domingo, 9 de fevereiro de 2020

POLARIDADES


Um fato inusitado chocou a opinião pública, há algum tempo, em Vitória (ES). Uma avó atravessava a ponte Florentino Avidos, na faixa de pedestres, de mãos dadas com seu netinho de cinco anos. Um malfeitor, de cerca de 35 anos, surgiu repentinamente, tomou a criança da avó e a jogou no mar. Um engraxate, de passagem para o trabalho, presenciou a cena. Ao se dar conta do desvario do meliante, jogou por terra a caixa de engraxate, a carteira, o celular, o relógio, e, em questão de segundos, se jogou na água para tentar salvar a criança. Êxito total. O bom samaritano virou celebridade da noite para o dia. Sua foto saiu estampada na primeira página dos jornais locais. Como prêmio pela intrepidez, ganhou um curso de primeiros socorros, salvo engano, oferecido pelo Corpo de Bombeiros. O malfeitor foi retido no local pelos transeuntes, e imobilizado até a chegada da polícia.

Relatos extraído dos jornais locais, na época

Relato da avó:  "Foi um momento desesperador. Pensei em pular, mas não sei nadar. Comecei a gritar e do nada apareceu esse rapaz, que eu não conheço. Ele pulou e salvou o meu neto. Quando meu neto afundou, pensei que nunca mais iria vê-lo. Não tenho nem palavras para agradecer. Ele foi maravilhoso. Ainda bem que existem pessoas como ele."

Relato do salvador: "Só vi quando ele suspendeu a criança e a jogou dentro da água. A avó ficou desesperada. Eu não pensei em mais nada, a não ser em pular para poder salvar o garoto. Só pensei em ajudar. Era a única coisa que eu podia fazer. Na hora, pensei também em minha filha, de um ano e quatro meses.”

Relato do malfeitor:  "Eu passei na ponte e de repente eu peguei o menino e joguei dentro da água. Não tenho explicação para isso, estou com a cabeça ruim."

Esse fato em que o “anjo bom” sobrepuja o “anjo mal”, nos remete à polêmica polarização existente  desde os tempos pré-socráticos. Parmênides (530-460 a.C.) distinguia as qualidades positivas (o ser) como luz, e as negativas (o não ser) como obscuridade. Seu método consistia em estabelecer uma oposição, de modo que o mundo empírico se cindia em duas esferas, sendo uma a negação da outra. Essas polaridades, como Yin-Yang e outras mais existem também nitidamente no cristianismo como bem/mal, virtude/pecado, céu/inferno...
Seu contemporâneo Heráclito (540-470 a.C.) tinha outra visão completamente díspar. As antinomias belo/feio, fácil/difícil, grande/pequeno, branco/preto, alto/baixo, passado/futuro... para ele não são contrárias e sim complementares. O “ser” e o “não ser” estão contidos um no outro, em constante transformação. É dele o axioma de que não se pode banhar duas vezes no mesmo rio devido ao constante fluir das águas. A seu ver, nada é firme; tudo está em constante mutação.
A nítida distinção parmenidiana conhecida como “mal da polarização” foi amplamente rejeitada por pensadores que reiteraram o caráter relativo dos opostos: o mel pode ser, ao mesmo tempo, doce, para a maioria, e amargo para os que sofrem de icterícia. “Isto” e “aquilo” são interdependentes. Troca-se a preposição pelo verbo: "isto" é "aquilo".
Faço coro com esses pensadores e corroboro com o mote reiterativo “tudo é e não é” contido ao longo do romance Grande sertão: veredas, de nosso mestre Guimarães Rosa.
A meu ver, o Bem e o Mal coexistem dentro e fora do ser humano. É inútil almejar céu e inferno, ambos metafóricos, para o post mortem.  Em vida, passamos ora por um, ora por outro, segundo as circunstâncias, sempre na expectativa positiva de que a luz ofusque as trevas.
No caso da ponte, como foi dito, o “anjo do bem” sobrepujou o “anjo do mal”, mas isso nem sempre acontece no dia a dia. O audaz engraxate ganhou “celebridade relâmpago” e caiu novamente no anonimato. No entanto, devido à sua boa ação, se imortalizou na memória dos capixabas.
(Ponte Florentino Avidos, conhecida como Cinco Pontes, composta de 5 vãos, liga a Ilha de Vitória ao Continente. Um sexto vão, à parte, liga Vitória e Ilha do Príncipe. Fabricada em aço (um raro exemplar nacional), foi construída na Alemanha, no início do século passado. Hoje é um marco do patrimônio histórico e ambiental urbano do Espírito Santo.)
                                                                                              Jô Drumond

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

BENDITA TECNOLOGIA

Recentemente, recebi, pelo WhatsApp, um antigo vídeo publicitário, feito na época de inflação galopante, há décadas, anunciando uma liquidação de eletrodomésticos, pagos em duas vezes, sem juros.

