Um fato inusitado chocou a
opinião pública, há algum tempo, em Vitória (ES). Uma avó atravessava a ponte
Florentino Avidos, na faixa de pedestres, de mãos dadas com seu netinho de
cinco anos. Um malfeitor, de cerca de 35 anos, surgiu repentinamente, tomou a
criança da avó e a jogou no mar. Um engraxate, de passagem para o trabalho,
presenciou a cena. Ao se dar conta do desvario do meliante, jogou por terra a
caixa de engraxate, a carteira, o celular, o relógio, e, em questão de segundos,
se jogou na água para tentar salvar a criança. Êxito total. O bom samaritano
virou celebridade da noite para o dia. Sua foto saiu estampada na primeira
página dos jornais locais. Como prêmio pela intrepidez, ganhou um curso de
primeiros socorros, salvo engano, oferecido pelo Corpo de Bombeiros. O
malfeitor foi retido no local pelos transeuntes, e imobilizado até a chegada da
polícia.
Relatos extraído dos jornais
locais, na época
Relato
da avó: "Foi um momento desesperador. Pensei em
pular, mas não sei nadar. Comecei a gritar e do nada apareceu esse rapaz,
que eu não conheço. Ele pulou e salvou o meu neto. Quando meu neto
afundou, pensei que nunca mais iria vê-lo. Não tenho nem palavras para
agradecer. Ele foi maravilhoso. Ainda bem que existem pessoas como ele."
Relato do salvador: "Só vi quando ele suspendeu
a criança e a jogou dentro da água. A avó ficou desesperada. Eu não pensei em
mais nada, a não ser em pular para poder salvar o garoto. Só pensei em
ajudar. Era a única coisa que eu podia fazer. Na hora, pensei também em minha
filha, de um ano e quatro meses.”
Relato do malfeitor: "Eu passei na
ponte e de repente eu peguei o menino e joguei dentro da água. Não tenho
explicação para isso, estou com a cabeça ruim."
Esse fato em
que o “anjo bom” sobrepuja o “anjo mal”, nos remete à polêmica polarização existente desde os tempos pré-socráticos. Parmênides (530-460 a.C.)
distinguia as qualidades positivas (o ser) como luz, e as negativas (o não ser)
como obscuridade. Seu método consistia em estabelecer uma oposição, de modo que
o mundo empírico se cindia em duas esferas, sendo uma a negação da outra. Essas
polaridades, como Yin-Yang e outras mais existem também nitidamente no
cristianismo como bem/mal, virtude/pecado, céu/inferno...
Seu
contemporâneo Heráclito (540-470 a.C.) tinha outra visão completamente díspar. As
antinomias belo/feio, fácil/difícil, grande/pequeno, branco/preto, alto/baixo,
passado/futuro... para ele não são contrárias e sim complementares. O “ser” e o
“não ser” estão contidos um no outro, em constante transformação. É dele o
axioma de que não se pode banhar duas vezes no mesmo rio devido ao constante
fluir das águas. A seu ver, nada é firme; tudo está em constante mutação.
A
nítida distinção parmenidiana conhecida como “mal da polarização” foi
amplamente rejeitada por pensadores que reiteraram o caráter relativo dos
opostos: o mel pode ser, ao mesmo tempo, doce, para a maioria, e amargo para os
que sofrem de icterícia. “Isto” e “aquilo” são interdependentes. Troca-se a
preposição pelo verbo: "isto" é "aquilo".
Faço
coro com esses pensadores e corroboro com o mote reiterativo “tudo é e não é”
contido ao longo do romance Grande sertão: veredas, de nosso mestre
Guimarães Rosa.
A meu ver, o Bem e o Mal
coexistem dentro e fora do ser humano. É inútil almejar céu e inferno, ambos
metafóricos, para o post mortem.
Em vida, passamos ora por um, ora por outro, segundo as circunstâncias,
sempre na expectativa positiva de que a luz ofusque as trevas.
No caso da ponte, como foi
dito, o “anjo do bem” sobrepujou o “anjo do mal”, mas isso nem sempre acontece
no dia a dia. O audaz engraxate ganhou “celebridade relâmpago” e caiu novamente
no anonimato. No entanto, devido à sua boa ação, se imortalizou na memória dos
capixabas.
(Ponte Florentino Avidos, conhecida como Cinco Pontes, composta de 5 vãos, liga a Ilha de Vitória ao Continente. Um sexto vão, à parte, liga Vitória e Ilha do Príncipe. Fabricada em aço (um raro exemplar nacional), foi construída na Alemanha, no início do século passado. Hoje é um marco do patrimônio histórico e ambiental urbano do Espírito Santo.)
Jô Drumond