domingo, 7 de maio de 2017

A Era Digital


O acesso à internet mudou totalmente os hábitos dos cidadãos. Prescinde-se hoje de ir ao correio para postar correspondências. A comunicação se faz em questão de segundos, via satélite, nos quatro cantos do mundo.  O jornal impresso é quase obsoleto. Tornou-se uma espécie “re-vista”, pois não apresenta nada mais em primeira mão. A internet traduz, automaticamente, notícias de qualquer idioma para a língua materna do leitor. Evidentemente, não se trata de boa tradução, mas eficiente na divulgação de informações importantes, em tempo real.

Antigamente, se alguém dissesse que, no futuro, se poderia, ao mesmo tempo, visualizar e falar com um ente querido que se encontrasse do outro lado do planeta, arriscar-se-ia a ser condenado à fogueira. Sabe-se que em 1633, preso pelas garras da inquisição, o grande matemático, físico, astrônomo e filósofo Galileu Galilei teve que “desdizer” o resultado de suas pesquisas para evitar a morte. Obrigado a se retratar, na questão do heliocentrismo, ele se viu na contingência de afirmar, durante o julgamento, que a Terra não girava em torno do Sol. Mas murmurou a seus botões: “eppur si muove” (e, no entanto, ela se move).

 Nos dias de hoje, o poder constituído se sente perdido, sem saber como controlar o vento que sopra em diversas direções. A classe política se encontra (ou se perde) nos dédalos do labirinto virtual. O povo, mais informado, está mais atento ao que se passa nos bastidores do governo. A turba deixou de ser apática e passiva, facilmente forjada pelos poderosos. Atualmente a opinião pública pode ser manipulada em tempo recorde, é verdade, mas o povo está aprendendo, a duras penas, a “separar o joio do trigo”.

Nossa geração, nascida em meados do século passado, criada antes do advento da revolução tecnológica, tem sofrido substanciais interferências em seu way of life, adaptando-se ao novo modus vivendi. Os pais, muitas vezes, se sentem indefesos e impotentes para controlar os filhos que têm  acesso a uma infinidade de informações, boas ou nefastas, que podem interferir na sua formação. Atualmente há, por exemplo, um jogo de desafios que acontece na calada da noite, longe da vigilância paterna. Os jovens postam os desafios aos quais são submetidos. No jogo da Baleia Azul, o último desafio, como se sabe, é o suicídio, filmado e divulgado virtualmente, em tempo real, uma espécie de “Big Brother” macabro. É difícil impedir o acesso à internet à nova geração. O que fazer para salvaguardar nossos filhos e netos? Essa questão está sendo amplamente debatida nos dias de hoje.

Por outro lado, as redes sociais proporcionam momentos de grande contentamento e nostalgia, uma espécie de retorno ao passado, por meio de grupos de ex-colegas que se reencontram décadas após a formatura e que relembram com saudosismo os anos de juventude sem televisão, sem telefone “sem lenço, sem documento”. As redes sociais resgatam antigas amizades, antigos amores e possibilitam novos relacionamentos. Os idosos e as pessoas que moram sozinhas, tendo o mundo diante de si, sentem menos o peso da solidão.  Expressam-se quando bem entendem, com retorno instantâneo de seus interlocutores.

 Parece um contrassenso ter saudades da falta de conforto, da falta de rádio e televisão, da falta de celular, da falta de computador, da falta da internet... No entanto, isso acontece. Durante a juventude de nossos avós, não havia carro, avião, nem energia elétrica. Eu mesma me lembro com nostalgia das rodas de contação de histórias, à luz de lamparina, na fazenda onde fui criada, numa época em que não existia eletrificação rural. O que se fazia, naquelas noitadas míticas, era a genuína literatura oral. Depois, numa cidade de interior, onde estudei, faziam-se rodas de vizinhos, à noite, com cadeiras na calçada, para brincadeiras típicas da época, com a criançada, ou para um dedo de prosa, enquanto não vinha o sono.

