segunda-feira, 19 de agosto de 2013

CANTORIA DE REIS

*Jô Drumond

Todo início de janeiro há apresentações de folias de Reis, na zona rural do Alto Paranaíba. Os foliões vão de fazenda em fazenda, angariando prendas para a festa do dia seis. Certo dia, no percurso entre uma e outra fazenda, eles encostaram o mastro da bandeira numa árvore e se distanciaram, em respeito ao santo, para beber uma cachacinha. Ao voltarem, perceberam que um boi havia mascado a bandeira. Já meio ébrios, desnorteados, não sabiam o que fazer. Não podiam voltar ao povoado sem bandeira, muito menos sem prendas. Sugestões desencontradas de cada um não apontavam para consenso algum. Zé Mané, mais despachado, disse aos demais:
─ Deixem comigo. Vou resolver essa pendenga!
Ao se aproximarem da fazenda seguinte, ele desandou uma inusitada cantoria, em ritmo de folia: Oh senhor dono da casa / veja só o que aconteceu (bis) / dê esmola pra esse pau / a bandeira o boi comeu (bis).
O fazendeiro achou graça, convidou-os para um “cafezim quentim”, ouviu o causo do mastro desbandeirado, gostou da iniciativa do caboclo, e acabou dando um bom adjutório para a feitura de várias bandeiras.
*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do 
Instituto Histórico (IHGES)

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Roda de Bar

 Na cidade de Santa Teresa (ES), numa mesa de bar, uma alegre roda de amigos bebericava para espantar as tristezas. Depois de algumas biritas, a conversa se animava proporcionalmente ao aumento do teor etílico no sangue. Alguns deles, que caçavam por diletantismo nos finais de semana, começaram a trocar ideias sobre os locais de caça abundante na região, sobre os últimos butins, sobre os melhores cães de caça e sobre suas aventuras reais ou fictícias mata adentro.
Um deles, muito falante, conhecido como Zé da Onça pelo fato de ter enfrentado uma delas, segundo ele, sozinho e desarmado, disse:
─ Minha gente! Cá pra nós, vou lhes dizer uma coisa. Prestem atenção! Não há nenhum lugar melhor para se caçar do que a reserva florestal daqui de Santa Teresa.
─ Tá louco, homem! ─ Exclamou um deles ─ É proibido caçar na reserva! É crime inafiançável! Você pode ser preso!
─ Eu sei. Tô cansado de saber! Mas a reserva é grande, e a fiscalização é precária. Nunca vi um fiscal do Ibama  por lá.
Um senhor reservado, novato no grupo, que até então não se tinha manifestado, lhe perguntou.
─ Como o senhor se chama?
─ Eu não me chamo nunca! Meus amigos me chamam por Zé da Onça.
─ Seu Zé, o senhor caça sempre, dentro da reserva?
─ Claro que sim!
─ O senhor sabe com quem está falando?
─ Não. É a primeira vez que o vejo por essas bandas.
*Jô Drumond
(Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do 
Instituto Histórico (IHGES)
─ Eu me chamo João Pedro. Sou chefe da fiscalização do Ibama.
Mais que depressa Zé da Onça lhe fez a mesma pergunta, já com a resposta engatilhada.
─  Muito prazer! E o senhor? Sabe com quem está falando? Com o maior mentiroso da região!
Todos caíram na gargalhada. Ficou o dito pelo não dito e mudaram o rumo da prosa.

O fato virou caso anedótico na cidade, mas surtiu dois efeitos, para a tranquilidade dos animais silvestres: Amedrontado, Zé da Onça nunca mais caçou na reserva; alertado, o fiscal passou a atuar com muito mais rigor junto à sua equipe.




segunda-feira, 5 de agosto de 2013

PÉROLAS AOS PORCOS

Jô Drumond

Grande apreciador de vinhos raros, o francês François de la Cancoillote, colecionava milhares de litros de vinho em sua extensa adega, no subsolo do palacete onde residia. Algumas garrafas, alvo da cobiça de enólogos, eram verdadeiras preciosidades. 

Durante a ocupação nazista, na segunda Grande Guerra, na iminência de ter sua residência invadida e tomada por soldados alemães, ele providenciou a inundação da adega. Todas as garrafas garimpadas durante décadas em vinícolas e no comércio especializado ficaram submersas. Não permitiria que os tradicionais beberrões de cerveja profanassem suas raridades de estimação, guardadas com tanto desvelo. Se quisessem beber, que tomassem água, de preferência envenenada. Seu vinho não se prestaria ao desfrute de soldados incapazes de degustá-los. Não daria pérolas aos porcos.

A temida previsão aconteceu. O palacete foi confiscado. Sua família, habituada à amplidão dos cômodos, ao requinte da decoração e à mesa farta, teve que se aboletar juntamente com famílias desconhecidas, em exíguos espaços, e que se alimentar com parca ração nauseabunda. Os belicosos ocupantes da mansão não deram atenção à inundação do porão. Tinham questões mais importantes a tratar.

Ao final da guerra, a família Cancoillote recuperou seu palacete e, juntamente com ele, sua dignidade. Todos os cômodos encontravam-se em estado lastimável. Enquanto mulher e filhos vistoriavam os estragos e lamentavam a imundície, François desceu mais que depressa ao subsolo. Seu tesouro continuava resguardado sob milhares de litros cúbicos de água. O escoamento foi providenciado. As rolhas pareciam intactas. François abriu uma garrafa e teve a hedonística sensação de degustar o néctar dos deuses. Que ideia magnífica, a minha ─ pensou ele ─ nada melhor do que água para manter a temperatura e conservar o vinho. Após o momento de euforia, uma desolação. Todas as garrafas haviam perdido os rótulos. Como identificar a safra e a procedência de cada uma? Pas possible! Jamais conseguiria comercializar seu produto, se o quisesse. Pas de problème! O destino do precioso líquido já estava definido. 

Regaria os repastos dos Cancoillotte,  enquanto vida tivessem. Como bom francês, François não concebia refeição sem vinho. Pouco a pouco, de taça em taça, foi dilapidando seu tesouro. A cada garrafa aberta, a renovada alegria de estar em seus domínios, cercado pela família, e o regozijo de se sentir, de certa forma, vingado dos indesejáveis intrusos.

                                                                                                      

*Jô Drumond
(Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)