segunda-feira, 20 de maio de 2013

Sonhos diamantinos

Jô Drumond
Às margens do rio Cascalhal, José Teodoro, vulgo Zé da Onça, plantou sua história, com braço forte e coragem. No fio de sua foice, foi-se muita capoeira, mas garimpava seus sonhos nas lavras diamantinas. Emborcava-se no cabo da enxada para criar sua prole. Na labuta diária, suava, mas sonhava sobremaneira. Sempre que podia, postava-se à beira do rio mirando o cascalho bruto, de recôndita riqueza. Vislumbrava diamantes translúcidos, rutilantes, vagalumeando a natureza. Nas horas vagas pegava sua bateia e, à beira do rio, perscrutava os mistérios do cascalho. A confiança na sorte o embalava nos volteios da bateia e na dança cíclica do tempo.
Sua mulher, Dona Maroca, implicava noite e dia com a inútil andança do marido atrás do imponderável.Repreendia-o pelo fato de ter pés no chão e cabeça nas nuvens. Sonhos não enchem barriga ─ dizia ela. ─ A garimpagem é como jogos de azar. Nunca se sabe quando nem onde se pode encontrar a sorte grande. O melhor a fazer é tomar tento e cuidar da roça, de onde vem o sustento da família.
José Teodoro respeitava a sensatez da mulher, mas não deixava de cultivar seus devaneios. Num domingo ensolarado, levantou-se com as galinhas, tomou café forte num coité e partiu vertente abaixo, em direção ao leito do rio. A incidência dos raios solares no cascalho deslumbrava seus olhos e lhe ofuscava a alma. Bateou o dia todo sem cessar. Como sempre, nada encontrou, a não ser um belo quartzo, todo enlameado, maior que uma bola de pingue-pongue. Lavou a pedra na correnteza e a colocou sobre o barranco, pensando em ofertá-la a alguém. Serviria como decoração da casa ou como peso sobre folhas avulsas, ou brinquedo para as crianças. Acabou se esquecendo da pedra e voltou para casa de mãos vazias. Lavorou a semana toda, no cabo da enxada. No domingo seguinte, lá foi ele novamente, vertente abaixo, levando consigo a bateia e uma cachacinha para afugentar a friagem. Lá pelas tantas, recebeu em seu garimpo a inesperada visita de um capangueiro, especialista em comprar diamantes à beira do rio e revendê-los nas cidades grandes ou no exterior.
Este, em tom de galhofa, lhe perguntou:
─ E aí, Seu Zé da Onça, quando é que virá a sorte grande?
─ Já veio ─ respondeu no mesmo tom, apontando para o quartzo encontrado na semana anterior.
O capangueiro pegou o quartzo, lavou-o bem e examinou-o contra a claridade.  Seus olhos, deslumbrados, brilhavam mais que a pedra.
─ Meu Deus ─ murmurou.  ─ Deve ter mais de quinhentos quilates! Por quanto o senhor passa essa pedra?
─ Por nada. Não tá a venda! ─ continuou em tom de brincadeira.
─ Como não, seu Zé? É pedra puríssima, de primeiríssima água, uma verdadeira fortuna!
─ Tá bem! Vou pensar no seu causo!
O garimpeiro não estava certo se o capangueiro zombava ou falava sério. Por via das dúvidas, ia examinar melhor a pedra. Colocou-a no bolso e deu por encerrada a labuta do dia. Pediria a alguém de sua confiança que a examinasse. Do garimpo foi direto para a venda de Zé Badão, reduto etílico dos garimpeiros. Todos ficaram atônicos, ao verem o diamante. Ninguém tinha noção de quanto podia valer uma raridade daquelas. Só entendiam de finanças de pouca monta.  A notícia espalhou-se pelas redondezas. Ainda meio cético, Zé da Onça procurou certificar-se da pureza da pedra, junto a pessoas do ramo. A partir de então sua vida mudou radicalmente. Na partilha de valores entre o governo, o proprietário das terras e o garimpeiro, coube-lhe um montante que não lhe cabia nos bolsos, nem no entendimento. Juntamente com sua família, parentes e amigos mais chegados, esbanjou dinheiro a rodo durante muitos anos. Um dia se deu conta de que a fonte estava secando. Sem saber administrar sua fortuna, voltou a ser infortunadamente pobre. Acabou seus dias na estaca zero, ou seja, no cabo da enxada e no aro da bateia, tendo, além do mais, que aguentar as lamúrias da mulher e dos filhos. Habituados ao conforto, não aceitavam a queda de padrão de vida, nem a ideia de trabalhar para ganhar o pão de cada dia. Sua vida familiar tornou-se insustentável. Sem dinheiro, sem o amor e sem sossego, pegou uma trouxa de roupa e tornou-se barranqueiro. Já velho e alquebrado, amarrou seu viver, num rancho de capim, à beira do rio, mas não se deu por vencido. Como bom garimpeiro, a cada manhã, vislumbrava a sorte diante de grandes amontoados de cascalho. No entanto seus sonhos fugidios brotavam ao amanhecer e se esvaíam ao anoitecer, até que o nada absoluto, sem luz e sem fulgor, abocanhou seus sonhos numa noite sem fim.  

