segunda-feira, 5 de agosto de 2013

PÉROLAS AOS PORCOS

Jô Drumond

Grande apreciador de vinhos raros, o francês François de la Cancoillote, colecionava milhares de litros de vinho em sua extensa adega, no subsolo do palacete onde residia. Algumas garrafas, alvo da cobiça de enólogos, eram verdadeiras preciosidades. 

Durante a ocupação nazista, na segunda Grande Guerra, na iminência de ter sua residência invadida e tomada por soldados alemães, ele providenciou a inundação da adega. Todas as garrafas garimpadas durante décadas em vinícolas e no comércio especializado ficaram submersas. Não permitiria que os tradicionais beberrões de cerveja profanassem suas raridades de estimação, guardadas com tanto desvelo. Se quisessem beber, que tomassem água, de preferência envenenada. Seu vinho não se prestaria ao desfrute de soldados incapazes de degustá-los. Não daria pérolas aos porcos.

A temida previsão aconteceu. O palacete foi confiscado. Sua família, habituada à amplidão dos cômodos, ao requinte da decoração e à mesa farta, teve que se aboletar juntamente com famílias desconhecidas, em exíguos espaços, e que se alimentar com parca ração nauseabunda. Os belicosos ocupantes da mansão não deram atenção à inundação do porão. Tinham questões mais importantes a tratar.

Ao final da guerra, a família Cancoillote recuperou seu palacete e, juntamente com ele, sua dignidade. Todos os cômodos encontravam-se em estado lastimável. Enquanto mulher e filhos vistoriavam os estragos e lamentavam a imundície, François desceu mais que depressa ao subsolo. Seu tesouro continuava resguardado sob milhares de litros cúbicos de água. O escoamento foi providenciado. As rolhas pareciam intactas. François abriu uma garrafa e teve a hedonística sensação de degustar o néctar dos deuses. Que ideia magnífica, a minha ─ pensou ele ─ nada melhor do que água para manter a temperatura e conservar o vinho. Após o momento de euforia, uma desolação. Todas as garrafas haviam perdido os rótulos. Como identificar a safra e a procedência de cada uma? Pas possible! Jamais conseguiria comercializar seu produto, se o quisesse. Pas de problème! O destino do precioso líquido já estava definido. 

Regaria os repastos dos Cancoillotte,  enquanto vida tivessem. Como bom francês, François não concebia refeição sem vinho. Pouco a pouco, de taça em taça, foi dilapidando seu tesouro. A cada garrafa aberta, a renovada alegria de estar em seus domínios, cercado pela família, e o regozijo de se sentir, de certa forma, vingado dos indesejáveis intrusos.

                                                                                                      

*Jô Drumond
(Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)

terça-feira, 16 de julho de 2013

A VISITA DO PAPA E A MIGRAÇÃO RELIGIOSA

Jô Drumond
A vinda do sumo pontífice em julho de 2013 ao Brasil deverá redespertar a fé nos católicos relapsos e incrementar princípios religiosos na promissora juventude engajada nas Comunidades Eclesiais de Base (CEB). Ultimamente houve um significativo aumento de CEBs e, por conseguinte, uma efetiva prestação de serviços comunitários junto à população carente. Espera-se muito do recém-ungido Francisco, que se autodenomina “O papa do fim do mundo”. Ele se mostra mais aberto que seus antecessores em face de assuntos polêmicos. Para arrebanhar ovelhas desgarradas, terá que agir com muita diplomacia na abordagem de temas delicados tais como pedofilia dentro do clero, celibato clerical, ordenação feminina, união homo afetiva, contracepção, entre outros.
Segundo o IBGE, entre 2000 e 2010, dois milhões e meio de jovens dissidentes da igreja católica, migraram para igrejas evangélicas ou deixaram de ter religião. Segundo pesquisa de mobilidade religiosa feita pelo Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (Ceris), e publicada pela revista Veja (ano 39 nº 27), nas últimas décadas, a Igreja Católica brasileira vem perdendo milhões de fieis. A grande migração do catolicismo para o protestantismo é assaz intrigante.  Segundo consta, as igrejas pentecostais e neopentecostais cujo objetivo é o de encontrar a felicidade aqui e agora foram incrementadas pelos novos líderes evangélicos com técnicas de autoajuda. Conforme estudo feito pela Fundação Getúlio Vargas, em poucos anos, milhões de brasileiros aderiram a essas correntes evangélicas, que representam hoje o grupo que mais cresce no Brasil.
Papa Francisco
Para cada ramificação há um diferente perfil de pastor. Nas diversas correntes, o tempo de preparo do pastor está inversamente proporcional ao volume de ovelhas arrebanhadas. Isso é deveras preocupante. A título de comparação, na Igreja Católica, a formação de um padre inclui, pelo menos, dois diplomas de graduação: um em teologia e outro na área de ciências humanas, num processo demorado, de cerca de 10 anos.
Dados extraídos da matéria intitulada “Os novos pastores” mostram que entre os evangélicos históricos, originários da reforma seiscentista, (Igreja luterana, presbiteriana, metodista e batista) a formação de um pastor dura, no mínimo, cerca de 5 anos. Além da graduação em teologia, o aspirante passa por um estágio preparatório de um ano, sob a supervisão de um ministro. Há, nessas igrejas, grande incidência de pastores com Mestrado e Doutorado.
 Nas correntes pentecostais, surgidas no século passado (Assembleia de Deus, Congregação Cristã no Brasil e Deus é Amor), a formação dura cerca de 3 ou 4 anos; os pastores têm curso de teologia, mas não necessariamente de nível superior.
Já nas correntes que mais crescem atualmente, as neopentecostais, surgidas em 1970  (Universal do Reino de Deus, Renascer em Cristo, Internacional da Graça de Deus e Sara Nossa Terra), a formação dura de 6 meses a 2 anos. Ela pode ser feita por meio de cursos práticos, ministrados na própria igreja, voltados para a mídia eletrônica. Esses cursos dão primazia à oratória, a técnicas de apresentação em rádio e televisão, ao gerenciamento financeiro de templos, à liderança e até mesmo à etiqueta. O grande crescimento do rebanho exige rapidez na formação dos pastores e ocasiona um sério problema. Há igrejas que se veem na contingência de agilizar o processo e, por conseguinte, de reduzir o tempo na preparação de novos líderes.
Segundo consta, atualmente, certos fatores, como o sucesso da doutrina, as facilidades de comunicação com os fiéis e a eficiência na gestão das igrejas favorecem tais migrações.   O discurso atual de muitas igrejas é mais voltado para o pragmatismo, para o racionalismo e para a pró-atividade do fiel, do que para o sobrenatural. Isso talvez explique a evasão daqueles que optam por algo mais em sintonia com os novos tempos. Destarte, conclui-se que, postulações retrógradas, quaisquer que sejam, prognosticam o esvaziamento progressivo dos templos. Com o engajamento social do novo papado, espera-se que novos ares mudem o rumo dessas estatísticas.