Deve ser impensável para as futuras gerações uma vida sem acesso à tecnologia. Nossos netos e demais descendentes só saberão de nossa história de vida, se alguém se dispuser a registrar os usos e costumes de nossa época. Eles terão, certamente, outros divertimentos mais interessantes, que talvez não propiciem a convivialidade de antes, cada vez mais escassa em nossos dias. Cada um se diverte sozinho, diante do laptop ou tendo às mãos um smartphone conectado com o mundo.

No futuro, com o devido distanciamento crítico, muitos estudiosos, sobretudo os sociólogos, se debruçarão em pesquisas sobre a mudança dos aspectos consuetudinários de nossa geração. Conhecemos ambas as faces da moeda e vivenciamos o “antes” e o “depois” dos recursos advindos com as novas tecnologias.

Aconteceu recentemente, num grupo de whatsApp do qual participo, algo que se presta a reflexões desses especialistas, quanto ao comportamento atual do ser humano. Trata-se de um grupo numeroso, com uma postagem diária próxima a uma centena de mensagens. Certo dia, tal grupo parou de funcionar espontaneamente, sem nenhum consenso prévio. Nenhuma mensagem durante todo o dia. Silêncio. Branco total. Naquele dia um dos integrantes do grupo cometera suicídio. Estranhamente, em vez de usarem a rápida e eficiente ferramenta de comunicação de que dispunham, para a divulgação da notícia, os usuários optaram por ligações telefônicas, relegadas, há muito tempo, a segundo plano. O branco na caixa de mensagens foi uma espécie de luto, em respeito  à dor dos que ficaram e à decisão de quem optou pela partida.

Há pessoas mais conservadoras que resistem tenazmente à adesão às novas tecnologias da comunicação. Em breve, não haverá mais analfabetos digitais. A internet veio para ficar. Não se pode mais viver sem a praticidade, a facilidade e a agilidade desse tipo de comunicação. Evidentemente, como tudo neste mundo, ele comporta aspectos positivos e negativos. Cabe a cada usuário escolher e trilhar seu caminho virtual, como melhor lhe convier.

Jô Drumond  06-05-2017




sexta-feira, 5 de maio de 2017

O DIREITO DE IR E VIR

O direito de ir e vir, defendido no século XVIII por Jean Jacques Rousseau, e garantido pelo inciso XV do art.5 de nossa Constituição Federal de 1988, foi acintosamente desrespeitado durante a manifestação política do dia 28 de abril de 2017.

No mesmo dia, durante um jornal televisivo que mostrava os inúmeros transtornos causados pelo movimento grevista em todo o país, tive a surpresa de ouvir de um dos organizadores a afirmação de que é preciso bloquear avenidas e estradas para que o movimento cause maior impacto na população.

O que se viu nessa última manifestação foi um total desrespeito à sociedade. É inconcebível que se bloqueiem estradas e vias arteriais, indispensáveis à normalidade da vida de uma cidade e de um país.

Diretamente atingida por um dos inúmeros transtornos ocorridos, faço aqui um depoimento em nome de todos aqueles que, como eu, ficaram retidos durante cinco horas, numa fila quilométrica, na BR262, sem água, sem comida e sem toalete, numa situação lamentável e constrangedora.

O local estratégico escolhido, o trevo de Realeza, dá acesso a três capitais (Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Vitória). O grande fluxo de veículos, devido ao feriadão de 1º de maio, na segunda-feira, agravou a situação.

Certamente, em momento algum os organizadores pensaram nos transtornos que causariam aos seus semelhantes. Caso tenham pensado e ainda assim insistido, a questão não é apenas grave; é cruel. Muitas famílias com crianças e idosos, tendo dificuldade de locomoção, não puderam fazer o que eu e meu marido ousamos fazer: Abandonamos o carro no acostamento, e seguimos a pé até o trevo para averiguar o que estava acontecendo.
Um grande número de manifestantes, a maioria em vermelho, batucava, tocava tambores e gritava palavras de ordem. Após horas de espera, os automobilistas se exasperaram e promoveram uma buzinação ensurdecedora. Alguns saíam dos veículos e puxavam briga com os manifestantes. A situação ficou muito tensa. Uma viatura policial, estacionada no local, nada podia fazer. Foi preciso receber reforço, para conseguir liberar as pistas.

