sábado, 23 de março de 2019

O SILÊNCIO DOS MORTOS


Na foto acima, uma vista parcial do cemitério de Guimarânia
Sempre que vou à Guimarânia (MG), faço uma visita imprescindível, imposta por mim mesma, ao túmulo dos meus pais. Quedo-me ali, absorta, às vezes chorosa, distante do mundo dos viventes, a relembrar flashes da convivência familiar de tempos idos. Soube, por meio de um residente local, que sou a única, da grande família, que jamais deixou de reservar um tempinho para essa volta ao passado, em homenagem aos que já se foram. Pais, avós e grande parte de meus antepassados repousam eternamente na cidade dos Guimarães, tronco familiar português do qual descendemos.

Em uma manhã domingueira, dirigi-me sozinha ao cemitério, que é bem afastado da cidade. Encontrei-o trancado. Um passante me informou que, exceto em caso de funeral, ele se mantém fechado aos domingos, dias santos e feriados. Se eu quisesse entrar, teria que ir até à residência do guardião dos mortos. Deu-me o nome dele e uma referência residencial.

Encontrei o endereço com facilidade. O guardião não se encontrava, mas sua esposa atendeu-me com muita solicitude, cafezinho e pão de queijo. Em cidade pequena, as pessoas são mais receptivas e hospitaleiras. Disse-lhe que gostaria de visitar o túmulo de meus pais antes de voltar para Belo Horizonte, de onde embarcaria para Vitória (ES). Enquanto degustava o “cafezim quentim”, ela se afastou e voltou com uma grande chave na mão. A chave do reino de Hades. Eu teria que entrar lá sozinha? Estremeci. Esse ambiente me assombra. Sempre mantive distância de cemitérios. A única exceção era essa visita, já tradicional, em Guimarânia. Não podia recusar a oferta. Peguei a chave e entrei no carro, indecisa. Que direção tomar? Seria melhor chamar alguém para me acompanhar. Ao mesmo tempo, achava desnecessário. Minha mãe sempre dizia que se deve temer os vivos, não os mortos. Esses são inofensivos.

Entrada do cemitério de Guimarânia

Diante do grande portão, parei, meio temerosa. Passei minha infância a ouvir casos de almas penadas e de assombrações, no sertão de Minas, sob a bruxuleante luz de lamparinas. Hoje, não acredito mais nisso, mas, naquele momento, as fantasmagorias infantis afloram. Chave na mão, diante do gradil, titubeei. Entrar ou voltar? Eis a questão. Resolvi enfrentar meus fantasmas. O que encontrei de mais arrepiante foi o pesado silêncio dos mortos, calcado em pedras. Um calafrio paralisou-me. Eu era ali uma intrusa. Único vivente a espreitar a morte. Por entre túmulos vaguei e divaguei. A branda brisa dos ciprestes quebrava, eventualmente, o silente sono dos mortos.

Ante a tumba de meus pais quedei-me melancólica. Lembranças de toda uma vida fluíam sem cessar: no tear, minha mãe tecia colchas e sonhos, a nós nunca revelados. Coloridos ou não, seus sonhos se dissiparam no vão da vida e do tempo. Em sua lápide, uma foto esvaecida, um vazio maior que a vida. Meu pai plantou sua história na fazenda da Charneca. No fio de sua foice, muita capoeira foi-se. Sua voz de trovão ainda soa em meus ouvidos. Sua chama se apagou, mas seu sangue continua circulando em minhas veias.

Oh! Como me lembro do engenho de cana, da doçura da caiana, dos bois de canga atrelados, girando sem destino, sem cessar. E da garapa jorrando, adoçando meu olhar. Mergulhada em infindos devaneios, palmilhei os recônditos do passado. Naquela brumosa manhã de Guimarânia, diante da tumba, o tempo parou. Como arrancar meus entes queridos daquele nada absoluto, de onde jamais voltariam? A mãe-terra, companheira de seus passos vida adentro, vida afora, se lhes ofereceu como leito derradeiro.

Uma rajada de vento e o funéreo silvo dos ciprestes tiraram-me de uma espécie de torpor. Com o olhar, fiz uma varredura do entorno. Era por demais soturno. Resolvi voltar ao mundo dos vivos.

terça-feira, 19 de março de 2019

UMA GRANDE IDEIA


(Homenagem de Jô Drumond à Professora Raimunda Rodrigues, falecida recentemente)

Poucas pessoas sabem que, graças ao desmaio de uma franzina garotinha durante a aula, em 1948, no Piauí, e graças à brilhante ideia de sua professora, institucionalizou-se a merenda escolar, benfeitoria que vigora até os dias de hoje em todo o território brasileiro.

