quarta-feira, 18 de setembro de 2013

A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER AO LONGO DOS SÉCULOS

Jô Drumond
Desde priscas eras, em tempos belicosos, os invasores dizimavam os homens, vendiam as crianças e estupravam as mulheres. Estas, muitas vezes, eram distribuídas entre os beligerantes como espólio. Ao longo dos séculos, o costume perdurou como incentivo ao alistamento e como indenização de guerra. Ficava bem menos oneroso aos exércitos permitir que soldados e mercenários estuprassem ilimitadamente e escolhessem as mais belas cativas como escravas sexuais do que pagar-lhes pelo trabalho. Na conquista das Américas, as nativas não ficaram imunes. Apesar da oposição da Igreja, os conquistadores mantiveram essa tradição. Em países muçulmanos, os estupros em massa ainda funcionam como arma para a redução da população inimiga, pois ninguém gostaria de se casar com uma moça violentada.

Percebe-se que o processo civilizatório caminha a passos lerdos, ao longo dos séculos. A submissão das mulheres sempre existiu, sobretudo no Oriente. Culturas falocratas primam por agressões contra o sexo feminino. Na vida familiar, além de ser encarregada dos filhos e das tarefas domésticas, a mulher se presta a “saco de pancadas”, para descarrego das pressões masculinas. Seu corpo muitas vezes é utilizado pelo marido, sem consentimento, para outro tipo de descarrego. Na rua o desrespeito é ainda mais grave. As estatísticas mostram uma altíssima incidência de estupros em países do Oriente, mesmo em tempos de paz. É como se o “bicho-homem” ficasse sempre à espreita de uma fêmea para se lançar sobre seu cangote e dela se servir a seu bel-prazer. Há culturas nas quais a mulher que sofre abuso sexual se torna motivo de desonra para a família, sendo, por conseguinte, expulsa de casa ou morta pela própria família.

E a honra da família do estuprador? Possivelmente permanece incólume, pois o delito recai sempre sobre a “tentação”, provável resquício do mito da maçã, no paraíso de Adão.

Em pleno século XXI, ao abrir a revista Isto é de 17 de julho de 2013 (ano 37 – Nº 2278), o leitor depara com um artigo deveras chocante, intitulado “Estupros como arma de guerra”. Ao abordar as recentes manifestações no Egito, geradas pelo conflito político-religioso que culminou com o golpe militar e a queda de Mursi, a jornalista Ana Paula Padrão focaliza a violência sexual: “No momento em que se forma uma roda de homens em torno de uma mulher, o destino dela está traçado, e nada pode impedir a humilhação e a violência do sexo não consentido”.

Segundo consta, no Cairo, entre 28 de junho e 03 de julho deste ano, 180 mulheres foram atacadas na rua. Cenas chocantes não são mostradas em jornais televisivos, mas em redes sociais, por internautas que registram os fatos em câmeras de telefones celulares. Dados estatísticos impressionantes foram levantados pela jornalista: No Cairo, onde cerca de 80 ou 90% da população é muçulmana, 98% das turistas sofrem algum tipo de abuso sexual; 83% das egípcias relatam já ter passado por algum episódio de violência sexual. Segundo ela, o mais alarmante, é que 62% dos egípcios admitem molestar as mulheres e, ao mesmo tempo, as acusam de se vestir de maneira provocativa, ou seja, sem o véu islâmico. O objetivo do véu é ocultar aquilo que poderia ser considerado sexualmente atraente para os homens (cabelos, orelhas, garganta ou a própria face). O khimar é uma espécie de lenço para a cabeça. O nigab cobre toda a face, deixando uma pequena fresta para os olhos. Alguns entrevistados tiveram a audácia de admitir que participam dos protestos políticos de rua com o intuito de apalpar as mulheres e de tentar violentá-las.

Sabe-se que ainda hoje, em certas culturas na África, na Península Ibérica e em zonas da Ásia, se adota a mutilação genital feminina, que consiste em amputar o clitóris e até mesmo os lábios vaginais, para evitar que algum dia elas possam fruir as benesses de uma relação sexual. O prazer é reservado aos homens. O corpo da mulher é utilizado para a procriação, sempre sob a tutela masculina a quem deve absoluta submissão.

Durante as recentes manifestações públicas no Cairo, houve também agressões em que as vítimas tiveram a genitália cortada a navalhadas. Na opinião de Ana Paula, não se trata de simples abuso sexual, mas da tentativa de abafar a cidadania da mulher, de fazer calar sua voz, de impedir que ela se manifeste.

