sábado, 13 de outubro de 2018

CALENDÁRIO REVOLUCIONÁRIO



Quando criança, eu sempre me perguntava por qual insensatez os meses de setembro, outubro, novembro e dezembro não correspondiam ao sétimo, oitavo, nono e décimo meses do ano. Meus familiares e meus professores do ensino primário não sabiam me responder. Bem mais tarde soube que meus questionamentos infantis tinham fundamento. O calendário romano, estabelecido por Rômulo (753 a.C.) tinha apenas dez meses. Dezembro era realmente o décimo mês do ano.

Por que razão houve a mudança? Em 46 a.C., Júlio César acrescentou dois meses e deslocou Januarius e Februarius para o início do ano, empurrando dezembro para a décima segunda colocação.

Soube também que no calendário juliano havia um erro referente ao alinhamento dos equinócios. Em 1582, o Sumo Pontífice Gregório XIII corrigiu tal erro em seu calendário, adotado na maioria dos países católicos.

Desde então a França adotou o calendário gregoriano. No entanto, durante a Revolução Francesa houve total reviravolta em quase tudo. Além do rompimento com o passado monárquico, feudal e cristão, além da mudança de costumes, os revolucionários quiseram abolir as referências religiosas na marcação do tempo. Dessa forma, os nomes de santos foram substituídos por nomes de plantas ou frutas (pera, figo, nabo...), de ferramentas de trabalho (enxadão, arado, pá...), ou de animais (vaca, coelho, gato...).

O ano I deixou de ser o ano do nascimento de Cristo e passou a ser o ano I da instauração da República, (1793); desapareceram os feriados cristãos, assim como os domingos (dia da adoração de Deus). Esse inusitado calendário foi baseado em conhecimentos astronômicos.

O ano continuava dividido quatro estações de três meses cada uma. O nome de cada mês se referia ao cultivo ou ao clima da época, a saber:
Le Printemps = Primavera
Germinal
Florial          
Prairial         
mês da germinação
mês da floração
mês das pradarias
L’Été             = Verão
Messidor
Thermidor    
Fructidor       
mês da colheita
mês do calor
mês das frutas
L’ Automne  = Outono
Vendémiaire
Brumaire       
Frimaire         
mês das vindimas
mês das brumas
mês do frio
L’Hiver       = Inverno
Nivôse
Pluviôse         
Ventôse          
mês da neve
mês das chuvas
mês dos ventos

Cada mês tinha exatamente 30 dias e era dividido igualmente em três partes de 10 dias cada um, chamadas “décades”. Os dias do novo formato da semana eram os seguintes: Primidi, Duodi, Tridi, Quartidi, Quintidi, Sextidi, Septidi, Octidi, Nonidi e Décadi. Cada um desses dez dias era consagrado a algo relacionado ao tema da “décade”.

Vejamos, por exemplo, a primeira delas, correspondente ao mês da vindima ou colheita da uva (vendémiaire), de 21 de setembro a 22 de outubro.
                                                                    1ª “Décade”
Primedi
1
Uva
Duodi
2
Acafrão
Tridi
3
Castanha
Quartidi
4
Colchique (flor)
Quintidi
5
Cavalo
Sextidi
6
Bálsamo
Septidi
7
Cenoura
Octidi
8
Amaranto
Nonidi
9
Pastinagas
Décadi
10
Cuba

Para cada dia do ano havia uma referência específica, que não se repetia. Os doze meses de trinta dias correspondiam a trezentos e sessenta (360) dias, aos quais eram acrescentados cinco (05) dias referentes aos “sansculottides”: Festa da Virtude, da Inteligência, da Opinião, do Trabalho e das Recompensas. O dia suplementar dos anos bissextos, chamado “la franciade”, era reservado à festa da Revolução.