Eu me perguntava como podia haver tamanha aglomeração fora do perímetro urbano, e como os manifestantes tinham chegado até aquele local. A resposta surgiu, clara como a luz do dia, quando vi cerca de dez ônibus, perfilados, à espera do fim do movimento.
Não sou contra as manifestações. Todo cidadão tem o direito de se manifestar publicamente. Faz parte do processo democrático. Porém todo cidadão tem também o dever de respeitar as normas de convivência social, em nome do bem comum.

quinta-feira, 20 de abril de 2017

QUANDO, COMO E ONDE?

Por que nascemos para amar, se vamos morrer?
Por que morrer, se amamos?
Por que falta sentido ao sentido de viver, amar, morrer?
(Carlos Drummond de Andrade)
 
Enquanto não se descobre a fonte da eterna juventude, nós, simples mortais, almejamos vida longa e saudável. Já que a morte é inevitável, que seja mansa, sem dores e sem sofrimentos. Tudo isso foi conseguido pela francesa Dominique Deschamps. Viveu um século gozando de ótima saúde física e mental. Seus filhos se casaram e se multiplicaram. Cada um seguiu sua sina, mundo afora. Apenas ela permaneceu apegada à terra natal, à casa, ao jardim, aos animais de estimação...  Com o tempo, aprendeu a apreciar o silêncio, parceiro constante da solidão. Dia após dia, clarões de lembranças adentravam-se pelas janelas da rotina. Gostava do cantinho escolhido para aguardar o fim.  Não era luxuoso, nem grandioso, mas aconchegante e repleto de reminiscências. Bastava fechar os olhos e viajar no tempo, para reviver a vitalidade e a alegria ali reinantes durante décadas. Filhos, netos, bisnetos correndo, subindo e descendo a escadaria; mesa grande e farta, rodeada de olhos cobiçosos; narizes sensíveis e paladares vorazes, prestes a atacar o repasto cotidiano.

Dominique morava sozinha. Vivia totalmente independente da família. Tinha uma doméstica para as tarefas pesadas, mas era ela própria que pilotava o fogão e os eletrodomésticos. Aos noventa e oito anos, certo dia, estando sozinha, escorregou, desequilibrou-se, e caiu. Não houve nenhuma fratura, mas ela não dispunha força suficiente para se erguer. As vãs tentativas duraram horas, até que, depois de ter se arrastado, conseguiu se apoiar num móvel e se aprumar. No dia seguinte, ao receber a empregada, disse-lhe:

- Isabelle, vou morrer daqui a dois dias.
- Como assim, Madame?
- Estou velha. Não quero mais viver.
- Mas a família precisa ser avisada. Façamos um encontro de despedida. A senhora não pode partir sem dizer adeus aos que a amam.
- Está bem. Então convoque-os.

No final de semana seguinte, a família reunida tentou dissuadi-la do intento. Durante o almoço de domingo, estando à mesa, ela pediu a palavra, agradeceu a presença de todos e explicou o motivo de sua decisão irrevogável.

- Vivo sozinha, nesta casa, desde que vocês se foram. Gosto do cantinho onde ancorei minha solidão. Aqui tenho sossego. Sempre tive boa saúde, mas as restrições da idade são implacáveis. Não gostaria, em hipótese alguma, de ficar dependente de outrem para as necessidades básicas. Enquanto tive autonomia para viver sem ajuda de quem quer que fosse, não pensei na morte. Nesta semana, levei uma queda e tive muita dificuldade para me levantar. Qualquer dia desses, pode me acontecer algo pior. Não quero tropeçar na própria sombra, nem me sustentar em bengalas de decrepitude até que uma enfermidade qualquer me leve daqui. A vida é minha. Tenho o direito de acabar, quando quiser, com a dor de existir. O tempo não tem pressa, mas eu tenho. Prefiro partir antes da chegada do sofrimento. No entanto, gostaria de ficar eternamente rodeada por essa linda família, que tanto amo.