O jornal capixaba ES Hoje, de 02 de agosto de 2013, traz como manchete de primeira página, em letras garrafais: “Violência sexual é caso de urgência e emergência”. Na página 5, anuncia-se que a Presidente Dilma Rousseff não atendeu às críticas das Igrejas e sancionou, sem nenhum veto, o projeto que estabelece garantias à mulher vítima de violência sexual, incluindo a oferta da pílula de emergência (ou do dia seguinte), para evitar a gravidez em caso de estupro, assim como informação sobre os direitos ao aborto em caso de gravidez. A lei prevê a redução do número de mortes maternas por abortos clandestinos, assim como tratamento psicológico às vítimas.

A meu ver, grupos que labutam a favor dos direitos humanos e da proteção aos mais fracos terão muita luta pela frente, não apenas no Egito. Os jornais diários aqui e mundo afora mostram claramente que a violência dentro e fora do âmbito familiar não se restringe à mulher, mas abarca também crianças e idosos.

A lei do mais forte, uma espécie de atavismo bestial do ser humano, insiste em continuar vigorando. Apesar da revolução industrial, da revolução tecnológica e de todos os avanços nas diversas áreas do conhecimento humano, há quem insista em manter primitivos traços de selvageria que denigrem a raça humana.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do 
Instituto Histórico (IHGES)

terça-feira, 17 de setembro de 2013

MARIA JOÃO

“Ser feliz sem motivo é a mais autêntica forma de felicidade.”
Carlos Drummond de Andrade

Jô Drumond
Nas terras da fazenda Morro Feio, juntamente com Anatildes, percorri de carro alguns quilômetros, num milharal a sumir de vista, à procura de espigas granadas para o almoço. Plantios feitos em diferentes épocas vicejavam na irregular magnitude da lavoura. Em cada eito, o milharal tinha diferente porte. Procurávamos espigas com cabelos escuros e ressecados. As louras e ruivas, de cabelos brilhantes e sedosos, ainda eram muito tenras para o consumo. Num determinado ponto, quebrava-se a homogeneidade do cultivo, por uma sucessão de estacas, como se vê nos tomatais. Aproximamo-nos para verificar do que se tratava. Era um extenso pepinal, cujas ramas verdolengas, estacadas, exibiam belas flores amarelas e pepinos de dimensões variadas.
Avistamos um camponês, encarregado do eito. Paramos o carro e nos aproximamos, para perguntar onde encontraríamos espigas de milho ao ponto. O ancião, de cerca de 70 ou 80 anos, com a pele toda enrugada e tostada pelo sol, usava roupas largas e sujas de terra, botina marrom e chapéu de abas. Veio todo solícito, pronto para um dedo de prosa, como bom mineiro. Um sorriso contido estampava-se em seu rosto, na tentativa de demonstrar contentamento sem revelar as falhas dentárias.  Era um senhor magro e de baixa estatura, com voz esganiçada. Ao ouvi-lo, pensei que se tratasse de uma mulher, mas reparei que, sob a camiseta, não se viam proeminências de seios femininos. Fiquei em dúvida se o chamava de senhor ou senhora. Na dúvida, preferi evitar qualquer constrangimento, mas Anatildes foi logo perguntando:
─ Como o senhor se chama?
─ Maria, mas aqui na lavoura sou João.
Era patente que a aparência franzina não condizia com o necessário vigor para o pesado trabalho de capina. Aquela mulher aparentava ser minha avó, mas era mais jovem que eu. Percebendo minha surpresa, ao saber sua idade, alegou:
─ Tá me achando véia, né? É por causa do cigarro e das pingaiadas.
  Demorei alguns segundos para entender que “pingaiada” se referia a excesso de pinga. Tive pena daquele fiapo de gente, pela condição sub-humana de vida: trabalho árduo, má remuneração, alcoolismo, subnutrição e, certamente, más acomodações. No entanto, uma coisa me intrigou. Dona Maria (ou Seu João) parecia-me alegre, feliz e de bem com a vida.

Lembrei-me de outra Maria, minha ex-colega de faculdade. Oriunda de uma família de alto poder aquisitivo, podia se dar o luxo de ter tudo que quisesse, mas encontrava-se sempre depressiva. Nos finais de semana, às vezes dirigia-se a praias mais populares ou vagava por bairros periféricos, para tentar descobrir como e por que os pobres eram felizes. Parava em botecos sujos e mal frequentados, escolhia uma mesa próxima a um grupo que ria a não mais poder, por qualquer motivo fútil. Observava-os longamente, na esperança de aprender a ser feliz, sem atentar para o fato de que a felicidade depende mais do que se tem na cabeça do que no bolso. Não sei se minha ex-colega conseguiu encontrar a alegria de viver. Quem sabe, algum dia, eu possa apresentar Maria alegre à Maria triste? Talvez, com alguns dedos de prosa, “esta” consiga descobrir “naquela” a magia do bem-viver.
*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do 
Instituto Histórico (IHGES)

