domingo, 7 de abril de 2019

VIOLÊNCIA NO AMBIENTE ESTUDANTIL

MOMENTO EXATO DO ATENTADO EM SUZANO
Notícias aterrorizantes agitaram o meio estudantil no mês de março de 2019. Em Suzano, região metropolitana de São Paulo, dois homens encapuzados atacaram, a tiros, a Escola Professor Raul Brasil. Mataram oito, feriram 11 e se mataram.

Em Minas Gerais, alertas preocupantes circularam nas redes sociais. Um aluno, reprovado no sistema de cotas, ameaçava metralhar professores, estudantes e funcionários da UFMG. Instalou-se um clima de tensão na Universidade e aumentou-se a segurança dentro do campus.

No Rio Grande do Sul, descobriu-se troca de mensagens de um suposto grupo de extermínio, que planejava estuprar e matar estudantes brancas que se relacionavam com negros, na Universidade. Um deles chegou a sugerir que começassem pelo Campus do Vale da Universidade, ao qual a PM não tem acesso e onde os seguranças seriam menos preparados. Uma festa estudantil, que aconteceria nesse Campus, foi cancelada, por precaução.

No primeiro caso, o ataque foi feito de surpresa; no segundo, houve ameaça via e-mail; no terceiro, a troca de mensagens foi detectada na rede.

Uma pergunta fica no ar. Qual seria o objetivo desses malfeitores? Político? Religioso? Simples subversão à ordem social? Desejo de celebridade? No caso do RS, em uma das mensagens consta o seguinte “você vai entrar para a história do nosso estado”. Tal grupo não poderia planejar uma maneira honrosa de entrar para a história, sem prejudicar quem quer que seja?

Essas recentes notícias ligadas à violência no ambiente estudantil remeteram-me à minha primeira experiência como professora, décadas atrás, interrompida abruptamente por uma ameaça de morte por parte do pai de um aluno.

Não guardo boas lembranças de minha fracassada entrada para o mercado de trabalho, aos 18 anos, recém-diplomada pela Escola Normal de Patos de Minas, onde havia passado os três últimos anos de estudos com intensa preparação didática, metodológica, psicológica e com estágios pedagógicos. As “normalistas”, como éramos chamadas, atuavam nas quatro séries iniciantes do Ensino Fundamental, chamadas, na época, de Curso Primário. Logo após a festa de formatura, mudei-me, com minha família para Belo Horizonte. Em 69, cheia de idealismo e de disposição para começar a alfabetização de pimpolhos, assumi uma classe, na periferia da capital mineira. Morava no Alto Sion, bairro nobre situado no extremo oposto do local de trabalho. Fazia, de lotação, um trajeto de 30 a 40 minutos até a área central. Atravessava o centro a pé para pegar outro coletivo. Após quase uma hora de sacolejos, parava no ponto final de um bairro periférico e subia, a pé, um longo morro, ainda sem habitações, em direção a uma casinha pequenina, transformada em escola. A casa indiciava pobreza absoluta, assim como a aparência dos alunos.

Não havia instalações sanitárias. Foi construído, no quintal, um pequeno cômodo sobre uma fossa, com piso de madeira, tendo um orifício ao centro, para as necessidades. Esse WC improvisado se chamava “casinha”. O cheiro era insuportável. Para entrar naquele fétido cubículo, o usuário tinha que pedir licença às moscas, que infestavam o ambiente bosteiro.

Fui brindada com uma turma muito especial. Tão especial que estava repetindo o primeiro ano pela quinta vez. O corpo docente não tinha nenhum preparo para atendimento a alunos especiais. Decidiu-se então que eles repetiriam a primeira série ad aeternum.

Como a classe a mim destinada era pequena, foi instalada no menor cômodo da casa, uma antiga cozinha, sem janelas, com apenas uma báscula, no alto de uma das paredes, insuficiente para ventilação. Os alunos tinham um cheiro nauseabundo de urina velha. Não se davam o luxo de ter uniforme escolar. Iam para a escola com a mesma roupa com que dormiam e em que faziam o pipi noturno. Não adiantava insistir que se lavassem e se trocassem diariamente.

