos Pelos Sertões, pg.132)
Parado no meio da estrada e da vida, sem alegria nem tristeza, o matuto cinquentão não sabe se vai ou se fica. Já percorreu muito chão e ainda há a percorrer. Chapéu e pito de palha, olhar perdido a vaguear na lerdeza do tempo, põe-se a matutar. Qualquer lugar é bom pra morrer, mas desde que se chega ao mundo há um tempo a percorrer, sem astúcia de atalhos. Voltar já não pode; o passado já passou. Ficar não lhe apraz; não há o que fazer. Só lhe resta seguir adiante, mas seguir para onde? A estrada não leva a parte alguma. Da vida que leva, só levará os andrajos para ocultar a carcaça. Dessarte, o melhor é seguir em frente, caminhar, caminhar e caminhar... até aonde a vista não alcança; o importante não é chegar; é prosseguir a andança sem desassossego; é vaguear pelas vírgulas da estrada sem parar nos pontos de interrogação e sem cisma de ponto final;

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do 
Instituto Histórico (IHGES)


segunda-feira, 14 de outubro de 2013

O SEMINARISTA APAIXONADO

Um seminarista foi passar férias com seus familiares, em Floriano, no interior do Piauí. Ao Folhear um álbum de família, encantou-se com a foto de uma adolescente lindíssima. Disseram-lhe que se tratava da rainha dos estudantes, moça prendada e recatada, afilhada de seus pais.
*Jô Drumond

Desde então, aquela imagem não lhe saía do pensamento. Entrava ano, saía ano, em todas as férias escolares ele ia a Floriano, pegava o álbum e contemplava aquele protótipo da beleza feminina. A quase obsessão pela retratada pôs em cheque sua vocação sacerdotal. Mesmo sem conhecê-la pessoalmente, passou a se inteirar de sua vida. Soube que ela havia ido estudar em Teresina. 

Na capital, certamente estaria rodeada de admiradores. Começou a sentir ciúmes e a encarar o seminário como empecilho. Já não tinha mais certeza da vocação pelo sacerdócio. Passou a amadurecer a ideia de timonear sua própria vida. Nas férias seguintes, soube que ela havia prestado vestibular no Rio de janeiro. 

Aquela notícia ribombou como petardo em seus ouvidos. Rio era por demais distante! Sentia-se prestes a perder para sempre aquela que, a seu ver, era sua predestinada. Abandonou o seminário e voltou a Floriano para comunicar sua decisão à família. Afanou a foto da moça bonita do álbum e seguiu para o Rio, com o intuito de conhecê-la ao vivo e em cores. Num ensolarado domingo, ele aterrissou na casa de tio Jeremias, irmão de seu pai, onde ela estava provisoriamente hospedada. Alegou que tentaria ganhar a vida no Sudeste e pediu acolhida por uns tempos, até se estabelecer definitivamente. Antes mesmo de se instalar, percorreu os cômodos da casa em vão, na esperança de vê-la. Não ousou perguntar nada aos tios. Talvez ela tivesse se mudado, ou voltado para o Piauí. O melhor seria aguardar até que o assunto viesse à baila. Na manhã seguinte, estava ele tomando seu desjejum, quando ela surgiu linda, faces rosadas, tez quase translúcida... uma verdadeira fada. 

O sobressalto foi recíproco. Ela se assustou com aquela figura por demais sinistra, saída de alguma revista em quadrinhos ou de algum filme de gângster. Tio Jeremias apressou-se em fazer as apresentações. Ela, com uma pasta na mão, saudou-o apressadamente e dirigiu-se à porta da rua, sem tomar seu desjejum, dizendo-se atrasada. Meio desapontado, ele ficou no aguardo de outra oportunidade. Nos dias subsequentes, percebeu que ela sempre se esquivava, talvez por timidez ─ pensava ele ─ talvez por repulsa. Olhou-se no espelho. Sua aparência não era das mais agradáveis. Barba por fazer, cabelos crescidos, calça boca de sino, certamente já fora de moda, cinturão largo, possivelmente também démodé. Todas as tentativas de aproximação falharam. Ela não demonstrava nenhum interesse por sua pessoa. Ao contrário, evitava-o nitidamente.
Pensou no seminário e na insensatez do que havia feito. Abominou sua ingenuidade e seu nefelibatismo, como diria seu professor de literatura. Sentiu-se fora da realidade circundante. A vida fora do seminário não era bem o que imaginava, mormente em cidade grande.

Observou-se longamente no espelho. Um sujeito mal-ajambrado como ele jamais poderia despertar interesse em quem quer que fosse. Dirigiu-se a uma barbearia e solicitou serviço completo: barba, bigode e cabelo. Ao primeiro encontro após o desbaste capilar, percebeu a surpresa da donzela. Pela primeira vez ela o observou e o olhou nos olhos. Aproveitando o ensejo, ele lhe solicitou ajuda.
─ Em que posso ajudá-lo?
─ Passei longos anos no seminário. Estou completamente desatualizado, deslocado...como se diz, um peixe fora dágua. Desconheço as vestimentas e os calçados da moda, assim como os hábitos da juventude carioca. Você me ajudaria a escolher algumas roupas?
─ Sim, claro que sim! Após um “banho de loja”, posso lhe apresentar alguns amigos. Quando cheguei ao Rio, eu me senti também meio deslocada.
─ Bola dentro, Miguelito! ─ pensou ele ─ o gelo já foi quebrado! O estratagema funcionou.

No dia seguinte, Miguel e Angélica foram a um shopping center. Ele deixou que ela escolhesse todo seu novo guarda-roupa e acessórios: meias, cintos, carteira, calçados, óculos de sol, boné de praia...
A cada dia, maiores afinidades entre ambos, trocas de olhares, sorrisos, passeios à beira-mar, visitas ao Corcovado, ao Pão de Açúcar, ao Gabinete Real Português, à Biblioteca Nacional, aos museus... Angélica acabou se esquecendo de apresentar seus amigos ao novo amigo. Ele, por sua vez, não queria conhecer ninguém. Ao contrário, preferia que ficassem a sós para desfrutar a maciez daquela voz, a doçura daquele sorriso, as flagrâncias emanadas dos longos cabelos... Miguel, totalmente envolvido pelo charme e pela meiguice de Angélica, acabou fazendo com que sua predestinada o seguisse vida afora.

Conheci-os cerca de quarenta anos depois, no desjejum do hotel Rio Parnaíba, em Floriano, no ensejo do aniversário de cem anos de Tia Joaninha, irmã de minha sogra. Ao saber que eu era aprendiz de escritora, Angélica apressou-se em me contar, em poucos minutos, sua história de amor, na esperança de que um dia eu a colocasse no papel. 

Já se passou algum tempo e, evidentemente, devo ter-me esquecido de detalhes importantes, mas aí está o arcabouço do que me foi relatado. Parabéns a ambos pela bela família que constituíram, pelo companheirismo e pela eterna alegria de viver.
*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do 
Instituto Histórico (IHGES)