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

O CANTO DA SERIEMA

* Jô Drumond

Nas décadas finais do segundo milênio, nas férias e feriados, eu frequentava Guimarânia (terra dos Guimarães), local escolhido por meus pais para viver seus últimos anos e para curtir a paz eterna. Trata-se de uma pacata cidadezinha interiorana, incrustrada na cratera de um vulcão há muito extinto, no Alto Paranaíba (MG). Até os dias atuais, de qualquer ponto da cidade, avista-se a vegetação que delimita o início e o fim de cada rua. O que sempre me atraia nessa cidade era a segurança de ir e vir, diferentemente dos grandes centros urbanos. Minha mãe jamais trancava a porta de entrada. Alegava que, se alguém da família passasse pela cidade, poderia entrar e dormir, sem acordar os demais. Devido à facilidade de acesso, sua casa era pouso frequente de jovens (netos, sobrinhos, primos, amigos) vindos de grandes noitadas das diversas cidades da região: Coromandel, Abadia dos Dourados, Carmo do Paranaíba, Patrocínio, Lagoa Formosa, Patos de Minas, entre outras. Alguns deles preferiam pernoitar em Guimarânia e saborear, ao amanhecer, o delicioso pão de queijo quentinho, de Dona Tunica, acompanhado de forte café antirressaca. A cada final de semana ela tinha novas surpresas. Ao se levantar, às vezes encontrava todos os quartos ocupados, assim como sofás e tudo que pudesse se oferecer como leito aos jovens passantes vindos de bailes, de festas de casamento ou de aniversário. A janela do quarto do casal, que dava para a rua, vivia escancarada, mesmo nas frias noites de inverno. Ela alegava gostar de casa arejada. Não havia grades, nem muro. Bastava subir num friso constante na parede externa e se firmar no parapeito para  ver o interior da alcova. No entanto isso jamais acontecia. Tampouco nenhum estranho jamais entrara sem ser convidado. Nunca nada foi roubado, nem sequer uma flor. Minhas filhas, quando crianças, oriundas da capital, se regozijavam com a liberdade de brincar na rua sem a vigilância dos adultos.
Nos dias de hoje, a cidade continua a mesma em termos arquitetônicos. Para os forasteiros, aparentemente nada mudou, mas, para os habitantes, a quietude de antes não existe mais. Há poucos dias, em abril de 2013, vi, no noticiário televisivo, filmagens de um confronto entre policiais e bandidos, num assalto à única agência bancária da cidade. O tiroteio, com fuzis e metralhadoras em pleno logradouro público, resultou na morte de um cliente do bar, situado ao lado da agência bancária, assim como em ferimentos à bala no proprietário do bar.
Por coincidência, na mesma semana, tive que enfrentar mil quilômetros, para as exéquias de meu irmão Zezé, em Patos de Minas. Aproveitei o ensejo para matar as saudades de Guimarânia.  Percebi então que a população local anda assustada com a onda de crimes cometidos, na grande maioria, por forasteiros, que surgem do nada e desaparecem deixando rastros de violência.
Hospedei-me na casa de minha irmã e madrinha Anatildes, moradora local há mais de 50 anos. Demonstrei interesse em visitar sua fazenda, situada a dez km da cidade, onde eu gostava de passar as férias escolares, desde a infância. Tenho muita nostalgia das temporadas no cerrado do Brasil central: banhos de rio, passeios a cavalo, caneca de leite ao pé da vaca, o pingue-pongue diário, o pomar repleto de mangas, nas férias de verão, e salpicado de goiabas, laranjas e mexericas, nas férias de inverno... Sugeri, em vão, que restaurasse o lindo e centenário casarão, para que pudéssemos voltar a usufruir daquele recanto. Ela alegou que atualmente a região está muito visada por malfeitores. Nem mesmo os pobres colonos, que pouco têm a oferecer aos larápios, querem residir na zona rural, devido à da onda de violência. Durante o trajeto, relatou-me casos estarrecedores ocorridos nos últimos dias, após o assalto ao banco.
Dentro da cidade, bandidos encapuzados invadiram uma casa. Enquanto dois deles seguravam uma senhora, um terceiro, com uma garrafa de álcool, ateava fogo em seu filho de 12 anos. A mãe, apavorada e impotente, assistiu à cena e ouviu os gritos de pavor da criança.