Eles tinham diferentes níveis de deficiência mental. Tive que jogar meu idealismo de alfabetização para o alto e encarar a realidade. Preparava muito material didático, visando mais ao lado lúdico que ao pedagógico. O objetivo, no caso, seria passar o tempo de forma agradável e proveitosa. As crianças não tinham noção do certo/errado. Eu tinha que ficar atenta o tempo todo. Lembro-me de que, na época, não se usava apontador de lápis. Todos levavam de casa uma lâmina de barbear, que era chamada pelo nome da marca: Gilette. Com elas apontavam os lápis e, eventualmente, agrediam os colegas. Nos primeiros dias de aula, um menino deu um grande talhe no braço do que estava sentado a seu lado. Eu o repreendi, com energia, mas em momento algum o toquei. No dia seguinte, durante a aula, alguém veio me advertir de que não saísse da sala porque o pai do aluno ofendido estava do lado de fora, armado, à minha espera, para me matar. Disseram-me isso calmamente, como se fosse algo trivial. Do alto dos meus inexperientes dezoito anos, fiquei perplexa. Nunca me havia imaginado em uma situação daquelas. Permaneci entre quatro paredes, sem saber o que fazer. Em um dado momento, o plantonista teve se afastar para resolver alguma necessidade básica, talvez para beber ou comer algo. Naquele instante, aconselharam-me a para botar o pé na estrada. Saí receosa, olhando para os lados, certificando-me de que não havia ninguém me seguindo. Desci a ladeira deserta quase voando. Nunca mais botei os pés naquele lugar fétido. Desisti da vida de normalista e entrei para a faculdade.

Após o término da graduação em Letras, minha primeira experiência como professora não foi tampouco auspiciosa. Dava aulas em um grande colégio noturno, em um bairro afastado de Belo Horizonte. As instalações eram ótimas, mas o material humano deixava a desejar. No final do primeiro semestre, o diretor me fez uma proposta incorreta. Queria que eu aumentasse as notas de um rapaz, para que ele não se submetesse às provas finais. Tal aluno pretendia se mudar para a Bahia antes do final do semestre e queria ser aprovado sem provas. Como se tratava de um péssimo aluno, recusei prontamente a solicitação. Caberia a ele, como diretor e portanto superior a mim, alterar as notas, se fizesse questão de ajudar ao aluno. Felizmente, ele teve a hombridade de não ousar fazer isso.

No dia seguinte, ao sair da sala, durante um intervalo, alguns adolescentes cercaram-me, dizendo que iam fazer minha proteção. Disse-lhes que não precisava de proteção alguma, mas quis saber o que se passava. Contaram-me que aquele que queria ser aprovado indevidamente andava espalhando, no colégio, que ia me brindar com uma sessão de porradas para que eu deixasse de ser inflexível. Fiquei encabulada com aquilo, principalmente porque eu era extremamente vulnerável. Saía do colégio à noite, sozinha, sempre no mesmo horário, para pegar o coletivo de volta para casa. Era presa fácil.

No mesmo dia, rodeada pelo grupinho de guarda-costas, ao me aproximar da cantina, dei de cara com o grandão que andava me ameaçando. Num ímpeto de “cara de pau”, fingindo coragem (graças à escolta), parei diante dele, olhei para cima (ele era bem mais alto) e lhe perguntei alto e bom tom. É você que quer me espancar? Pois pode começar. O rapaz ficou branco e pasmado, sem saber o que fazer, nem o que dizer. Não disse nada. Ficou desarmado, com minha ousadia. Qualquer coisa que acontecesse comigo, doravante, ele seria o principal suspeito. Segui o rumo da sala de aula, continuei meu trabalho até o final do semestre e ponto final. Estava encerrada minha função de professora de ensino fundamental e médio.

Anos depois, como monitora do Mestrado em Letras, fui convidada a dar aulas na Universidade Federal do Espírito Santo. Ofereceram-me uma turma de Literatura Francesa, outra de Língua Francesa e uma terceira de produção escrita em Língua Portuguesa. Cada uma tinha cerca de 30 alunos. Minhas aulas eram sempre muito interativas. Seria impossível trabalhar sem conhecer o nome de cada um.

Pois bem. No final do terceiro mês do semestre letivo, que durava apenas 4 meses (de março a junho), apareceu em sala de aula uma moça muito bem apessoada e cheia de poses, dizendo-me.

- Professora, sou “fulana de tal”. Quero saber quantas faltas eu tenho.

- Você tem todas - Respondi-lhe calmamente.

- Como assim? Eu sempre estou por aqui!

- Pode ser, mas não em minha sala de aula. É a primeira vez que a vejo. Certamente já perdeu o semestre por frequência.

- Mas que absurdo! Não vou aceitar uma coisa dessas! Se estiver pensando que vai me reprovar, está muito enganada!

- Eu não reprovo ninguém, respondi-lhe. É o próprio aluno que se reprova, caso não consiga média ou frequência mínima.