Jô Drumond
(Josina Nunes Drumond)

Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)

terça-feira, 9 de julho de 2013

14 DE JULHO E A VOZ DO POVO

(14 de julho de 1789: o fato histórico na França e as atuais manifestações no Brasil) 
Jô Drumond
  Nos quatro cantos do França comemora-se a queda da Bastilha, na data de 14 de julho. Tal feriado nacional para os franceses corresponde ao nosso sete de setembro, mas não se trata apenas de um evento cívico, com tradicionais desfiles escolares e militares. Quatorze de julho é dia de festa genuinamente popular. Todos saem às ruas para se divertir com folguedos, música e muita dança nas praças públicas de todas as cidades do país.
A queda da antiga prisão política chamada 
Bastille, uma fortaleza plantada no coração de Paris (símbolo da arbitrariedade), é mais que um acontecimento histórico: é um fato simbólico. Representa a abolição da onipotência real.
O clero e a nobreza tiveram que se juntar ao Terceiro Estado, que lutava para limitar os poderes do rei Luís XVI e para consolidar uma Constituição. A população em geral encontrava-se insatisfeita com o poder dominante, devido à crise profundamente marcada pela fome, pela miséria, pela dificuldade de abastecimento, pela estagnação industrial e pelo desemprego. Por isso, a nova classe ascendente e revolucionária, a burguesia, encontrou campo fértil para inflamar as multidões. Com a pretensão de derrubar o absolutismo e o regime feudal, os revolucionários mantinham-se vigilantes contra a ameaça de complô da aristocracia. Nas semanas que se seguiram à queda da Bastilha, cidades e aldeias do interior se armaram, tomadas pelo medo de uma repressão em massa, da parte dos aristocratas. Castelos foram atacados. Documentos, nos quais estavam inscritos os direitos feudais, foram queimados. Conseguiu-se assim que a Assembleia Nacional proclamasse solenemente a abolição oficial do feudalismo, em 04 de agosto. Duas semanas depois, foi votada a Déclaration des Droits de l’Homme et du citoyen (Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão), contendo as bases do novo regime, em 17 artigos. Constituições de diversos países, inclusive a brasileira, se baseiam nesse texto aprovado em 26 de agosto de 1789. O artigo XI é um alerta contra a censura aos meios de comunicação e, por conseguinte, contra a criação de todo e qualquer mecanismo que possa calar a voz do povo. “A livre comunicação do pensamento e das opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem; todo cidadão pode, portanto falar, escrever, imprimir livremente, desde que não haja abuso dessa liberdade, nos casos determinados pela lei.” Nos conturbados tempos atuais, em que manifestações públicas pipocam por todo o Brasil, vale lembrar ainda dois artigos que se aplicam ao momento atual. Artigo XV: “A sociedade tem o direito de solicitar a prestação de contas a todo agente público de sua administração”. Artigo XII: “A garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita de uma força pública; esta força é, portanto para o bem de todos e não para a utilidade particular daqueles a quem ela é confiada”. 
Jô Drumond 
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL e AFESL) 
Membro do Inst. Hist. e Geográfico do ES (IHGES)