Houve também um assalto, numa fazenda próxima a Morro Feio, onde moram apenas um rapaz e seu pai, já idoso. Segundo ela, os dois moradores estavam acabando o labor diário na feitura do tradicional queijo de Minas. O filho, ao pegar um balde dágua para lavar o piso da casinha de queijos deparou com três homens encapuzados e armados (provavelmente os mesmos que atearam fogo ao menino). Sua primeira reação, ao ver as armas apontadas contra si, foi de jogar a água do balde sobre os bandidos. Imediatamente, como resposta, recebeu três tiros à queima-roupa. Estendido no chão, foi chutado diversas vezes, à espera de alguma reação. O corpo permanecia inerte. Com a certeza do serviço concluído, um dos malfeitores perguntou ao chefe o que faria com o velho. Recebeu como resposta que o deixasse em paz, pois o pobre diabo mal se equilibrava sobre as próprias pernas. Em seguida, os três abandonaram o recinto e entraram na sede da fazenda para escolher o butim daquela empreitada. Nisso, o filho, que se havia fingido de morto, disse ao pai que se escondesse sob as palhas do paiol. O rapaz, mesmo perdendo muito sangue, conseguiu se arrastar até uma casa de colonos, próxima ao local, para pedir socorro. Os vizinhos levaram-no a um hospital e acionaram a polícia, enquanto o pai permanecia sob monturos de palha que lhe pinicavam todo o corpo.
Numa outra fazenda próxima, três idosos foram cruelmente judiados por larápios, pelo fato de não disporem de nada de grande valia para lhes oferecer.
Os relatos foram interrompidos ao chegarmos à sede da fazenda. Encontramos a casa arrombada. Nada fora roubado porque, como prevenção, só restam ali antigos móveis, por demais pesados. Desolada, constatei que jamais poderei passar férias na fazenda Morro Feio. Como dormir em paz, sem proteção policial, sem aparato eletrônico de segurança, sem cercas elétricas ou armas?
Na volta à cidade, consternada pelo que vi e ouvi, tive subitamente a alegria de presenciar algo lindo de se ver e de se ouvir: o canto de três seriemas que se postavam ao lado da estrada de terra. Paramos o carro e desligamos o motor para melhor apreciar. Alternadamente, como se estivessem se comunicando, elas cantavam diferentemente umas das outras. Talvez fosse o ritual de sedução para o acasalamento. Eu não me lembrava mais do melancólico canto da seriema. Aquela melodiosa cadência, associada ao suave roçagar da brisa seca do planalto central e o cheiro de mato verde arrebataram-me.
  Fechei os olhos e viajei no tempo. Transportei-me à época em que catava gabirobas, apanhava mangabas e jatobás no campo; em que conhecia as vacas pelos nomes e brincava com seus bezerrinhos; em que cavalgava no lombo de Baim, em que apreciava os banhos de rio, com direito a saltos em poços fundos e deslizamentos corredeiras abaixo. Mantinha-me atenta aos cacarejos de galinhas poedeiras. Ao primeiro alarde, enveredava mato adentro à procura de novas ninhadas, guiada pelo som alvissareiro que soava aos meus ouvidos como se a ave estivesse anunciando: “botei, botei, botei um ovo!!! botei, botei, botei, um ovo!!! Eu tinha que ser ágil para encontrar o ninho antes do término da cacarejança.
Minhas filhas, criadas em grandes centros urbanos, não usufruíram da magia do universo campestre. Meus descendentes, filhos da era digital, navegarão por universos não menos interessantes. As mudanças, salutares ou não, se fazem necessárias em sintonia com o momento e com as circunstâncias. O importante é desfrutar da magia do viver.  Os alemães usam o termo Zeitgeist, e os franceses a locução air du temps, para expressar o modus vivendi em determinado tempo e espaço. Ainda não se encontrou, em português, uma tradução ideal, que abarque todo o significado de tal expressão. A tradução mais usual é “espírito do tempo”. Tal “espírito” abrange os novos ares espaciotemporais da civilização, nos quais se incluem as concepções estéticas, políticas, sociais, morais, filosóficas, econômicas e científicas, entre outras. Os conceitos, seja  estéticos, seja morais ou religiosos, vão mudando com o passar do tempo. Por
  conseguinte, algo relevante numa determinada época torna-se irrelevante em outras, e vice-versa.
Voltando às reminiscências iniciais: Guimarânia, a cidadezinha interiorana gravada em minha memória, continua ocupando o mesmo espaço geográfico, mas o Zeitgeist  a distingue totalmente do que foi em décadas passadas e do que será em décadas futuras. Todavia o canto da seriema continua o mesmo.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do 
Instituto Histórico (IHGES)