A título de curiosidade, vejamos a divisão, mês a mês, do primeiro semestre do ano de 1794, contendo as respectivas temáticas:

Período
Nome do mês
“Décades”
Consagrada à (ao)
1º mês
22 set./21 out.
“Vendémiarie”
Referência à vindima (colheita da uva)
Ser supremo e à Natureza
Gênero Humano
Povo Francês
2º mês
22 de out/20 nov.
“Brumaire”
Referência à bruma típica da época

Benfeitores da Humanidade
Mártires da Liberdade
Liberdade e Igualdade
3º mês
21 de nov./20 dez.
“Frimaire”
Referência ao frio – clima da época
República
Liberdade do Mundo
Amor à Pátria
4º mês
21 dez./ 19 jan.
“Nivôse”
Referência à neve
Ódio aos Tiranos
Verdade
Justiça
5º mês
20 jan./18 fev.
“Pluviôse”
Referência à época das chuvas
Pudor
Glória e Imortalidade
Amizade
6º mês
19 fev./20 mar.
“Ventôse”
Referência à época dos ventos
Frugalidade
Coragem
Boa fé


O calendário revolucionário ou republicano, criado por Fabre d’Eglantine em 05 de outubro de 1793, teve como marco inicial (retroativamente) o dia do estabelecimento da República, 22 de setembro de 1792. Tal calendário vigorou na França por pouco mais de uma década.

Como se sabe, a Revolução Francesa, em 1789, foi um movimento crucial na história da França, com repercussões mundiais. Trata-se de um divisor de águas do regime político, que passou da monarquia absoluta para a monarquia constitucional e logo depois para a Primeira República.

Napoleão Bonaparte foi figura de destaque Primeira República Francesa. Em 1799 liderou um Golpe de Estado e se instalou como primeiro cônsul num regime chamado “Consulado”. Cinco anos depois, ele se tornou imperador, sob o nome de Napoleão I e imperou de 1804 a 1814.


Deve-se a ele a curta duração do calendário republicano e a retomada do gregoriano, em 1806.

Jô Drumond
Outubro/2018

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

ANGLICISMOS


Chama-se “anglicismo” ou “galicismo” o empréstimo de termos das línguas inglesa e francesa, incorporados ao léxico de nosso idioma, com adaptação gráfica e, às vezes, fônica. Temos, por exemplo, os termos franceses abajur (abat jour) e chofer (chauffeur), que ganharam roupagem própria em português. Chamam-se “estrangeirismos”  termos que são adotados por outra língua,  sem adaptação. Por exemplo, outdoor, do inglês, e rendez-vous, do francês.

Em meados do século XX, inventou-se o termo “franglais” (français/anglais) com a publicação do livro do prof. Étiemble “Parlez-vous franglais?” A invasão de terminologia inglesa naquele país era tamanha, que o governo houve por bem sancionar a lei Toubon (nº 94-665 de 04/08/1994) para proteger o patrimônio linguístico francês. Tal Lei visava a garantir a primazia de termos da língua oficial. Os organismos públicos deviam respeitar o vernáculo local em todas as circunstâncias. Houve até mesmo punições severas, como no caso da GE Medical System, que foi multada em 570.000 Euros, em 2006, pelo fato de ter transmitido documentos em inglês, sem tradução, a seus empregados.

No Brasil, a presença de anglicismos sempre existiu sem incomodar a ninguém.  No país no futebol, usa-se uma forma aportuguesada do inglês “football”. Para substituir  a palavra “futebol”, Castro Lopes inventou os termos eruditos “ludopédio” e “balípodo”, que felizmente não foram aceitos pelos falantes do português.

Atualmente, a presença da língua inglesa em tudo que se refere à tecnologia é praticamente automática no Brasil, visto o grande fluxo lexical sem correspondentes em nossa língua. Evidentemente, é bem mais simples adotar um termo estrangeiro que criar um neologismo.

Há pouco tempo, ao me aproximar da Central de Cópias de uma Universidade Federal do ES, vi uma placa na qual se lia: copy center. Caso se tratasse de um curso de idiomas, seria plausível, mas, dentro de uma universidade, não deixa de haver um pouco de exagero. No mesmo dia, fiquei indignada pela exarcebação do uso do inglês, ao percorrer um shopping, em Vitória. Deparei com uma grande placa divulgação imobiliária, na qual mais de 50% das palavras eram em língua inglesa ou dela oriundas:

 Kit automação. Bike sharing. Wifi nas areas comuns. Lounge office. Home office. Laundrywifi. Fechadura biométrica. Lazer completo na cobertura”.

Por que não usar termos do nosso vernáculo? Suponhamos que um rico matuto, sem nunca ter tido acesso à língua inglesa, venha da zona rural para comprar imóveis na capital. A agência imobiliária certamente não atingirá tal cliente, pelo fato de ele não dominar aquele código verbal.