- Mas mamãe, disse Paul, pretendemos fazer uma grande festa, daqui a dois anos, para comemoração do centenário de seu nascimento. Será uma cerimônia inesquecível para todos os descendentes. Depois disso, a escolha é sua, já que, mais cedo ou mais tarde, a partida é inexorável. Não discordo de sua decisão. A meu ver, todos deveríamos ter o direito de escolher como, quando e onde vamos dar o último suspiro. Mas, por favor, não encurte seu caminho. Espere pela festa. Fazemos questão disso.

- Está bem. Já que é importante para vocês...
- Ôba!!!

Todos aplaudiram em sinal de contentamento, fizeram um brinde à sua saúde, e partiram contentes.

Dois anos se arrastaram, morosamente. Dominique se sentia cada dia mais fraca. Dez dias antes da festa, decidiu que, dali em diante, não comeria mais. Tomaria apenas líquidos, para aguardar o encontro do adeus. Informados da estranha decisão, os filhos decidiram mantê-la sempre acompanhada, para que não cometesse nenhum desatino. Não poderia lhes fazer a desfeita de partir antes da hora (como se a festa fosse mais importante que a partida). A celebração, organizada com pompa e entusiasmo, não tinha nuances sombrias de despedida, nem de luto.

Debilitada pela inanição, manteve-se assentada o tempo todo, durante a festa, sem grandes alegrias, nem desassossegos. Seu olhar percorria o amplo salão: os antigos lustres de cristal, os móveis estilo Luís XVI, a imponente escadaria com corrimão dourado, as paredes decoradas com quadros valiosos de Corot, Delacroix, Renoir, Gauguin, preciosidades passadas de geração em geração; provável motivo de desavenças, na hora da partilha. Fitava tudo e todos longamente, como se fosse pela última vez. Parecia querer levar, para o além, as minudências da vida, presas à memória visual.

A decisão de não deixá-la sozinha foi mantida durante a festa. Para surpresa de todos, ao lhe servirem suco de uva, ela exigiu seu champanhe preferido, Veuve Clicquot, chamado afetivamente por ela de “La Grande Dame”. Após tragos e mais tragos, num vislumbre de outrora, Dominique chegou a esboçar alguns passinhos de dança. Aplausos entusiásticos.  Sentia-se radiante, como centro de todas as atenções. Disse que não faria discurso de despedida. No entanto, ao se ver diante de um microfone, e de dezenas de olhares interrogativos, não resistiu.

- Meus queridos! Como lhes disse, há dois anos, se pudesse, eu ficaria eternamente com vocês. No entanto, tenho que respeitar as leis da natureza. Diz o adágio popular que cada um tem sua vez e sua hora. Agora é minha vez de partir. No futuro, estaremos todos em outra dimensão, dentro da grande incógnita, da qual nada sabemos e de onde não poderemos voltar. Por isso, meu último conselho é que vivam a vida em toda sua plenitude. Não desperdicem tempo com inutilidades nem patifarias. Saúde e vida longa a todos vocês. Tim-Tim!

Aplausos e mais aplausos. A festa transcorreu normalmente, mas com visível ansiedade no ar. Ninguém lhe perguntar como nem quando seria a partida. Tratava-se de uma decisão de foro íntimo, pessoal e intransferível.

No dia seguinte, todos se dirigiram à “salle-à-manger”, para o desjejum. Somente a vovozinha continuou em sua alcova. Um sono profundo, de conluio com a eternidade, providenciou seu último desejo. Partira no oco da madrugada, sem sofrimento algum (como desejava), deixando, no aconchego do leito, apenas a carcaça para as devidas exéquias e prováveis prantos.

Jô Drumond