Ideias grandiosas podem surgir a qualquer momento, em quaisquer circunstâncias, até mesmo nas mais adversas. Nada melhor do que uma boa ideia, como se diz popularmente, na “hora certa e no lugar certo”, ou seja, com condições de ser executada. É o caso da merenda escolar, simples sonho de uma educadora, que acabou alimentando várias gerações de crianças, e que foi responsável pelo salto qualitativo e quantitativo da educação neste país, sobretudo nas classes menos favorecidas. A educação ganhou em qualidade, visto que a criança bem alimentada apresenta melhores condições de rendimento na aprendizagem; ganhou também em quantidade, pelo fato de que famílias miseráveis passaram a enviar suas crianças à escola para lhes garantir pelo menos uma refeição diária.

Tudo começou em 1948, em Teresina, quando a jovem e idealista professora Raimunda Rodrigues começou a alfabetizar uma turma de 85 alunos. Além da classe numerosa, a sala de aula não dispunha de infraestrutura; apenas 12 carteiras duplas para instalar os pequerruchos. Como eram subnutridos e magricelas, os alunos do 1º ano “A” apertavam-se nas carteiras, 5 em cada uma. De vez em quando um deles caia, devido à exiguidade do espaço. Outros eram instalados no degrau do estrado do professor, e os demais distribuídos nas largas janelas. Além do desconforto, a professora tinha que ensinar sem elevar o tom de voz, para não perturbar a classe já alfabetizada do 1º ano “B”, de outra professora, com quem compartilhava o mesmo espaço, sem divisórias.

Certo dia uma garotinha subnutrida caiu desmaiada durante a aula. Após a reanimação da criança, Raimunda perguntou-lhe se havia se alimentado antes de ir à escola. A aluna lhe disse que havia tomado um copo de água com sal. A professora soube então que, como não havia nenhum alimento em casa, e como a mãe não queria que a filha saísse em jejum, deu-lhe tal paliativo. Naquele instante, um insight iluminou sua mente. O de alimentar as crianças na própria escola. A sugestão foi acatada pela direção escolar e pelos demais professores. Começaram, em mutirão, a angariar alimentos junto aos comerciantes locais, que nunca se recusavam a doar algo. As famílias dos alunos, entusiasmadas com a novidade, dispuseram-se a participar da execução do projeto. Mães se reuniam e se revezavam para o preparo da merenda escolar. A diretora, única pessoa do estabelecimento possuidora de um automóvel, transportava as cozinheiras e os alimentos angariados.

A ideia da merenda escolar poderia ter nascido e morrido no bairro Barrocão, de Teresina, mas quis o destino que a tal professora prestasse concurso para a Inspetoria Federal do Ensino. Nomeada pelo MEC em 1952, passou a atuar no Rio de Janeiro, capital federal na época. Em 1954, durante uma reunião dos Inspetores Federais do Ensino, no MEC, foram solicitadas sugestões para a melhoria do ensino básico. Sem pestanejar, Raimunda sugeriu a instituição da merenda escolar, fundamentando-se no fato de que a criança bem alimentada tem melhor rendimento. A ideia foi apoiada por unanimidade. Os próprios inspetores redigiram o projeto de lei para instituir a merenda escolar em todo o país. Enviaram-no ao ministro da educação, que o encaminhou ao presidente da República. Este acatou a proposta e, por sua vez, a enviou ao Congresso Nacional, onde foi votada e aprovada. A ideia inicial era voltada para alunos carentes. No entanto, para evitar discriminação, ampliou-se para todo o corpo discente.

quarta-feira, 6 de março de 2019

A FÉ E A DÚVIDA


Na esperança de que o jovem Thomé não se desgarrasse da fé religiosa, sua família o levou a um local de peregrinações, para que recobrasse o fervor, em vias de esmaecimento.

Em respeito às pessoas envolvidas, topônimos serão omitidos neste relato. Fizeram uma longa viagem, em direção a uma pequena comunidade, na zona rural. Desde que chegaram ao destino, ouviram, o tempo todo, histórias de milagres acontecidos naquele local. Por exemplo, um senhor queria gravar a mensagem de Nossa senhora, mas se esqueceu de colocar a fita K-7 dentro do gravador. Desapontado, ele demonstrou sua desolação, após o culto, junto à pretensa “arauta da santidade”. Esta lhe respondeu: -  Pode ficar tranquilo. Minha fala está todinha gravada em sua fita, mesmo estando fora do gravador. 

Muitos outros casos misteriosos foram contados ao longo do dia por diversas pessoas. Era uma espécie de preparação psicológica ou de concentração, à espera do grande momento da aparição de Nossa Senhora, que era vista apenas por uma pessoa: uma menininha de cerca de oito anos, que, como qualquer outra, brincava de correr atrás de uma bola, juntamente com crianças de sua idade. Em um horário determinado não se sabe por quem (como se a rainha dos céus se submetesse aos ditames do relógio), todos se reuniram para recebê-la. Começaram com orações e, logo a seguir, passaram a entoar cânticos de louvores. Em um dado momento, a menina interrompeu a cantoria dizendo: -  Ela está chegando... eu já a estou vendo... está se aproximando, coberta por um manto azul, cabelos longos, envolvida por uma luz...