Um fogão a gás de 4 bocas, por exemplo, cujo preço varia atualmente entre trezentos e seiscentos reais, era oferecido por sete milhões e quatrocentos mil cruzeiros, em preços promocionais. Vejamos as demais promoções:

Aparelho de som: Cr$3.800.000,00

Televisor preto e branco - 14 polegadas : Cr$14.400.000,00

Geladeira: Cr$9.400.000,00

Forno de micro-ondas: Cr$ 10.800.00,00

Essa publicidade me remeteu a um fato acontecido tempos atrás. No início da década de 70, fui contemplada com uma bolsa de estudos na Universidade de Sorbonne Nouvelle, em Paris, sob os auspícios da Embaixada da França. Teria gratuitamente hospedagem, alimentação e o curso, além de uma quantia mensal chamada de argent de poche, para pequenas despesas. Meu único gasto seria referente às passagens de ida e volta.

Naquela época, não havia cartões de crédito. Nada era automatizado. Um depósito bancário de uma cidade para outra levava muitos dias para ser concretizado, dependendo da distância geográfica.

Quem tinha a oportunidade de ir ao exterior comprava toda sorte de bugigangas para presentear os
amigos. Produtos importados, considerados supérfluos, eram inexistentes no mercado brasileiro. O governo, atento à evasão de divisas, só permitia a saída do país com o máximo de mil dólares por passageiro, o que era muito pouco. Isso abreviava a estada dos brasileiros no exterior.

Pois bem! Para a compra de dólares, eu teria que sacar a quantia correspondente em um banco e transportá-la até uma agência cambial. Fui ao centro de Belo Horizonte, sozinha, para a transação. O atendente do caixa me recebeu, desapareceu por algum tempo e voltou com um pacote enorme, embrulhado em jornal e amarrado com barbante. Eu não tinha noção da quantidade de cédulas correspondente à quantia solicitada. Mal podia carregar o pacote, por demais pesado para minha frágil compleição física. Teria que atravessar o centro da cidade a pé, até a agência. Um medo enorme se apossou de mim. Se alguém me visse sair do banco com aquele enorme pacote, poderia me seguir e me assaltar em algum lugar menos movimentado. A bolsa de estudos e a tão sonhada viagem iriam pelos ares.

Um telefone celular teria sido providencial. Eu poderia ter chamado alguém da família para me acompanhar. Ainda não existiam orelhões. Alguns poucos telefones públicos tinham sido instalados dentro de estabelecimentos comerciais. Para fazer uma chamada, eu teria que encontrar um deles ou me dirigir a alguma agência telefônica, inexistente nas redondezas. Enfim, teria que encarar o desafio, sozinha. Ao botar o pé porta afora, olhei para os lados e segui a passos rápidos. De vez em quando olhava para trás, para verificar se não estava sendo seguida. O medo de ser assaltada pesava mais que o pacote. O trajeto não era longo, mas, naquele momento, parecia infinito.

Feito o câmbio, eu teria que portar a quantia não apenas até minha residência. Teria que portá-la junto a mim, durante toda a viagem. Isso representava um grande transtorno para uma jovem inexperiente, que nunca havia saído de seu Estado Natal, muito menos do país.

Na época, não se cogitava que, num futuro não muito distante, os viajantes poderiam partir apenas com cartões magnéticos e com eles sacar dinheiro ou fazer pagamentos. Em caso de extravio ou furto, seriam bloqueados e substituídos por outros, em tempo recorde. Viva a tecnologia atual!

Na chegada à Europa, uma ex-colega de colégio, estando de férias em casa de parentes, em Grenoble, a 143 km de Genebra, estaria de carro, com seu irmão, me aguardando no aeroporto daquela cidade. Isso havia sido combinado meses antes, por carta, um dos poucos meios de comunicação disponíveis. Eu chegaria na sexta-feira à noite, passaria o sábado e o domingo com seus familiares, e depois seguiria para Paris. Não sei se ela se esqueceu do trato ou se houve algum imprevisto. O fato é que ela não apareceu. Já se fazia noite. Não havia meio de nos comunicarmos. Vi-me sozinha, em um país estranho, sem conhecer vivalma, sem saber o que fazer. Não dispunha de nenhuma indicação de local para me hospedar.

