quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

AFOGAMENTO DE UM ANJO



A imensidão talássica esconde belezas e mistérios em profundezas abissais. Esconde também o corpinho de Geanderson, de nove anos, que saiu sorrateiro de casa para uma traquinagem fatal: um banho de mar, às escondidas da mãe, com o amigo Dhanyel. Oceano atraente e traiçoeiro: beleza que atrai e trai, morada de Eros (fonte de vida e prazer), e de Thanatos, (fonte de morte e luto). Isso remete, na perspectiva psicanalítica, aos dois aspectos da “grande Mãe”, que dá e tira, concede e castiga.

A recorrente assertiva “uma imagem vale mais que mil palavras” veio-me à mente quando observei a foto estampada no jornal A Gazeta, do dia 12-12-2018. Impossível definir o sentimento expresso pela bela e trágica imagem. O desalento de uma mãe, à beira-mar, recostada a uma grande pedra, como se nela encontrasse algum apoio, varrendo com o olhar a superfície marítima, até à mescla com o azul-celeste, no afã de avistar os cabelinhos louros do filho desaparecido. Lembrei-me que, ironicamente, Eros, o deus grego, é normalmente retratado como um menino de cabelos louros.

Tentei, em vão, encontrar a palavra certa, um termo que traduzisse essa imagem: desolação, desacorçoo, tristura, desesperança, desencanto, desengano, desventura, infortúnio, tormento... tudo isso misturado e amalgamado à aflição de um temido desfecho que teimava em não acontecer.

A ansiedade da mãe oscilava entre o aparecimento e o perecimento do caçulinha, seu anjinho barroco.
Almejava a primeira opção, rejeitava a segunda. Ansiava por um provável resgate, por parte dos pescadores, e pelo caloroso abraço, ao tê-lo de volta são e salvo.

Provavelmente está em algum hospital - pensava. Uma boa alma deve estar cuidando dele. Em breve, aparecerá porta adentro gritando: Mamãe! Mamãe! Cheguei! Entrará correndo, de braços abertos, enlaçará minha cintura com as perninhas, meu pescoço com os bracinhos, como de costume, e me cobrirá de beijos. Será meu maior presente de Natal. Deus não vai me fazer uma desfeita. Sempre fui tão fiel a Ele! Nunca dormi sem rezar, nunca faltei missa aos domingos, sempre respeitei os mandamentos, sempre dei duro, criei meus filhos catando papelão na rua e fazendo faxinas, sem nunca ter cobiçado coisas alheias... decididamente, não mereço uma coisa dessas!

Rosilene passava o dia todo à beira-mar, abatida pela agonia da espera, enquanto os bombeiros continuavam as buscas. Abordada pelos repórteres, declarou: “Fico olhando para ver se aparece o cabelo loirinho dele na água. Peço a Deus para encontrar o corpinho dele. Preciso enterrar meu filho [...] quando nasceu tinha o cabelo loiro e enrolado. Parecia um anjinho. Um anjo que Deus me deu.”

No dia 8, na Barra do Jucu, Vila Velha (ES), um banhista filmou casualmente as últimas brincadeiras das duas crianças, que tentavam furar as ondas, cada vez mais ameaçadoras, sob um céu escuro, também ameaçador. O corpo de Dhanyel foi encontrado dois dias depois. O de Geanderson ainda não deu o ar da graça, apesar das constantes buscas por meio de barcos e helicópteros. Não se sabe até quando durará a agonia da mãe, que aguarda, há mais de uma semana, a resposta à pergunta que não se cala. Por onde anda meu menino? Como está ele? Vivo ou morto?

Essa incerteza está em sintonia com o simbolismo das águas em movimento: ambivalência, dúvida, vida/morte. A transitoriedade e a inconsistência das ondas têm como contraponto a dureza e a imutabilidade da rocha na qual Rosilene se apoia. De acordo com a simbologia bíblica, o rochedo (ou pedra) representa a força protetora de Deus. Essa pretensa força é a “taboa de salvação” à qual ela se agarra enquanto durar a interrogação, à espera do ponto final.

Jô Drumond

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

O NATAL E A IDADE DOS PORQUÊS


Atendendo à solicitação da campanha “Faça uma criança feliz”, em prol do Natal das crianças carentes, pedi a um dos meus netos que me ajudasse a separar os brinquedos com os quais ele não brincava mais, ou raramente brincava, para doá-los às crianças pobres.

- Por que você quer doar meus brinquedos, vovó?

- Porque crianças pobres não têm brinquedos.

- Existe criança sem brinquedo?

- Sim, infelizmente.

- Por que elas não têm brinquedos?

- Porque são pobres.

- Por que elas são pobres?

- Porque seus pais não têm dinheiro

- Por que eles não têm dinheiro?

- Talvez estejam desempregados... não sei bem... Venha, ajude-me a colocar esses aqui na sacola.

Tentei interromper os questionamentos, desviando sua atenção, em vão.

- Mas escuta, vovó: para onde você vai levar esses brinquedos?

- Vou entregá-los a algumas pessoas que estão fazendo uma campanha para o Natal das crianças pobres.

- Mas no Natal não precisa, vovó. Papai Noel é bonzinho! Ele traz presentes pra todo mundo.

- Sim, eu sei, mas, por exemplo, você tem muitos brinquedos e ganha ainda mais, no Natal. Não há mais espaço em seu quarto, para guardá-los. As crianças pobres também certamente vão ganhar, mas como têm poucos brinquedos, há mais espaço em suas casas.

- Vovó, as crianças pobres também vão à creche?

- Sim, certamente.