*Jô Drumond é membro da:
AEL (Academia Espírito-santense de Letras)
AFESL (Academia Feminina Espírito-santense de Letras)
AFEMIL (Academia Feminina Mineira de Letras)
IHGES (Instituto Histórico e Geográfico do ES)

sábado, 11 de maio de 2013

A FORÇA DO INSTINTO MATERNO



*Jô Drumond
Outro dia, amigos meus, sitiantes na Mata Atlântica, depararam com uma cena inusitada, ao flanarem pelas trilhas sombreadas de uma reserva ecológica. No cimo de uma árvore alta e de pouca copa, um animal escuro, de pequeno porte, pulava nervosamente de galho em galho. Uma grossa serpente, nas grimpas da árvore, deslizava suavemente, em sua direção. Não era possível identificar o tipo de serpente, nem o tipo de animal, devido à distância. Supunha-se um esquilo, um gambá, um mico.... O fato é que o corajoso bichinho, em momento algum, cogitava em fugir, diante do iminente perigo. 

Como era bem mais ágil que o réptil, poderia se safar com facilidade, saltar para outros galhos, para outras árvores. Mas, não o fez. Manteve-se inquieto, como se estivesse encurralado, de olhos fixos na aproximação daquela que avançava serenamente, segura do êxito de sua caçada. Os voyeurs, estáticos, já aguardavam o bote certeiro, quanto algo inesperado aconteceu. O pequeno animal atacou a serpente e com ela se atracou ferozmente. Ambos caíram das alturas. Num piscar de olhos, o animalzinho subiu pelo tronco e voltou a manter a guarda de seu espaço.

Sua bravura relacionava-se certamente à sobrevivência de indefesos filhotes. Uma morada nas alturas seria a única explicação plausível para tamanha audácia.
A serpente, aturdida com a petulância da pretensa presa, e certamente envergonhada por ter literalmente caído do galho, partiu resvalando entre folhagens, em busca de caça menos traiçoeira.
Esse incidente, presenciado por amigos meus, remeteu-me a uma reportagem televisiva, levada ao ar recentemente.
Uma emissora de TV apresentou fatos da vida real, em situações de alto risco, que demonstram o altruísmo e a força física quase sobrenatural de mães, no afã de salvar seus rebentos.

Uma delas, sem saber nadar, lutou bravamente contra a correnteza de um rio, num acidente automobilístico. Poucos momentos antes, ela havia quebrado o pára-brisa do carro com o próprio punho, e tirado os filhos do veículo, já em vias de afundamento.
Durante um incêndio, uma franzina senhora, apesar da frágil compleição, conseguiu arrancar uma grade de ferro chumbada à parede. Ao ser entrevistada, rodeada pelos filhos, mostrou, toda garbosa, a grade arrancada e os buracos do arrombamento nos quadrantes da janela.
Outra imagem mostrou uma mãe que tinha se jogado contra um rolo compressor, para evitar o esmagamento de seu filho.

De outra feita, ouvi num noticiário, que, imbuída de uma força descomunal, uma mãe fora capaz de suspender um carro cuja roda esmagava seu filhinho.
Outra cena inusitada foi amplamente veiculada pela mídia, há algum tempo. Num zoológico dos Estados Unidos, um garoto caiu no fosso que envolvia o espaço destinado aos gorilas. Um gorila-mãe, imbuída de instinto materno, mais que depressa pegou nos braços a criança desmaiada, para evitar que ela fosse morta por seus colegas. Conduziu-a até o local onde o tratador colocava os alimentos, colocou-a delicadamente no solo, e ficou de guarda até que a criança fosse resgatada.

Dizem que o instinto mais forte nos viventes, é o da própria sobrevivência. Entretanto, esses e muitos outros casos registrados na mídia e na memória popular, levam-nos a crer que o instinto materno é mais forte que o da autopreservação. Incidentes, nos quais a vida do filho se torna mais importante que a própria, já foram presenciados inúmeras vezes em momentos cruciais de tragédias, as mais diversas.

O pai, tanto quanto a mãe, é capaz de ações mirabolantes, para salvar um filho. Não se pode, de modo algum, subestimar a pujança do amor paterno.
No entanto, o fato de conceber, gerar e dar a luz desenvolve na genitora um vínculo não apenas de sangue. Trata-se de uma experiência restrita apenas às mulheres, ou melhor, às fêmeas, que tiveram o privilégio da maternidade. São detentoras de uma força biológica que atua de modo inconsciente, de um impulso espontâneo, alheio à razão, independente de qualquer tipo de aprendizado.