Nos dias de hoje, seria simples. Sacaria da bolsa o smartphone, localizaria os hotéis mais próximos,faria pesquisa de preços e reserva pela internet. Infelizmente, eram outros tempos. Dirigi-me ao guichê de informações e pedi que me indicassem um hotel próximo. Tomei um táxi, sem dizer palavra, a não ser o nome do hotel e o endereço, com cuidado de falar sem sotaque, para que o motorista não percebesse minha estrangeirice. Parti mais que temerosa, extremamente tensa. Não tinha noção da distância, nem da direção do hotel. Senti-me totalmente vulnerável. O chauffeur poderia me levar para qualquer lugar, apoderar-se de meu rico dinheirinho e se mandar. O que faria eu, na rua, com temperatura abaixo de zero, sem dinheiro para pagar hospedagem e sem conhecidos para me acolher? O medo só se dissipou ao avistar a placa do hotel. Respirei aliviada.

Antes do embarque para a Europa, eu havia sido instruída a não sair nunca à rua com todo o dinheiro. Deixá-lo no quarto de hotel seria também arriscado. Foi-me sugerido que recheasse todas as tomadas do quarto, com dólares. Nenhuma camareira se daria o trabalho de procurar dinheiro em local tão pouco plausível. Era esconderijo seguro, mas arriscado a um baita choque elétrico. Na bagagem, eu dispunha de chave de fenda para tal empreitada. Outro estratagema seria fazer falsas bainhas nas calças compridas, e recheá-las de notas verdinhas. Certa vez, sem me lembrar disso, fui para a universidade usando uma calça com tal recheio. Na volta, enfrentei ventaria e tempestade. Ao chegar ao alojamento estudantil, toda ensopada, percebi um peso extra nas bainhas. Atordoada, desalinhavei-as rapidamente, temendo ter perdido as cédulas, mas elas estavam intactas. Antes do embarque eu as havia envolvido por plástico, justamente para evitar algum imprevisto desse tipo.

Muitos contemporâneos nossos sentem saudades dos velhos tempos. Tenho saudades de certas coisas que não existem mais, mas, no que se refere à praticidade, à rapidez e ao conforto proporcionados pelas novas tecnologias, a vida hoje em dia é indiscutivelmente mais fácil e mais aprazível em praticamente todas as circunstâncias.

Pode ser que haja mais poluição, mais violência, e demais inconveniências próprias dos novos tempos, mas não se pode reclamar do conforto que as grandes invenções proporcionaram a todos, desde épocas avoengas, com o advento da energia elétrica, da telefonia, do motor à explosão, das aeronaves...

Com certeza, facilitações inimagináveis, às quais não teremos acesso, ainda estão por vir, na propalada era digital. Em face da atual corrida tecnológica, o que existirá em comum com nosso way of life, dentro de um século? Como será a vida de nossos descendentes?

 Jô Drumond

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

O MENINO QUE VIROU PAPAI NOEL


Zequinha era menino de frágil compleição, franzino, porém ladino. Nada passava despercebido a seus olhos vivazes. Por vezes, acompanhava sua mãe, Maria Abadia, no trabalho de diarista, para não passar o dia sozinho. Nas casas das patroas, via uma infinidade de brinquedos que gostaria de ter. Abadia dizia que não os podia comprar. Ele não conseguia entender. Ela trabalhava como todo mundo. Por que outros podiam, e ela não? O dinheiro de todos não era igualzinho ao dela? Pois então!
Zequinha ainda não tinha entendimento para questões monetárias. Seus brinquedos não eram tão atraentes quanto os que via nas vitrines e nas casas das patroas de sua mãe. Já os recebia usados, muitas vezes estragados ou quebrados.