Seria muito prático se todos os terráqueos falassem a mesma língua.  Diversas línguas universais foram criadas. O Esperanto, criado pelo polonês Ludwig Lazar Zamenhof, no final do século XIX, teve muita repercussão. O esperanto não foi adotado universalmente, mas ainda é estudado e existem muitos adeptos espalhados pelo mundo, formando uma espécie de rede esperantista. Tenho um amigo que tem contato contínuo com falantes dessa língua, originários de diversos países. Em suas viagens internacionais ele é muito bem recebido e alojado por esperantistas participantes de tal rede. Destarte, economiza muito em suas andanças mundo afora.

Segundo o filólogo e linguista prof. José Augusto Carvalho, o esperanto tem raízes em várias línguas: polaco, hebraico, alemão, latim, grego, russo e francês, ao contrário das outras línguas inventadas cujo vocabulário e regras gramaticais estavam bem próximos da língua nativa ou materna de seus inventores. A seu ver, o esperanto não vigorou, porque não tem vitalidade, isto é, não há comunidade que tenha o esperanto como língua oficial, e não tem historicidade, isto é, não tem lastro cultural. 

Durante muito tempo, a língua francesa foi usada pela diplomacia internacional.  Hoje em dia, há a primazia do inglês. Sabe-se que uma língua de comunicação internacional se faz necessária. Senti isso na pele, recentemente, ao visitar a Hungria, cujo idioma é totalmente diferente do nosso. A língua húngara não tem nenhuma semelhança com as línguas às quais temos acesso mais frequente: francês, alemão, inglês, espanhol, português, italiano... ela é totalmente ininteligível para nós, brasileiros. Todas as pessoas abordadas por mim só falavam o idioma local. Apesar de estar em uma cidade turística, que deveria primar pelo contato com estrangeiros, encontrei grande dificuldade.

Minha salvação era justamente a presença, embora tímida, de alguns termos em inglês nas placas do espaço público. Por meio deles eu podia identificar se se travava de um restaurante, de uma lanchonete, de um museu ou de uma casa comercial. Minha salvação, na Hungria, estava, portanto, relacionada ao mesmo motivo de minha indignação, aqui no Brasil: os anglicismos.

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

30.000 MORTES CAUSADAS POR FAKE NEWS


Uma longa, penosa e custosa guerra civil desencadeada em Canudos, no final do século XIX, no sertão da Bahia, foi provocada por boatos infundados e por equívocos militares. O conflito foi desencadeado devido à fake new de um representante da justiça (juiz de Direito) quanto à hipótese de uma iminente invasão de uma determinada cidade, pelos seguidores do beato Antônio Conselheiro. O estopim do conflito foi um simples entrevero relacionado à compra de um madeirame adquirido pelos conselheiristas. A represália dos compradores pela não entrega do produto desencadeou um conflito noticiado erroneamente na capital do país como levante monarquista para desestabilizar a jovem República, de apenas oito anos de idade.

 Esse foi o motivo da primeira expedição do governo contra Canudos. A cada fracasso do exército, nova expedição era enviada. Os jagunços se apoderavam do mantimento, do armamento e da munição enviados pelo governo. O restante do país, distante do conflito e com parcos meios de comunicação, não entendia o motivo do fracasso das expedições. Acreditava-se que os sertanejos recebiam ajuda bélica, quiçá internacional, de monarquistas. Até mesmo Euclides da Cunha, antes de vivenciar o conflito, acreditava nessa hipótese. Tanto é que escreveu dois artigos para o jornal, intitulados “A nossa Vendeia”, uma referência explícita à histórica “Revolta da Vendeia”, na França, em 1793. Juntamente a um reforço à 4ª expedição, o engenheiro Euclides da Cunha foi enviado à Bahia por um jornal Paulistano, para fazer a cobertura jornalística da guerra de Canudos. Foi então que ele concebeu sua obra Os sertões, a partir das crônicas de campanha.

Em Canudos 25.000 habitantes foram massacrados pela força governamental. Somam-se a esse número 5.000 baixas do lado do exército invasor, o que dá um total de cerca de trinta mil mortos, num infundado conflito fratricida. Ao conhecer de perto o conflito, o enviado especial se deu conta do engano de toda a imprensa nacional e internacional. Não existia levante algum em Canudos. O rude sertanejo era tão ignorante que não tinha noção conceitual de Monarquia nem de República; tais termos não passavam de palavras ocas, de simples abstrações, no universo sertanejo. O que lhes interessava, além da sobrevivência imediata, eram as pregações do messias Antônio Conselheiro e a fé religiosa. Aqueles que eram considerados inimigos do governo não passavam de um bando de carolas ignorantes que seguiam cegamente seu líder espiritual. Atacados pelas tropas governamentais, eles se defendiam como podiam, numa guerra, que, para eles, era santa. O que estava em jogo era a defesa do grande pastor Antônio Conselheiro e de seu rebanho contra os invasores.

