por: Jô Drumond
Desde crianças, ouvimos piadas de portugueses, que os caracterizam como patetas, distraídos ou pouco inteligentes. Depois de ter passado uma temporada em Portugal, convenci-me de que isso não passa de simples clichê, destituído de fundamentação. Seria, talvez, uma simples vingança que remonta à época da colonização, um tipo de ranço colonizatório.
Como se sabe, o colonizador é sempre visto como opressor pelo colonizado. Na impossibilidade de enfrentar o mais forte, resta ao oprimido fazer galhofas e chistes para mostrar que é superior a ele nos quesitos inteligência, rapidez de raciocínio, perspicácia, engenhosidade... de forma a desqualificá-lo.
Referir-se aos colonizadores ou aos invasores de forma jocosa não é privilégio nosso; é uma atitude comum em diversas partes do mundo. Os portugueses, por exemplo, fazem anedotas a respeito dos espanhóis, pelos quais foram dominados, em certa época. Esse tipo de sátira é uma doce vingança, pacífica e, ao mesmo tempo, ferina.
Sempre ouvimos falar do “jeitinho brasileiro”, como se fôssemos astutos, matreiros, sagazes, ardilosos e até mesmo velhacos. Tal jeitinho consiste em soluções criativas para resolver problemas ou situações difíceis, mas é controverso. Pode ser bom ou ruim. Tanto pode revelar astúcia, habilidade, flexibilidade, quanto o caráter duvidoso de quem gosta de "levar vantagem em tudo”. A malandragem consiste justamente em se beneficiar, em detrimento dos outros.
Há estrangeiros que nutrem grande admiração pela flexibilidade e inventividade do brasileiro para improvisar soluções em situações problemáticas, com humor e perspicácia. O propalado “jeitinho”, tão presente em nossa cultura, pode variar de um simples favor de um amigo à corrupção, dependendo do grau do favor e do posto ocupado pelo amigo. Destarte, no que se refere à criatividade, é positivo, mas no que concerne à malandragem, é altamente negativo.
Seria o jeitinho brasileiro uma herança lusitana? Ao visitar recentemente a cidade do Porto, alguns detalhes me alertaram para essa possibilidade.
Vejamos exemplos históricos da astúcia do povo lusitano. A demonstração mais inusitada do jeitinho português aconteceu justamente no clero, que deveria primar pela retidão de caráter e pelo respeito às normas pré-estabelecidas. Na cidade do Porto, que deu nome a Portugal (Portus Cale - Condado Portucalense), a Igreja do Carmo, geminada à das Carmelitas (séc. XVIII) corresponde a uma das mais belas edificações do Barroco Rococó da cidade. Em um primeiro golpe de vista, percebe-se um só bloco, mas o bom observador perceberá que se trata de duas igrejas. Segundo informações de nosso guia turístico, a Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo recebera, como doação, um terreno para a construção de sua igreja. Em respeito à clausura das freiras, tal ordem teria que construir duas igrejas: uma para os homens (a Igreja do Carmo) e outra para as mulheres (a das Carmelitas). Um problema se interpunha entre ambas. Havia uma lei do Vaticano que proibia a construção de duas igrejas contíguas. Como resolver a questão? Novamente emergiu a astúcia lusitana. Foram construídas duas igrejas (veja foto) entre as quais se edificou a provável menor casa do mundo, com cerca de um metro de largura, duas janelas e uma porta, separando o que não poderia ficar unido. A função da casa foi tão somente a de burlar a lei. Não se pode afirmar que as duas igrejas sejam interligadas, pois há entre elas essa casinha, que, de tão pequenina, passa despercebida por aqueles que desconhecem a história da construção.
As moradias próximas a tais igrejas têm uma característica especial. As construções, todas elas interligadas, como as de Ouro Preto, têm fachadas estreitas e uma só porta de entrada, porque o valor do imposto predial, na época da construção, era proporcional ao tamanho aparente do imóvel. Cada andar correspondia a um amplo apartamento, apesar das pequenas fachadas. Dessa forma, diversas famílias podiam viver em grandes moradas, de modo a burlar o fisco, pagando um imposto irrisório.
Outra história que ouvi no Velho Mundo aponta para a mesma questão da sagacidade portuguesa. No início da Inquisição, o Rei de Portugal não via ingerência papal com bons olhos, porque a presença dos judeus era importante para a economia do país. Fazia vistas grossas às ordens do Vaticano, até que, certa vez, foi intimado pelo Papa a tomar uma posição radical. Teria que expulsar todos os judeus de Portugal ou então teria que convertê-los ao catolicismo. O Rei não se deu por vencido. No intuito de não expulsá-los, convocou todos eles à corte, numa determinada data. Estando todos reunidos em grande praça pública, o Soberano fez o sinal da cruz, dizendo: eu vos batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ide em paz e o Senhor vos acompanhe. Logo após, enviou um mensageiro ao Vaticano, afirmando que todos os judeus de seu país tinham se convertido ao catolicismo. Por algum tempo, conseguiu burlar a vigilância papal.
Na época da iminente invasão do território português pelas tropas de Napoleão, a Família Real se transferiu para o Brasil. Todas as igrejas, cujos retábulos eram cobertos de ouro, tiveram diversas demãos de cal em seu interior, com o intuito de encobrir a riqueza da decoração. A suntuosidade barroca acabou passando em “brancas nuvens” pelas tropas napoleônicas. Os invasores, ludibriados, não atinaram para a perspicácia portuguesa. Destarte, preservou-se o ouro e a beleza da ornamentação sacra tal qual permanece até os dias atuais.
A decisão estratégica de transferir toda a corte para o Brasil, para se livrar do jugo napoleônico, foi muito benéfica à colônia. Juntamente com ela vieram as escolas, as bibliotecas, as universidades, o requinte arquitetônico, as Belas Artes, a construção de teatros, a imprensa... enfim, devemos tudo isso, indiretamente, a Napoleão Bonaparte.
Como vimos, o clichê jocoso que todos nós conhecemos desde a infância sobre os portugueses e que, no Brasil, foi passado de geração em geração, não corresponde aos fatos. Pelo visto, é bem provável que tenhamos herdado tal “jeitinho” justamente de nossos ancestrais lusitanos.
Jô Drumond
Junho 2018