Subitamente, a pirralha se pôs a falar com um vocabulário de adulto. Pode-se dizer que seu registro linguístico se assemelhava aos sermões aos quais os fiéis estão habituados, na igreja. Usava a segunda pessoa do plural “vós”, mas não sabia conjugar o verbo adequadamente. Poderia ser uma fala decorada, ou não. Era bastante longa. De qualquer forma, não era linguagem apropriada para uma criança. Ao terminar a prédica, pegou a bola e saiu brincando novamente, como se nada houvesse acontecido.

Um dos familiares de Thomé, todo contrito, ainda envolvido por uma espécie de êxtase quase epifânico, pela proximidade da entidade celestial, perguntou-lhe:

- E aí, meu jovem, o que você achou?

- Achei apenas que Nossa Senhora está precisando de estudar a conjugação verbal.

Foi como se ele jogasse uma balde de água gelada no fervor religioso. Desolada, a família constatou a inutilidade do esforço, mas não desistiu. Para que ele não se desviasse da linha reta que levava ao reino do Senhor, foi enviado, malgrado sua vontade, a um seminário. A formação religiosa, a vida eclesiástica e o recolhimento monacal se encarregariam de colocá-lo nos devidos trilhos. Por lá permaneceu longos anos, não por vocação, evidentemente, mas com o intuito de ter acesso gratuito a um bom ensino formal. Sua família não teria condições de bancar seus estudos. Passou por todas as etapas, chegou a fazer teologia, mas se esquivou da ordenação. Preferiu tornar-se professor de latim, língua que dominava com maestria.

Décadas após, Thomé soube que tal menina, depois de adulta, continuava tendo as mesmas visões, no mesmo local, em horário pré-determinado e continuava também suas pregações como porta-voz da mãe de Deus. Fiéis de todo o Brasil e até mesmo do exterior afluíam ao local, no afã de ouvir tais mensagens. Com o tempo, tornou-se um relevante ponto de peregrinação.

Há alguns anos ele teve contato com outro tipo de mensagens enviadas por Nossa Senhora, em local bem distante das pretensas aparições. Tratava-se de um fenômeno assaz bizarro, conhecido como “as formigas bordadeiras”. As folhas de determinada árvore eram picotadas por formigas, em formato de letras, contendo mensagens supostamente enviadas por Nossa Senhora, em latim. Recebeu das mãos de uma frequentadora desse local, um volume contendo mensagens digitadas e impressas, para que as traduzisse. Ao ler parte do texto, ficou desapontado pela pobreza do conteúdo. Não passaria aquilo adiante. Contatou a cliente e disse-lhe que não faria a tradução por motivos de foro íntimo.

Insatisfeita, ela insistiu em saber o motivo da recusa. Ele lhe disse apenas que não acreditava na autoria dos textos. Nossa Senhora certamente deveria ter algo mais importante a fazer do que enviar mensagens por meio de formigas. Além do mais, se as mensagens fossem de sua autoria não seriam tão mal redigidas, nem tão machistas.

Lamentava ter desapontado tanto seus familiares quanto a fervorosa cliente. Eles acreditavam piamente em algo que, para ele, era incoerente. Não poderia compactuar com aquela insanidade.
Em sua concepção, a fé não se impõe. Ela pode brotar espontaneamente em circunstâncias propícias assim como pode desaparecer, em circunstâncias adversas. Impossível forjá-la em mentes racionalistas. Caso o indivíduo não tenha propensão ao misticismo, mesmo sendo criado dentro dos preceitos religiosos, um dia, sua razão sobrepujará os dogmas, os milagres e todas as crendices inculcadas em sua mente.

Foi o que aconteceu consigo. Ao chegar à idade do siso, percebeu que muita coisa não se encaixava em sua mente inquiridora. Começou espontaneamente a questionar justamente o que era inquestionável: os dogmas. Talvez fosse influência do positivismo de Auguste Comte, para quem o conhecimento científico sistemático era baseado em observações empíricas. Talvez fosse resquício da Dúvida Metódica cartesiana, linha de pensamento que duvidava de tudo. O fato é que, em sua visão juvenil de mundo, tudo devia ser amplamente debatido. Por que os dogmas religiosos teriam caráter indiscutível? Como poderia ter total credibilidade em algo, sem nenhuma evidência comprobatória? A dúvida não seria inerente ao ser humano, “indivíduo dividido” nesse mundo descabido? Poderia ele ter fé e dúvida ao mesmo tempo? A primeira implica uma atitude contrária à segunda ou elas se complementam? Sabe-se que a dúvida motiva o estudioso a pesquisar para resolvê-la, de modo que ela impulsiona o acesso ao conhecimento. Nesse caso ela não seria benéfica ao fortalecimento da fé?