Ela saiu esbravejando, gesticulando e me ameaçando... passou algum tempo no corredor tentando fazer um levante contra a injustiça (que jamais existiu) da professora.

Considerando tudo o que foi exposto, gostaria para responder às perguntas que faço a mim mesma, mas não disponho de dados estatísticos.

Os três casos citados inicialmente, ocorridos em março de 2019, seriam eventuais ou frequentes em nosso país?

Essas três experiências desagradáveis pelas quais passei, em épocas e lugares diferentes, seriam um denominador comum do ambiente escolar no Brasil?

Na era virtual, a violência é a mesma de antes, apenas mais evidenciada pelos canais de comunicação, ou está realmente mais ostensiva?

Seja como for, nos dias atuais não se respeita o professor, nem o ambiente estudantil, como antes. Há certa tensão no ar escolar.

sábado, 23 de março de 2019

O SILÊNCIO DOS MORTOS


Na foto acima, uma vista parcial do cemitério de Guimarânia
Sempre que vou à Guimarânia (MG), faço uma visita imprescindível, imposta por mim mesma, ao túmulo dos meus pais. Quedo-me ali, absorta, às vezes chorosa, distante do mundo dos viventes, a relembrar flashes da convivência familiar de tempos idos. Soube, por meio de um residente local, que sou a única, da grande família, que jamais deixou de reservar um tempinho para essa volta ao passado, em homenagem aos que já se foram. Pais, avós e grande parte de meus antepassados repousam eternamente na cidade dos Guimarães, tronco familiar português do qual descendemos.

Em uma manhã domingueira, dirigi-me sozinha ao cemitério, que é bem afastado da cidade. Encontrei-o trancado. Um passante me informou que, exceto em caso de funeral, ele se mantém fechado aos domingos, dias santos e feriados. Se eu quisesse entrar, teria que ir até à residência do guardião dos mortos. Deu-me o nome dele e uma referência residencial.

Encontrei o endereço com facilidade. O guardião não se encontrava, mas sua esposa atendeu-me com muita solicitude, cafezinho e pão de queijo. Em cidade pequena, as pessoas são mais receptivas e hospitaleiras. Disse-lhe que gostaria de visitar o túmulo de meus pais antes de voltar para Belo Horizonte, de onde embarcaria para Vitória (ES). Enquanto degustava o “cafezim quentim”, ela se afastou e voltou com uma grande chave na mão. A chave do reino de Hades. Eu teria que entrar lá sozinha? Estremeci. Esse ambiente me assombra. Sempre mantive distância de cemitérios. A única exceção era essa visita, já tradicional, em Guimarânia. Não podia recusar a oferta. Peguei a chave e entrei no carro, indecisa. Que direção tomar? Seria melhor chamar alguém para me acompanhar. Ao mesmo tempo, achava desnecessário. Minha mãe sempre dizia que se deve temer os vivos, não os mortos. Esses são inofensivos.

Entrada do cemitério de Guimarânia

Diante do grande portão, parei, meio temerosa. Passei minha infância a ouvir casos de almas penadas e de assombrações, no sertão de Minas, sob a bruxuleante luz de lamparinas. Hoje, não acredito mais nisso, mas, naquele momento, as fantasmagorias infantis afloram. Chave na mão, diante do gradil, titubeei. Entrar ou voltar? Eis a questão. Resolvi enfrentar meus fantasmas. O que encontrei de mais arrepiante foi o pesado silêncio dos mortos, calcado em pedras. Um calafrio paralisou-me. Eu era ali uma intrusa. Único vivente a espreitar a morte. Por entre túmulos vaguei e divaguei. A branda brisa dos ciprestes quebrava, eventualmente, o silente sono dos mortos.

Ante a tumba de meus pais quedei-me melancólica. Lembranças de toda uma vida fluíam sem cessar: no tear, minha mãe tecia colchas e sonhos, a nós nunca revelados. Coloridos ou não, seus sonhos se dissiparam no vão da vida e do tempo. Em sua lápide, uma foto esvaecida, um vazio maior que a vida. Meu pai plantou sua história na fazenda da Charneca. No fio de sua foice, muita capoeira foi-se. Sua voz de trovão ainda soa em meus ouvidos. Sua chama se apagou, mas seu sangue continua circulando em minhas veias.