Deve ter sido esse instinto que, no seio da Mata Atlântica, fez com que a corajosa fêmea resguardasse sua cria.

*Jô Drumond é membro da:
AEL (Academia Espírito-santense de Letras)
AFESL (Academia Feminina Espírito-santense de Letras)
AFEMIL (Academia Feminina Mineira de Letras)
IHGES (Instituto Histórico e Geográfico do ES)

sexta-feira, 26 de abril de 2013

FLASHES DO COTIDIANO

Jô Drumond
Na lufa-lufa diária dos grandes centros urbanos, entre milhares de cenas presenciadas, algumas ficam retidas em nossas memórias. Lembro-me nitidamente de duas delas, uma cômica e outra dramática:

Certo dia, há mais de três décadas, pouco antes das oito da manhã, na Av. Avenida Afonso Pena, em Belo Horizonte, deparei com uma pequena aglomeração em frente ao edifício Sulacap. A cena era absolutamente inusitada. Uma charmosa mocinha de minissaia justa tentava trocar o pneu de seu fusca. Toda embaraçada, tentava a troca com uma das mãos, e com a outra, puxava a saia para baixo, com o intento de se proteger dos curiosos. Esforço inútil.  Por um lado, uma só mão era insuficiente para a troca; por outro, o tecido não cedia. Dentro de tamanho desconforto, procurava, com modos recatados, encontrar a melhor maneira de se abaixar sem mostrar os fundilhos. A cena era tão engraçada, que ninguém se oferecia para ajudá-la. Todos, sobretudo os marmanjos, com ares zombeteiros, preferiam assistir ao embaraço da moça, sem a mínima menção de ajuda. Não pude ajudá-la. Estava em cima da hora. Segui meu caminho com pena da garota e curiosa pelo desfecho da cena.

Num passado mais recente, estando eu a pé, num movimentado cruzamento da Av. Nossa Senhora da Penha, em Vitória (ES), gritos de desespero atraíram minha atenção. De braços abertos, uma jovem tentava parar os carros, correndo de um lado para outro, feito barata tonta. Bradava aos quatro ventos: – Socorro! Ajudem-me! Meu filho está morrendo! Socorro! Um médico! Ajudem-me! Na calçada, um homem fazia respiração boca a boca num bebê desfalecido, de cerca de um ano. De pé, com a criança nos braços, prestava-lhe socorro e olhava inquietamente para os lados à procura de ajuda. Os carros iam parando, o povo se aglomerando, mas nada de médico, nem de ajuda eficiente. A respiração boca a boca continuava. A mãe aproximava-se às vezes para ver se ainda existia uma chama de vida na criança e voltava à encenação anterior. Nenhuma atriz, por mais competente que fosse, conseguiria representar tão bem aquele papel. O desespero estampava-se em seu rosto. De tanto gritar a boca espumava e um líquido viscoso escorria pelos cantos. Nos olhos e no semblante via-se o pavor da morte de um filho, que deve ser maior que o da própria morte. Ouvimos uma sirene não muito distante. Um rapaz, que a tudo assistia, saiu desabalado em direção ao som, na esperança de conseguir uma ambulância. Mantive-me impotente, fazendo parte daquela plateia macabra. Percebi que o bebê começou a piscar os olhinhos e já respirava por si. Respirei aliviada. Uma moça assentou-se no chão, na posição de lótus (Yoga) e deitou a criança no colo. No meio da rua, a cena continuava. Trânsito parado, gritos de socorro, aglomeração cada vez mais intensa, guarda de trânsito se aproximando...  A mãe percebeu que o bebê não estava mais nos braços do rapaz. Abriu um carro que estava parado no meio da avenida, pegou nos braços uma garotinha de cerca de três anos e se dirigiu ao local gritando: ─ Meu filho morreu? Ai! Meu Deus! Ele está morto? A menina, assustada, chorava nos braços da mãe, sem nada entender. ─ Não meu amor! Ele não morreu! Está voltando! ─ respondeu o pretenso pai da criança.
Olhei o relógio: eram 15:10. Uma consulta médica agendada para as 15:15 exigia meu imediato afastamento do local.  Não pude presenciar o desfecho da cena. Segui meu rumo, meio desnorteada, com olhos inundados e pranto sufocado. Aquela imagem não me saía da memória. Via, a todo o momento, num rosto transfigurado, o pavor da iminente perda de um filho.
Partindo do princípio de que o mundo é um imenso palco onde se encena a vida, no dia a dia todos somos, ao mesmo tempo, espectadores e personagens: cada um observa o que se passa em seu entorno e representa, na medida do possível, a cena que lhe é legada.

*Jô Drumond é membro da: 
AEL (Academia Espírito-santense de Letras)
AFESL (Academia Feminina Espírito-santense de Letras)
AFEMIL (Academia Feminina Mineira de Letras)
IHGES (Instituto Histórico e Geográfico do ES)