Na época do conflito, muitos boatos surgiram a respeito de Canudos. Diziam que Antônio Conselheiro contava com mais de vinte mil oficiais capazes, e que os monarquistas estariam ligados aos fanáticos do sertão. Ponderavam que, sem essa ajuda, estes não seriam capazes de enfrentar as tropas do Governo. Os monarquistas acabaram sendo injustamente responsabilizados pelas derrotas das forças governamentais. Por conseguinte, naquela época, três jornais monarquistas do Rio e um de SP foram depredados e fechados.

In loco, Euclides percebeu que os revezes sofridos até então pelas tropas eram explicados pelo fato de o Exército não ter uma linha contínua de piquetes que permitissem a marcha segura de comboios contendo víveres e munições, e pela ausência de um serviço garantido de transmissão regular e rápida de notícias. O escritor chegou a afirmar, em correspondência, que o governo não ganharia a guerra nem mesmo se enviasse mais de cem mil homens; poderia ganhá-la graças aos burros que transportassem alimentos e munições para os guerreiros.

Euclides demonstra, em seu livro, que o motivo de tantos fracassos por parte das tropas do Governo foi provocado, em parte, pelo desconhecimento do meio ambiente e, por conseguinte, pela falta de estratégia adequada àquele tipo de topografia, de clima e de vegetação. Os sertanejos, habituados às condições climáticas desfavoráveis ao homem da cidade, eram profundos conhecedores da região onde viviam. Usavam vestimentas de couro, próprias para o deslocamento entre pedregulhos, gravetos e espinhos, sob sol escaldante, o que lhes permitia muito mais agilidade. Além disso, conhecedores das trincheiras e tocaias naturais da topografia local, surpreendiam facilmente o inimigo ao longo do percurso para Canudos, em locais de difícil fuga. Pilhavam seus víveres e munições para abastecimento próprio. As forças do Governo, com uniformes inadequados (que se agarravam à vegetação espinhenta), deslocavam-se dificilmente na caatinga. Os que escapavam a caminho, durante os ataques, muitas vezes se perdiam, sem provisões, sem água e pereciam por inanição e desidratação.

A guerrra chegou ao fim, segundo o jornalista, por absoluta falta de combatentes inimigos.  Os sertanejos sitiados, já quase mortos de fome e de sede, em momento algum se entregaram. Na invasão do arraial, crianças, mulheres e velhos foram trucidados. Os que ainda tinham forças para a luta se mantiveram altivos e corajosos até à última chama de vida.

Concluindo, o massacre de Canudos teria sido apenas um infeliz episódio ocorrido no início da República, relegado providencialmente ao esquecimento, não fosse a força e a densidade do texto euclidiano que resgata o conflito, desnuda a realidade e leva o leitor a um posicionamento crítico. Em Os sertões, o autor faz um belíssimo relato dos motivos que engendraram o conflito, do desenvolvimento das campanhas do Exército brasileiro contra a pobre comunidade, e do trágico desfecho. Testemunha presencial da carnificina, o jornalista-escritor tem a humildade de reconhecer sua própria falta (e a de todo o Brasil), ao considerar erroneamente os conselheiristas como monarquistas rebelados contra a República. Além disso, tem a coragem de acusar o poder constituído (do qual fora representante, como militar) de crime contra a humanidade.

A cidade de Canudos foi duplamente extirpada da paisagem brasileira: trucidada e incendiada pelo exército, em 1987; afogada e inundada pelas águas do açude Cocorobó, em 1969. Submergiram juntamente com ela as três grandes vergonhas dos representantes do poder constituído: a infâmia de um representante da justiça, que desencadeou o conflito baseando-se em falsidade, o constrangimento da Igreja católica, cujo enviado local insuflou ataques contra o Conselheiro e o logro das expedições governamentais, apesar do poderio bélico, contra simples e despreparados sertanejos.

Jô Drumond   - Agosto 2018