Oh! Como me lembro do engenho de cana, da doçura da caiana, dos bois de canga atrelados, girando sem destino, sem cessar. E da garapa jorrando, adoçando meu olhar. Mergulhada em infindos devaneios, palmilhei os recônditos do passado. Naquela brumosa manhã de Guimarânia, diante da tumba, o tempo parou. Como arrancar meus entes queridos daquele nada absoluto, de onde jamais voltariam? A mãe-terra, companheira de seus passos vida adentro, vida afora, se lhes ofereceu como leito derradeiro.

Uma rajada de vento e o funéreo silvo dos ciprestes tiraram-me de uma espécie de torpor. Com o olhar, fiz uma varredura do entorno. Era por demais soturno. Resolvi voltar ao mundo dos vivos.

terça-feira, 19 de março de 2019

UMA GRANDE IDEIA


(Homenagem de Jô Drumond à Professora Raimunda Rodrigues, falecida recentemente)

Poucas pessoas sabem que, graças ao desmaio de uma franzina garotinha durante a aula, em 1948, no Piauí, e graças à brilhante ideia de sua professora, institucionalizou-se a merenda escolar, benfeitoria que vigora até os dias de hoje em todo o território brasileiro.

Ideias grandiosas podem surgir a qualquer momento, em quaisquer circunstâncias, até mesmo nas mais adversas. Nada melhor do que uma boa ideia, como se diz popularmente, na “hora certa e no lugar certo”, ou seja, com condições de ser executada. É o caso da merenda escolar, simples sonho de uma educadora, que acabou alimentando várias gerações de crianças, e que foi responsável pelo salto qualitativo e quantitativo da educação neste país, sobretudo nas classes menos favorecidas. A educação ganhou em qualidade, visto que a criança bem alimentada apresenta melhores condições de rendimento na aprendizagem; ganhou também em quantidade, pelo fato de que famílias miseráveis passaram a enviar suas crianças à escola para lhes garantir pelo menos uma refeição diária.

Tudo começou em 1948, em Teresina, quando a jovem e idealista professora Raimunda Rodrigues começou a alfabetizar uma turma de 85 alunos. Além da classe numerosa, a sala de aula não dispunha de infraestrutura; apenas 12 carteiras duplas para instalar os pequerruchos. Como eram subnutridos e magricelas, os alunos do 1º ano “A” apertavam-se nas carteiras, 5 em cada uma. De vez em quando um deles caia, devido à exiguidade do espaço. Outros eram instalados no degrau do estrado do professor, e os demais distribuídos nas largas janelas. Além do desconforto, a professora tinha que ensinar sem elevar o tom de voz, para não perturbar a classe já alfabetizada do 1º ano “B”, de outra professora, com quem compartilhava o mesmo espaço, sem divisórias.

Certo dia uma garotinha subnutrida caiu desmaiada durante a aula. Após a reanimação da criança, Raimunda perguntou-lhe se havia se alimentado antes de ir à escola. A aluna lhe disse que havia tomado um copo de água com sal. A professora soube então que, como não havia nenhum alimento em casa, e como a mãe não queria que a filha saísse em jejum, deu-lhe tal paliativo. Naquele instante, um insight iluminou sua mente. O de alimentar as crianças na própria escola. A sugestão foi acatada pela direção escolar e pelos demais professores. Começaram, em mutirão, a angariar alimentos junto aos comerciantes locais, que nunca se recusavam a doar algo. As famílias dos alunos, entusiasmadas com a novidade, dispuseram-se a participar da execução do projeto. Mães se reuniam e se revezavam para o preparo da merenda escolar. A diretora, única pessoa do estabelecimento possuidora de um automóvel, transportava as cozinheiras e os alimentos angariados.

A ideia da merenda escolar poderia ter nascido e morrido no bairro Barrocão, de Teresina, mas quis o destino que a tal professora prestasse concurso para a Inspetoria Federal do Ensino. Nomeada pelo MEC em 1952, passou a atuar no Rio de Janeiro, capital federal na época. Em 1954, durante uma reunião dos Inspetores Federais do Ensino, no MEC, foram solicitadas sugestões para a melhoria do ensino básico. Sem pestanejar, Raimunda sugeriu a instituição da merenda escolar, fundamentando-se no fato de que a criança bem alimentada tem melhor rendimento. A ideia foi apoiada por unanimidade. Os próprios inspetores redigiram o projeto de lei para instituir a merenda escolar em todo o país. Enviaram-no ao ministro da educação, que o encaminhou ao presidente da República. Este acatou a proposta e, por sua vez, a enviou ao Congresso Nacional, onde foi votada e aprovada. A ideia inicial era voltada para alunos carentes. No entanto, para evitar discriminação, ampliou-se para todo o corpo discente.