Todo ano, no final da tarde do dia 25 de dezembro, a praça mais próxima de sua casa ficava repleta de crianças, com brinquedos trazidos pelo Papai Noel. O Bom Velhinho conhecia os endereços das outras crianças e não o dele. Caso o encontrasse, lhe explicaria como chegar até seu barraco, no Morro do Pintassilgo. O acesso não era muito fácil. Talvez ele não tivesse mais idade para subir ladeira como aquela. Combinariam um esconderijo em lugar plano e seguro, próximo à praça. Na manhã do dia 25, ele se levantaria bem cedinho e pegaria o mimo de Natal antes que um aventureiro lançasse mão dele. No entanto só via o Papai Noel na televisão. Onde seria sua residência? Certo dia pediu à mãe que o levasse até à casa do Bom Velhinho. Meio aturdida, ela lhe disse que ele morava em um lugar muito distante. Seria impossível ir até lá a pé, de bicicleta ou de lotação. Teria que fazer uma longa viagem de navio ou de avião. Ah! - exclamou o menino – para caber tantos presentes, ele deve ter um baita navio, um “navião”!

Quando Zequinha começou a ser alfabetizado, deixou de acompanhar a mãe. Passava as manhãs na
escola e, na parte da tarde, passava o tempo à porta de uma mercearia, oferecendo seus préstimos como engraxate. Um vizinho lhe repassara uma caixa de engraxate que havia pertencido a seu filho. Deu-lhe tintas e graxas já usadas, e o iniciou no ofício. Zequinha ficou radiante com a novidade. Acabou fazendo novas amizades com funcionários e clientes do pequeno comércio. Gostava do ambiente. Era bem mais divertido que ficar em casa vendo televisão. Muitas vezes, a tarde passava sem que aparecesse nenhum cliente, mas ele não se importava. Sua mãe, na volta do trabalho, passava por lá trazendo-lhe balas ou pirulitos. Subiam juntos a ladeira, contando reciprocamente as novidades do dia.

Todo ano, na tarde de 25 de dezembro, ele continuava indo à praça, para apreciar os novos brinquedos. Certo dia, assentado no banco da praça, a observar as novidades lúdicas, teve uma ideia. Como Papai Noel não sabia seu endereço ou não conseguia subir a ladeira, ele mesmo faria economias e compraria o que lhe agradasse, para brincar juntamente com as outras crianças. Durante um ano, economizou cada centavo e, na véspera do Natal, entrou em uma loja de brinquedos, juntamente com sua mãe, para escolherem juntos algo compatível com a quantia de que ele dispunha. Zequinha saiu de lá radiante. Não cabia em si de contente, carregando um caminhão de madeira, com carroceria verde e boleia vermelha. No mesmo dia, comprou também um saco de balas. Sua mãe achou um exagero, mas não o repreendeu pela quantidade de guloseimas. Afinal, ele tinha o direito de gastar seus trocados como bem entendesse. Nada de grave poderia lhe acontecer; no máximo, uma dor de barriga. No dia seguinte, lá estava ele entre as crianças, puxando seu caminhão com a carroceria abarrotada de balas, feliz da vida com o brinquedo que ele mesmo se deu. Um garotinho lhe pediu uma bala. Ele acabou distribuindo-as todas com a criançada. Naquela idade, já demonstrava seu traço de generosidade.

Com o tempo, o menino começou a entender a relação do trabalho com o dinheiro e a do dinheiro
com a aquisição do que bem lhe aprouvesse. Descobriu que nunca tivera bons brinquedos porque era pobre. Desde então, fez questão de trabalhar com afinco, para ganhar mais, mas não renunciou à vida de criança, nem à de estudante. Reservava tempo suficiente para brincar e para estudar.

Dizia sempre à sua mãe que, quando crescesse, queria ser fabricante de brinquedos. O motivo era simples: gostaria de distribuí-los gratuitamente às crianças pobres.

Trabalhou e estudou, ao mesmo tempo, fez faculdade e tornou-se proprietário de uma grande fábrica de brinquedos. Na época do Natal, fazia religiosamente grandes doações às crianças carentes. O restante era vendido no mercado nacional e internacional.

Zequinha hoje, com 50 anos, conhecido como Senhor José, mora em bairro nobre, mas ainda mantém o hábito de frequentar, na periferia, a mesma praça de sua infância, na tarde de 25 de dezembro. Ele o faz não apenas por saudosismo. Observa atentamente os tipos de brinquedos que fazem mais sucesso nas diferentes faixas etárias. Daí surgem ideias para novas criações, em seu ramo de negócio.

O ex-engraxate desceu o morro e subiu na vida. A maior parte de sua fabricação é exportada para diversos países e faz a alegria de milhares de crianças de diferentes idades e etnias.



Jô Drumond

2019