- Então elas devem ter brinquedos na creche.

- Pode ser, mas as creches em bairros pobres têm menos brinquedos. Vamos fazer uma coisa? Vamos ao playground brincar de pula-pula?

- Ôba! Vamos agora?

- Sim, é pra já!

Dessa forma, livrei-me da sequência do interrogatório. Sabe-se que, na idade dos porquês, a criança começa a despertar para o entendimento das coisas. Passa a observar e a perceber os fatos que acontecem em seu entorno, e se põe a questionar repetidamente, com uma série de porquês. É próprio da idade, e é importante que assim seja. Ela passa a ter percepção mais aguçada e começa a descobrir a si mesma e ao mundo. Trata-se de uma curiosidade benfazeja que a levará a novas descobertas.

Ao voltar do playground, eu já nem pensava mais na razão que nos havia levado até lá. Ele, no entanto, continuava atento. Abriu um armário cheio de brinquedos e me disse.

- Vovó, pode levar todos os meus brinquedos para as crianças pobres.

Tive que me controlar para conter as lágrimas.

Jô Drumond



sexta-feira, 30 de novembro de 2018

ANDANÇAS POR PARIS


Conhecer Paris a pé é uma excelente opção. Para isso, há um grande número de livros especialmente concebidos para ajudar os turistas, com indicação de diversos roteiros. No entanto é melhor que cada visitante trace seu próprio roteiro, na medida de sua preferência, de acordo com sua forma física e dentro do tempo disponível. Apesar de cansativo, não há nada melhor do que flanar pelos grandes bulevares, pelos eixos monumentais, assim como pelas estreitas ruelas do Marais e do Quartier Latin, os bairros mais antigos da cidade.

Para os iniciantes, uma ótima opção é começar a caminhada saindo da Place de l’Étoile, mas, antes disso, vale a pena subir até o alto do Arco do Triunfo pelo elevador, no centro dessa praça, para uma visão panorâmica do passeio.

A caminhada consiste em descer a Avenida Champs Élysées, uma das mais belas do mundo, com pausa no Grand Palais ou no Petit Palais, para visitar exposições permanentes e temporárias.
Continuar a descida do eixo histórico até a Place de la Concorde, no centro da qual há um antigo obelisco* egípcio, de 3.300 anos. Nessa praça, pode-se entrar no museu Orangerie, para admirar as imensas ninfeias impressionistas de Monet, pintadas nas próprias paredes, durante longos anos, em salas elípticas.
Dependendo da condição física do caminhante, seguir pelo Jardin des Tuileries, que dá acesso ao imperdível museu do Louvre, próximo ao qual se vê o Arco do Triunfo do Carrousel, alinhado ao Arco do Triunfo de l’Étoile, ponto de partida do caminhante. A visita ao museu, assaz cansativa devido à monumentalidade da construção, deverá ser feita em outra ocasião. O ideal seria ficar um mês inteiro dentro do Louvre, para ver tudo o que deve ser visto.

Como foi dito, passear tranquilamente, sem pressa, sem destino prefixado, com o único intuito de apreciar a cidade é uma boa pedida, mas um problema se interpõe aos turistas: a carência de banheiros públicos. Ultimamente foram instalados alguns, em esquinas estratégicas, mas a carência continua, devido ao enorme fluxo de pedestres. Aqueles que usam banheiro com mais frequência, como os que fazem uso de diuréticos, se encontram em apuros. Pode-se tentar em um café bar ou restaurante, mas as toaletes são reservadas aos consumidores. 

Certo dia, num desses longos passeios, na rue de Rivoli, tínhamos premência em usar uma toalete. Éramos três. Decidimos entrar em um bar, ao lado do Louvre, como consumidores, com outro objetivo específico. Ocupamos uma mesa próxima à saída e pedimos dois copos d’água mineral e um café. Ao me dirigir ao banheiro, fui interpelada por um garçom. Tentou impedir meu acesso, alegando que era reservado aos consumidores. Mostrei-lhe a mesa que estava ocupando, com outras pessoas. O acesso me foi permitido. Um a um, nós três fizemos o mesmo. Ao pedir a conta, surpresa: pipi a preço de ouro! Pagamos mais vinte euros pelo café e pelos dois copos d’água, ou seja, cerca de cem reais. Uma fortuna para brasileiros acostumados a pagar um ou dois reais, em banheiros públicos.

Saímos do café bar aliviados, porém contrariados. Antes que meus acompanhantes reclamassem da exorbitância do valor cobrado, lembrei-lhes o ditado popular: “bom cavalo é aquele que está próximo à porteira, quando precisamos dele”.

Na rue de Rivoli, encontra-se toda sorte de suvenires. Por isso é muito frequentada pelos turistas. Mas estes passam ao largo do que há de mais interessante nessa rua: os luxuosos antiquários, contendo esplêndidas peças da aristocracia francesa.

Enfim, a cidade luz é uma festa aos olhos, noite e dia. Um passeio noturno de barco, no rio Sena, ao som de violinos, com jantar gastronômico, tendo diante de si a feérica iluminação e a magnificência dos monumentos, ofusca até mesmo a alma.

*Obelisco Luxor foi um presente do vice-rei do Egito Mehmet Ali ao rei da França Carlos X, por volta de 1820. O Egito ofereceu à França três presentes considerados exóticos, durante uma aliança diplomática e militar contra ameaças de Inglaterra: o obelisco, uma dezena de múmias e a primeira girafa a chegar à França. Visitada por 600.000 pessoas, em 1827, essa girafa viveu no Jardin des Plantes, em Paris, até 1845, quando morreu.

Jô Drumond